POLÍTICA EXTERNA DO GRANDE BRASIL DE PEQUENAS RELAÇÕES COM OS PALOP: uma resenha crítica da tese  

POLÍTICA EXTERNA DO GRANDE BRASIL DE PEQUENAS RELAÇÕES COM OS PALOP: uma resenha crítica da tese  

RIZZI, Kamilla Raquel. O grande Brasil e os pequenos Palop: política externa brasileira para Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe (1974-2010). Tese de Doutorado em Ciência Política, UFRGS, Brasil, Porta Alegre: 2012, pág. 301.

Ricardino Jacinto Dumas Teixeira

Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira

Avenida da Abolição, CE 62790-000, Brasil

ricardino@unilab.edu.br

Introdução

Esta resenha buscou dialogar com a tese “o grande Brasil e os pequenos PALOP: a política externa brasileira para Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe”, apresentada pela pesquisadora brasileira Kamilla Raquel Rizzi ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Brasil.

A análise foi estruturada em três momentos: (I) o contexto da pesquisa e o caminho metodológico seguido para a construção do corpus; (II) a análise da política externa do Brasil para Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe e (III) as considerações finais sobre questões analisados, a fim de proporcionar um espaço para o estreitamento de diálogo entre os pesquisadores e tornar a tese acessível ao público leitor.

Contexto e o caminho metodológico

Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tome e Príncipe são países ex-colônias de Portugal em África, recentemente independentes (anos de 1970), com uma longa história de relacionamento comum com o Brasil, marcado, particularmente, pela presença portuguesa. No contexto apresentado pela autora, o Brasil emerge como estado central na tese, enquanto Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, em conjunto, foram considerados “pequenos Palop” ou Estados periféricos na dinâmica da política externa.

Conceitualmente, a política externa foi assumida como resultado de uma combinação das necessidades internas com os interesses externos que definem uma configuração particular, onde os Estados promovem suas alianças e influem, de modo distinto, no sentido de preservar ou equilibrar seu status quo na arena internacional (pág. 15). Aqui, a unidade de análise foi a geopolítica do sistema-mundo, de acordo com a configuração das necessidades do sistema capitalista vivenciado pelos Estados em suas políticas externas. Foram configuradas três formas de uma política externa: a) a primeira forma é a cooperação; b) a segunda é a coerção; e a c) terceira é a integração ou intercâmbio entre Estados, com os quais um Estado central estabelece com outro Estado periférico.

A tese seguiu uma linha cronológica: anos de 1974 a 1990, marcado pela bipolaridade; anos 1990 a 2002, caracterizado por mudanças na conjuntura global e anos de 2003 a 2010, marcados por multilateralismo, reforçado no âmbito das relações do Sul.

Para coletado de dados, foram consultados o Arquivo Histórico do Centro de Documentação oficial do Itamaraty e da Embaixada de Cabo Verde, ambos em Brasília, no Brasil. Levou-se em consideração a identificação de discursos, acordos, tratados e visitas relacionados à rotina burocrática do serviço diplomático. Os dados foram ampliados com entrevistas ao representante brasileiro, em Praia, embaixador Vitor Candido Pain Gobato, e ao representante cabo-verdiano, em Brasília, embaixador Daniel Pereira e através de contatos por e-mail com os encarregados de negócios. Os quais, suponho, sejam os de Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe que, por alguma razão, seus depoimentos não apareceram na tese.

Da bibliografia utilizada, periódicos, documentos oficiosos, acordos, tratados, discursos, visitas, comunicados, telegramas e entrevistas, resultou no corpus da tese, que serviu se de base para a análise a partir da identificação de pautas diplomáticas, demandas, exportações e importações que pareceram na análise da política externa entre esses países.

Análise da política externa brasileira para Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe

A análise de dados se iniciou no contexto do chamado “mundo lusófono”, cujo eixo articulador foi o comércio, aliado à escravização, à evangelização e à colonização,

no contexto do tráfico transatlântico de pessoas e migração forçada de africanos, tendo o Brasil como seu principal destino.

Cabo Verde e São Tomé e Príncipe emergiram como Estados a partir de um projeto colonial, baseado no discurso da mestiçagem e da criolização, com forte tendência cristã. Em Cabo Verde, à época, os principais produtos de exportação foram urzela, coros, algodão, aguardente, sebo e açúcar, sustentados por uma economia de exportação controlada por proprietários de terra, geralmente, portugueses e seus descendentes.

Em São Tomé e Príncipe se predominou a produção de cana-de-açúcar e cacau, introduzidos no país pelos portugueses. Já em Guiné-Bissau distinguiram-se os lançados e grumetes, grupos envolvidos no comércio e nos movimentos cívicos, além de grupos étnicos, cuja mão-de-obra foi introduzida no trabalho forçado e na produção do amendoim, arroz, algodão e a entrega coercitiva das colheitas e melhores terras ao Estado colonial.

A busca pelo “desenvolvimento” foi a base sobre a qual se assentou a política externa do Brasil para África. Em Cabo Verde (anos de 1974 a 1990) as relações com o Brasil acentuaram-se na formação de quadros da Administração Pública, cuja “falta de quadros qualificados nas instituições públicas eram um dos principais empecilhos para o fortalecimento de Cabo Verde” (pág. 181).

Outro setor priorizado foi o de transporte aéreo, tendo em conta as condições geográficas do país, constituído por dez ilhas. “Cabo Verde chegou a oferecer ao Brasil um entreposto no Aeroporto Internacional de Sal para a Embraer” (um conglomerado transnacional brasileiro), para a criação de uma linha área regular que recolhesse cargas no Brasil para vários destinos, incluindo destinos africanos, passando por Cabo Verde.

No campo do comércio exterior, nas relações entre o Brasil e Cabo Verde, destacou-se o refino de petróleo de Angola, por parte da empresa brasileira de combustíveis (Petrobras). Com a democratização (anos de 1990), a pauta de demanda se intensificou, na qual “a eficácia da gestão da ajuda pública e privada para o desenvolvimento permitiu que Cabo Verde figurasse entre os países que receberam mais ajuda per capita (pág. 159), reforçando, assim, sua inserção no mercado. “A valorização do mercado, presente no III Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), de Cabo Verde, foi o instrumento dessa dinamização de gestão de recursos para seu desenvolvimento”. Da parte brasileira, a pauta do Atlântico Sul sempre foi um ativo da política externa do Brasil para Cabo Verde. Houve que considerar a localização estratégica de Cabo Verde, como ponto nodal no comércio transatlântico.

Distintamente de Cabo Verde, a política externa do Brasil para Guiné-Bissau esteve diretamente vinculada à instabilidade política, em decorrência de sucessivos golpes de Estado. Enquanto Cabo Verde priorizou a formação dos seus funcionários da administração pública e investimento em transporte de navegação aérea, Guiné-Bissau, sob o risco de perpetuar a política de golpe de Estado, privilegiou, nas relações com o Brasil, a formação militar no âmbito das reformas das Forças Armadas e das Forças Polícias.

No campo de ensino superior, Guiné-Bissau compartilhou com Cabo Verde algumas similitudes. Suas demandas pelo Programa de Estudantes Convênio de Graduação (PEC-G) e Pós-Graduação (PEC-PG) nas relações de cooperação com o Brasil. Outro ponto comum entre Cabo Verde e Guiné-Bissau foram as linhas de créditos liberados por instituições financeiras brasileiras (a exemplo do Banco do Brasil), por intermédio da Agência Brasileira de Cooperação. Contudo, a política de cooperação externa com Brasil revelou problemas estruturais de dependência externa. Isso porque a política de linha de crédito beneficiava literalmente o Brasil, enquanto país central, reproduzindo, em outras formas, a cooperação tradicional.

Por exemplo, a empresa brasileira Yamaha se beneficiou do crédito para exportar quatrocentos motos RX-80 para a Guiné-Bissau”. No que se refere às relações comerciais guineenses, apenas nos anos de 1990, houve as primeiras importações por parte do Brasil, num “valor muito simbólico”. Contudo, anos 1990, ainda que residual, o comércio exterior da Guiné-Bissau para o Brasil era muito significativo, em comparação com o período atual. Os principais produtos importados de Guiné-Bissau pelo Brasil foram cerâmicos e derivados de alumínios, caldeiras e reatores para uso industrial, plásticos e, em menor grau, importação de produtos básicos, bem alimentícios, como açúcar, arroz, café e carnes (pág. 164).

Bastante semelhante foi a média de exportações do Brasil para África, também considerado residual do ponto de vista comercial: oscilou se de 4,9% (anos 1974 a 1979) para 6,7% (anos 1979 a 1985). Desse porcentual, depreendeu-se duas consequências da política externa brasileira: sua natureza precária, dada pela incipiente presença nas relações com África; e sua natureza contraditória, na medida em que, discursivamente, a política externa brasileira fundamentou-se, ao longo dos anos, nos pressupostos da cooperação do Sul, mas com pouco resultado em suas relações externas de cooperação.

Em Cabo Verde, a presença de Portugal foi mais significativa. Isso se deveu a experiência colonial no arquipélago e, mais recentemente, da diáspora cabo-verdiana em Portugal que fez com que o governo português usasse dessa presença como um instrumento de pressão política nas negociações com Cabo Verde, com mais de trinta mil cabo-verdianos em território português, cujas remessas financeiras contribuíram para o sustento de quase cem mil famílias cabo-verdianas que vivem nas diversas ilhas.

Em São Tomé e Príncipe (de 1975 a 1990) se privilegiou as relações com Brasil no setor da agricultura e pecuária, em especial na produção de cacau, centrada até então na monocultura de uma economia de plantation, em que o Estado se assumiu como empresário. A questão militar aproximaria São Tomé e Príncipe de Guiné-Bissau, mais acentuada no caso guineense, marcado por sucessivos golpes de Estado. Outra característica foi a centralização do poder na figura do presidente Manuel Pinto da Costa e tentativas de golpes de estado na construção de sua nacionalidade e no processo de transição política para a democracia, em que a África reassumiu a importância para a defesa e segurança do Atlântico Sul.

Também foi um período no qual se verificou uma forte retração econômica, na América Latina, no governo Sarney e Collor (no Brasil), anos de 1980. Com a crise dos anos de 1980, na América Latina, com implicações em África, o Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP, hoje partido) reorientou, gradualmente, sua política externa, deslocando-a do antigo bloco soviético para Ocidente (p.195). Isso resultou “em empréstimos com o Banco Mundial (BM) e com o Fundo Monetário Internacional (FMI), principalmente para reabilitação das plantações de cacau santomense, através de gestão estrangeira por créditos multilaterais de financiamento”.

O Estado brasileiro, em função da crise, foi obrigado a redirecionar a base de sua política externa para o setor de educação para África, por meio de concessão de vagas e bolsas de estudos de ensino superior para formação de uma elite nativa africana que pudesse ser favorável às relações com o Brasil.

A análise que se possa fazer dessa política externa brasileira teve duas implicações substantivas. Em primeiro lugar, foi com base na política educacional de ensino superior que o Brasil encontrou justificativas para reforçar sua influência político, através de discurso do “destino comum” e “fundamentos históricos”, em detrimento de relações comerciais e políticas efetivas.  Em segundo lugar, foi através da política de cooperação de ensino superior que o Brasil encontrou os “fundamentos ideológicos” de sua política externa na arena internacional e no âmbito da cooperação do Sul, em que o discurso de “solidariedade” e da “horizontalidade com a África ganhou centralidade nesse período.

Houve um elemento contraditório introduzido nessa política externa, que tem a ver com o descompasso entre o discurso de “horizontalidade” e de “responsabilidade” pelos fracassos de acordos de cooperação. Isso porque na documentação diplomática da representação brasileira, em São Tomé e Príncipe, aliada aos fracassos, foram frequentes expressões como “desorganização do governo santomense” e “inexistência de profissionais aptos para finalizar os projetos”, que nunca saíram do papel. Entendeu-se, então, que a responsabilidade pelo fracasso da política externa brasileira foi estritamente do governo santomense, pela ausência de condições técnicas, não do governo brasileiro.

Essa responsabilização, unilateral, tem algumas consequências: a primeira se houvesse sucesso da cooperação seria atribuído a liderança brasileira no âmbito da cooperação do Sul, mas, como houve fracasso, a responsabilização pendeu-se sobre os ombros de “um estado disfuncional santomense”; já a segunda implicação é o fato de que o discurso da desresponsabilização tentou negar o próprio fundamento da “cooperação solidária” a partir da qual o Brasil baseou discursivamente sua política externa para África em geral e São Tomé e Príncipe, em particular. Observou-se, aqui, uma outra contradição: a “horizontalidade” foi utilizada para depois negá-la, sobretudo, em casos em que ações externas da cooperação brasileira se fracassaram.

Nesta ótica, o discurso de uma comunidade de sangue, da cultura e da história, supostamente compartilhada pela presença portuguesa, passou a ser um significante vazio, sem correspondência em ações concretas no encaminhamento de soluções adequadas, efetivas e urgentes nas relações entre o Brasil e a África para resolução de problemas. Caberia perguntar até que ponto a fraca presença brasileira em ações substantivas de sua política externa nos “pequenos Palop” dificultou sua inserção na arena internacional. Isto porque a redução de cooperação Sul-Sul com os países africanos acabou por reforçar a dependência do Brasil da cooperação Norte-Sul.

Entendo que a justificativa que o Brasil pode ter encontrado para se afastar da África e aprofundar relações Norte-Sul se justificaria por razões políticas e econômicas, nesse período. No primeiro caso – razões políticas – tem a ver com a visão hegemônica que se tinha/tem da África no Brasil, marcado pela lógica escravista, ditada por um contexto de marginalização. No segundo caso – razões econômicas – a crise de 1980 na América-latina, com repercussões mundiais, resultou na diminuição de exportações e importações do Brasil com países objetos de analise nessa tese. A saída encontrada pelo Estado brasileiro foi a de reforçar a política de solidariedade com África e de cooperação com os países de Norte para tentar superar a crise.

No caso da política externa de São Tomé e Príncipe para o Brasil, houve que realçar o centralismo em que o poder político e administrativo foi aglutinado na figura do ex-presidente santomense Manuel Pinto da Costa, que liderou seu país de 1975 até 1991 e de 2011 até 2016. Embora São Tomé e Príncipe tenha sido o primeiro país ex-colônia de Portugal em África a iniciar o processo de transição política para a democracia, com a realização de suas primeiras eleições multipartidárias em 1991, o processo de democratização ficou solapado pela ingerência militar na política doméstica, através de sucessivos tentativas de golpes de Estado registrados no país: as de 1995, 1998, 2003 e 2009, o que distanciaria São Tomé Príncipe de Cabo Verde, sem experiência de intervenção militar no seu processo de transição política.

Uma análise da postura centralizadora adotada pelo então presidente santomense Manuel Pinto da Costa aproximaria da postura assumida pelo então presidente guineense, João Bernaldo Vieira, tanto no regime de partido único oficioso, quanto no processo de transição política para a democracia.

Também o Estado de Cabo Verde procurou redimensionar sua política externa de cooperação internacional para dar respostas imediatas a crise financeira, através de promoção de investimento da China na construção de infraestruturas: construção da Assembleia Nacional Popular, barragens, pontes, estradas, promoção de turismo e desenvolvimento marítimo e, recentemente, construção da Universidade Pública de Cabo Verde. A Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China, um importante entreposto comercial chinês, tem servido de ponto nodal da presença chinesa em África, cujos países contaram, há décadas, com o apoio da China para suas independências. Relações com a China não foram objeto da tese, mas me pareceu oportuno aponta-las, para se demarcar da presença brasileira.

A recuperação econômica, nos anos 1990, tanto no Brasil, quanto nos países africanos, beneficiou uma retomada gradativa nas relações entre o Brasil e a África, também no que se refere a política externa, em que o Brasil procurou se adaptar à nova geopolítica internacional, em nome daquilo que se convencionou chamar de “multilateralismo” da política externa brasileira.

Anos de 2003 a 2010 ficaram marcadas por uma nova guinada na política externa do Brasil para Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, em um contexto internacional de democratização dos Estados nacionais, altamente competitivo do ponto de vista político e econômico. Outro dado ausente na tese, no caso africano, entre 2000 e 2016, houve forte crescimento econômico no Continente, em média 4,6% ao ano, superior à América Latina e Caraíbas, em média 2,9% (base de dados de UNDESA, 2017). Isto possibilitou novas reconfigurações da política externa brasileira, pois, foi à luz desse crescimento da África, que o Brasil renegociou sua posição e discurso com o Continente.

O governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva (de 2003 até 2010), em seus dois mandatos, imprimiu, sem dúvida, um novo conteúdo à política externa do Brasil, diferentemente dos governos antecedentes e precedentes. Considerado pragmático, carismático e nacionalista (pág. 260), suas ações basearam-se no entendimento de uma ordem mundial multipolar, fazendo alianças no nível dos países do Sul e contestando a hegemonia dos países centrais desenvolvidos. Segundo Kamilla Raquel Rizzi (pág. 209), em política externa, Lula reintroduziu o Estado como negociador, incorporando, deste modo, alguns instrumentos introduzidos em segundo plano durante os dois mandatos do governo de Fenando Henrique Cardoso, tanto do ponto de vista econômico quanto político. Aqui, haveria uma aproximação com São Tomé e Príncipe, quando o Estado assumiu o papel de empresário, centrada na figura do presidente Manuel Pinto da Costa.

No campo econômico, houve um crescimento exponencial: um crescimento médio de 325% entre o início e o final dos dois mandatos do presidente Lula. A nível mundial, com 0,99% das exportações, em 2003, esse percentual aumentou para 1,35%, em 2010 (pág. 214). Um elemento importante aqui foi uma tentativa de diminuir a dependência externa do Brasil da cooperação Norte-Sul.

No campo da cooperação técnica, base da política brasileira para os países africanos, houve um visível crescimento em todas as áreas, com uma atuação mais concreta da agência Brasileira de Cooperação (ABC), coadjuvado pelo Ministério das Relações Exteriores. As principais áreas de cooperação com o Brasil foram educação, cultura, comércio exterior, agricultura, pecuária, ciência e tecnologia. A capacidade de Lula da Silva representar as diretrizes da política externa fez com que ele conseguisse transitar livremente em vários países africanos. Como destacou Kamilla Raquel Rizzi (215) “nenhum governo na história do Brasil tenha empreendido qualitativamente e quantitativamente sua ação externa dessa maneira para África, como ocorreu no governo do ex-presidente Lula, em questões multilaterais”.

No setor da educação de ensino superior, por exemplo, no final do ano de 2010, havia aproximadamente cinco mil alunos estrangeiros em instituições brasileiras, incluindo, principalmente, os estudantes da África e da América-Latina. No caso especifico dos países africanos, especialmente Palop, houve ampliação de formação de quadros nacionais, forjados no campo ideológico brasileiro. Um dos instrumentos dessa ampliação foi a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). “A Unilab caracterizou sua atuação na cooperação internacional e intercâmbio acadêmico e solidário com os Estados membros da Comunidade dos Países da Língua Oficial Portuguesa (pág. 209). Com a finalidade de realça-lo, aprofundou-se o discurso de “solidariedade”, um conceito de valor político que reforçou a inserção de Lula em África e no cenário internacional.

Embora possuísse presença em África em diversas esferas de sua política externa, o governo Lula manteve relações estreitas de cooperação com países centrais, como Estados Unidos, Europa e antiga metrópole, como foi indicado na tese.

Na atualidade, a posição brasileira no cenário internacional, no sentido de garantir sua autonomia, ficou comprometida com as mudanças de governo assumidas por Jair Bolsonaro, eleito presidente do Brasil em outubro de 2018. A marginalização do Brasil no exterior, a exemplo de sua política externa para África, recuou em todos os aspectos.

Embora, teoricamente, se tratasse de uma política externa de Estado, o distanciamento do Brasil nas relações diplomáticas com os países africanos foi condicionado pela dinâmica governamental e partidária, com implicações substantivas na mudança de governo. Houve, assim, condicionamentos políticos com implicações econômicas do Brasil para Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, vice-versa, que vão para além de questões meramente técnicas da cooperação internacional no âmbito da política externa do grande Brasil, mas de pequenas relações com os Palop.

JOSÉ MARIA NEVES E A POLÍTICA EXTERNA CABO-VERDIANA

AFINAL, o que o novo Presidente de Cabo Verde sinaliza ao Jornal Folha de São Paulo, em termos de política externa cabo-verdiana?

Por Ricardino Dumas Teixeira [Prof. Universitário no Brasil]

Sua excelência Dr. José Maria Neves, dirigente do PAICV [Partido Africano para a Independência de Cabo Verde] tomou posse do cargo de presidente no dia 9 de Novembro de 2021, após o embate eleitoral com Dr. Carlos Veigas, do MpD [Movimento para a Democracia]. No mesmo dia, concede uma longa entrevista a Fabio Zanine, jornalista do Folha de São Paulo, jornal de maior circulação do Brasil. Contudo, a entrevista concedida pelo recém-empossado Presidente de Cabo Verde, apesar da sua relevância, como expressão da vontade política de afirmação de Cabo Verde no mundo, poderá produzir, entre muitas interpretações possíveis, quatro efeitos diplomáticos, no âmbito da política externa, como expressão da política interna nas ilhas de cabo Verde.

O primeiro é o contexto da entrevista. Fora concedida em um momento de acirrada disputa política no Brasil, com aproximação do novo pleito presidencial, agendado para 2022. A manchete de entrevista do jornal, em letras grandes e vistosas, além de revelar uma determinada linguagem “O Brasil se isolou do mundo, depois de Lula” [Folha, 9 nov. 2021], pode ser interpretado como visão do Governo e do povo cabo-verdiano sobre a política brasileira. Embora o Presidente José Maria Neves tenha afirmado que “as relações são entre Estados, independentemente dos governos que estejam no Brasil ou em Cabo Verde”, presume-se, também, que tais relações independem de figuras políticas que estejam à frente do Estado. Aqui, há uma nítida diferença entre os agentes do Estado no campo administrativo e o Estado como expressão de uma comunidade política. Esta distinção não ficou clara na entrevista, quando parece confundir o Estado e o Brasil com determinada figura política, identificado com a pessoa de Lula da Silva.

Eu gosto do ex-Presidente Lula e nutro certa simpatia com outro ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como sociólogo, mas já mais, enquanto cidadão, confundiria os dois com o Estado. A entrevista parece mais um olhar individual do Presidente José Maria Neves do que a posição de um Chefe de Estado. Posso até acreditar que houve um afastamento do Brasil com a África e com o mundo, de forma generalista, ou aproximação tímida com os países africanos num determinado contexto com a mudança de governo no Brasil, mas já mais diria isto, muito menos um presidente no mesmo dia de sua investidura que se refere à sua visão sobre a política interna de um determinado país: o contexto em que vive o Brasil atualmente vive compete única e exclusivamente ao seu povo. A expressão utilizada não comunga com a diplomacia e o juramento presidencial no ato de posse. Mas essa não é a preocupação, felizmente.

A preocupação me parece outra. Ela consiste na expressão de um sentido em como supostamente o presidente da República de Cabo Verde Dr. José Maria Neves tenha interesse que o povo brasileiro compreenda que quem realmente projetou a imagem positiva do Brasil no mundo e na África, por meio de sua fala. Isto não acrescenta em nada para a política externa cabo-verdiana. Não é a primeira vez que agora presidente José Maria Neves deixa em aberto uma série de questões que pode colocar os esforços do governo cabo-verdiano em uma situação de contingência, relativa à política externa.

Todos nós assistimos sua intervenção no processo eleitoral guineense, como político, disponível na internet, apoiando publicamente o candidato do PAIGC no processo eleitoral para o cargo de presidente da República de Guiné-Bissau. Esse fato, objeto de interpretações, revela muito do significado das intervenções do agora Presidente Dr. José Maria Neves para com a Guiné-Bissau sobre a decisão de queda de governo guineense decretado pelo então Presidente da República José Mário Vaz, eleito democraticamente e, por isso, tomou determinadas decisões que muitos de nós descordamos sobre os sentidos que ele queria repassar para a sociedade guineense e para o mundo em geral. Porém, o discurso usado, na rede social, não me parece razoável, pois, poderia ter consequências mais graves, caso a presidente Dr. Jorge Carlos Fonseca não imprimisse um sinal claro na retoma de cooperação com o novo governo guineense.

O segundo efeito, para um Presidente, que acabou de assumir o cargo, e que já passou por várias experiências de governação em Cabo Verde por quinze anos, como Primeiro-Ministro, tem a ver com reais interesses da entrevista à Folha. Isto é, para quem a entrevista foi dirigida? Qualquer cidadão cabo-verdiano ou não, pertencente ou não à fileira bipartidária em contenda política em Cabo Verde, precisa saber o repertório para qual seu Presidente se dirige em uma determina circunstância. Pode-se supor, por exemplo, que o público da entrevista não seja o povo brasileiro e nem tão pouco o povo cabo-verdiano, a que o Presidente José Maria Neves representa, nos termos da Constituição, tanto nas ilhas quanto em suas diferentes diásporas espalhadas ao redor do mundo, com forte presença acadêmica e profissional no Brasil.

Além disso, a circulação e a direção da entrevista em um determinado meio e possíveis grupos políticos ideológicos, para o qual a entrevista pode estar direcionada e o meio em que foi produzida, há que considerar o que diz a própria Constituição da República de Cabo Verde, em termos de Relações Internacionais, em relação à figura e função do Presidente da República. No seu artigo 11º, a Constituição diz que “O Estado de Cabo Verde rege-se, nas relações internacionais, pelos princípios da independência nacional, do respeito pelo Direito Internacional e pelos Direitos do Homem, da igualdade entre os Estados, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados, da reciprocidade de vantagens, da cooperação com todos os outros povos e da coexistência pacífica”.

A fala do Presidente pode agradar certos grupos à esquerda política brasileira, do qual eu faço parte, mas não parece ajudar consolidar as relações diplomáticas entre os dois povos, que ele jurou respeitar perante à Constituição da República, e apontou na sua entrevista, que, infelizmente, deixou muito ruído, diferente do rumo que o atual governo vem tomando. Não foram poucos os sinais do reforço da cooperação bilateral com o Brasil, que o próprio Dr. José Maria Neves contribuiu para sedimentar. O ex-presidente Jorge Carlos Fonseca que o diga, aquando de sua recente visita ao Brasil. Foram vários acordos rubricados entre o governo cabo-verdiano e o governo brasileiro, que exige a meu ver, ponderação, pois, na atualidade, com a crise sanitária global, Cabo Verde não contará com o apoio externo que contava, quando o presidente era Primeiro-Ministro.

Cabo Verde sempre exaltou e promoveu os valores da boa vizinhança, aparentemente sem conflitos entre as instituições da República. Sempre procurou inspirar outros países, positivamente, de maneira respeitosa, evitando posicionamentos excessivamente ideológicas em matéria da sua política externa, desde a proclamação da sua independência nacional em 1975 e o momento da criação de suas instituições democráticas, administrativas e representativas nos anos 1990 em diante. A tradição da diplomacia e da política externa cabo-verdiana é muito exemplar até o presente momento. É por isso que a fala do Presidente tem peso e consequências políticas diplomáticas em qualquer meio de circulação que se utiliza para a sua difusão externa.

No campo da política brasileira, há que que considerar a crise que o PT [Partido dos Trabalhadores] enfrenta com impeachment da Dra. Dilma Rousseff, ex-presidente do Brasil, ainda não resolvido, que exige máxima consideração, para evitar lógicas distintas de interpretações, não àquelas que supostamente o presidente José Maria Neves quis dizer, daí a minha inquietação. A razoabilidade representa um vigoroso ativo das lideranças cabo-verdianas e da própria trajetória governativa e interventiva do Dr. José Maria Neves em Cabo Verde, na África e no mundo, há décadas de vida pública. Ampliar esse ativo político-diplomático no contexto atual que o mundo e Cabo Verde vive é globalmente recomendável e politicamente harmoniosa nas relações internacionais.

O terceiro efeito, no âmbito da governação em Cabo Verde, parece apontar possíveis tensões entre o Presidente e o Governo. Quando o presidente fala “impõe-se criar mais oportunidades para as Mulheres, em especial para as Mulheres Chefes de Família, uma realidade que não pode ser escamoteada, antes deve ser respeitada e valorizada como um dado da nossa História, da sociologia da família, da economia e das relações humanas no nosso país” [site Mercado Africano, 11, 2021], pergunta-se: quem vai criar tais oportunidades? Quem estaria a escamotear a realidade cabo-verdiana? Quem estudou a Sociologia da Família cabo-verdiana e qual foi a conclusão do seu estudo em relação ao perfil das mulheres?

Quando o Presidente da República, recém-empossado, promete o reforço da cooperação com os quinze Estados-Membros da CEDEAO [Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental], e faz a sua primeira deslocação política para Gana para o encontro particular com o Presidente da CEDEAO, antes mesmo da tomada de posse [A Semana, 28 out 2021], está-se, de alguma maneira, a demostrar a sua preocupação com o reforço da inserção regional africana de Cabo Verde, enquanto novo Chefe de Estado, mas pode ser interpretado como se ele quizesse assumir a função do Executivo, nos rumos da política externa regional e política doméstica das famílias cabo-verdianas em Cabo Verde e em suas diferentes diásporas.

Isto seria muito delicado para as funções do Presidente da República, pois, tais atribuições, constitucionalmente, são de exclusiva responsabilidade do Executivo, nos termos do artigo 184º, da Constituição e das leis, independentemente da vontade política e desejo do Presidente. Ele pode até usar a sua magistratura para sensibilizar o Governo, num diálogo interno interinstitucional para influenciar ação governativa, mas nunca pretender assumir ou tentar assumir as rédeas da política externa e interna e, por isso, não acredito que ele queira assumi-las por mais que sua fala possa ser objeto de análise sobre os significados reais de suas intensões no uso de uma determinada linguagem, que, por sinal, apelativa para o grosso da sociedade civil cabo-verdiana.

O quarto efeito está relacionado à Guiné-Bissau. O fato do Presidente da República de Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, e o seu principal opositor, Eng. Domingos Simões Pereira, líder do PAIGC, tenham sido convidados simultaneamente para a mesma investidura do Presidente de Cabo Verde, pode não parecer problemático, à primeira vista, mas abre espaço para possíveis interpretações que pode reforçar o nível de desconfiança entre os dois Estados. Sobretudo, considerando o apoio explícito do agora Presidente José Maria Neves ao candidato líder do PAIGC, na última eleição presidencial na Guiné-Bissau. E, de igual modo, o apoio do Presidente guineense ao candidato do MpD, Dr. Carlos Veiga, que estive de visita à Guiné-Bissau, mantendo encontro presidencial.

Isto ficou também evidente durante os momentos que antecederam a tomada de posse. Enquanto o MpD, em sua tendência política partidária, deu total cobertura governamental e assistência midiática ao Presidente de Guiné-Bissau [Veja-se Programa de TV TIVER 24, desta semana], o Presidente do PAIGC, Eng. Domingos Simões Pereira foi recepcionado pela líder licenciada do PAICV, Dra. Janira Hoffer de Almada, no mesmo contexto de posse do Presidente José Maria Neves. Isto abre espaço para fissuras bipartidárias, em Cabo Verde, mas sobretudo, com aplicações na Guiné-Bissau, não muito diferente a maneira como ela vem ocorrendo nas relações entre as lideranças dos dois países. Às vezes fica difícil separar a esfera do Estado e a esfera da aliança partidária, mas presente na Guiné-Bissau do que em Cabo Verde, mas ambos vivem essa realidade política em democracia.

A interpretação que se possa fazer é de que as lideranças cabo-verdianas, cientes da situação política precária guineense, preferiram manter uma relação de “solidariedade” com o presidente do PAIGC, e de promoção de “cooperação” com o Chefe de Estado guineense durante a posse presidencial. Desta forma, espera-se garantir espaços políticos futuros com duas figuras centrais que disputam o poder atualmente na Guiné-Bissau, mas igualmente, possíveis apoios de qualquer figura guineense que venha assumir o Estado e o Governo para eventualmente garantir os legítimos interesses de Cabo Verde.

Quando isto acontece, em instância em que ocorre e com o público nela representado na posse, indica, claramente, que os rumos da política externa cabo-verdiana, em relação à Guiné-Bissau, não serão claros para os próximos cincos anos em Cabo Verde, com José Maria Neves, do PAICV, na presidência, e o Governo, do MpD, no Executivo. Embora tenha afirmado que não seria primeira vez que o José Maria Neves coabita com os presidentes de Cabo Verde, e por essa razão, não haveria preocupação para uma nova coabitação, a fala do Presidente, apontadas acima, não parece clara, nesse sentido.

No caso brasileiro, a fala do presidente José Maria Neves na entrevista à Folha parece apontar para o cenário político pré-eleitoral. Ele parece dirigir-se para os grupos à esquerda da política brasileira, inserindo-se na disputa ideológica ao mesmo tempo que sinaliza o seu desejo pessoal de afirmação no contexto mais amplo da política internacional a partir do Brasil [robusto membro da Comunidade dos Países da Língua Oficial Portuguesa – CPLP]. Cabo Verde estaria a caminhar para uma política externa presidencialista? Haveria várias respostas para as declarações públicas do Presidente cabo-verdiano. Uma possível resposta dependerá do cenário que o Presidente parece apontar na relação com o Executivo para a promoção ou não harmoniosa e realista de cooperação institucional entre os órgãos da soberania e da representação política em Cabo Verde, que vão para além da promessa política durante a campanha eleitoral.

11.11.2021