DA POLÊMICA DA INVESTIGAÇÃO DO IMPACTO DA VACINA CONTRA POLIOMIELITE SOBRE COVID-19 NA GUINÉ-BISSAU, ALGUMAS PALAVRAS.

DA POLÊMICA DA INVESTIGAÇÃO DO IMPACTO DA VACINA CONTRA POLIOMIELITE SOBRE COVID-19 NA GUINÉ-BISSAU, ALGUMAS PALAVRAS.

Confesso que apanhou-me de surpresa esta polêmica que veio à luz como uma acção menos responsável ou menos comprometida com a protecção das nossas populações, acção esta que estaria a ser contrariada pela vigilância e sentido de pertença de vários guineenses habilitados para tal.

A intensidade inicial das reações causou-me ainda mais perplexidade e ansiedade, que se juntaram à minha convicção de que haveria com certeza algo de errado, ou que se tratava de um mal-entendido, ou que alguma insuficiência de informação pudesse estar a condicionar toda a polémica.

A primeira questão que coloquei a mim mesmo é, como é possível que as partes envolvidas pudessem começar o jogo do bom e do mau da fita, na praça pública, com as consequência que daí pudessem advir? Isto porque tenho, de igual forma, as melhores impressões, tanto da excelência de como pensam, como daquilo que fazem, do nível de preparação que têm, seja no aspecto científico-académico como ético, além do elevado nível de empenho que têm mostrado, no que diz respeito a defesa dos guineenses e da sua saúde.

Esta polêmica envolveria necessariamente, de forma direta ou indireta e em campos opostos duas pessoas que merecem as minhas maiores estima e consideração, o Dr. Joaquim Silva Tavares (Djoca), médico guineense que vive e trabalha nos Estados Unidos de América e que dispensa por enquanto mais apresentações e Dr. Peter Aaby, antropólogo dinamarquês, perito em matéria de investigação em saúde, especialmente na área de imunização/vacinação, pioneiro nesta importante matéria na Guiné-Bissau, com desempenho e residência de mais de 40 anos no nosso país.

Confesso que fiquei mais baralhado quando vi o nome de Mouhammed Ahmed como secretário permanente do Comité de Ética, não sabia que assim se chamava o nosso estimado Djicó e julgava que foram buscar alguém, algures no médio oriente, para vir assumir responsabilidade desta natureza em matéria tão sensível como de investigações em saúde da população. Mas atenção, se fosse o caso não significaria necessariamente que não existissem guineenses preparados para assumir essa importante função. E que fique claro também, ninguém tem o direito de julgar o outro pela sua procedência, mas havendo necessidade de julgar seria pelo seu desempenho na matéria em questão.

Ainda bem que nos desenvolvimentos posteriores da polémica vieram os ganhos: troca produtiva de informações, oportunidade das partes se conhecerem melhor, descoberta de que afinal são todos da mesma equipa, e são todos bons, como era a minha convicção desde o início, baseado naquilo que conheço de ambas partes.

Curiosamente, e como o meu mano e amigo Djoca, (Dr. Joaquim Silva Tavares) se lembrou e já antecipou a dizer, fui eu pessoalmente que, na nossa companhia sempre agradável, decidi levá-lo a visitar o meu amigo dinamarquês Peter Aaby, atrevo-me mesmo a dizer dinamarquês-guineense, mentor do Projeto de Saúde de Bandim, com quem tive o privilégio de trabalhar e desenvolver relações cordiais de amizade de longa data, de mais de trinta anos, e de quem ainda guardo as melhores recordações. Tive nessa altura grande prazer em juntar estas duas excelências!

Como se desenvolveram as minhas relações fraternas com o Djoca?

Tudo começou com a minha relação de amizade com o seu irmão mais velho, o nosso saudoso Galileu, que era meu colega de turma na escola primária, “Escola Central” Teixeira Pinto, em Bissau. Estavamos no ano de 1965/66, tínhamos na altura 9 anos de idade, Galileu veio a falecer de doença repentina.

Foi um duro golpe não só para a família como para todos nós os colegas de turma e a nossa professora, D. Salomé, tuga (portuguesa) que era como uma mãe para todos nós, seus alunos. Para mim que era muito próximo de Galileu e nos intervalos de aulas, em sua companhia, andávamos frequentemente pela sua casa, que ficava mesmo junto à escola, o sentimento de perda foi muito grande e podem calcular o quanto me custou este acontecimento e a falta do colega e amigo.

Passaram os tempos e a dada altura, como se fosse uma forma de resolver a perda, encontrei naturalmente no Djoca o substituto do meu amigo, seu falecido irmão, ficando também eu disponível para que ele encontrasse em mim um substituto do seu irmão mais velho.

Ao longo da nossa convivência e proximidade, fomos descobrindo agradavelmente certas semelhanças em princípios de educação, que muito prezo, tanto quanto ele: o respeito pela pessoa humana, sem importar a idade, o género, a procedência, o parentesco, a origem ou estatuto social, isso para não falar do sentido de pautar a vida pela honestidade e de vencer pelo esforço próprio. Tudo isto foi-nos tornando espiritualmente ainda mais próximos.

Achei curioso em dada altura quando o Djoca deixou-me entender que seguia os meus passos como estudante, e eu que acredito ter conseguido de facto algum sucesso como tal, em condições e circunstâncias familiares muito difíceis, acredito igualmente que o meu irmão Djoca teve ainda mais sucesso enquanto estudante. Em todo o caso, ambos fomos bem sucedidos enquanto estudantes e éramos exemplos para os outros, de nunca confundir brincadeira com responsabilidade e de nunca ter sido preciso que os nossos pais nos indicassem as horas de estudar ou de brincar.

Ambos viemos a optar finalmente pela medicina, mas antes o meu irmãozito também seguiu os meus passos no futebol e chegamos a estar na mesma equipa vencedora, “Os Onze Africanos” onde fui sempre o capitão, (Caló “captain” como diz ele). Ele ingressou na equipa e conquistou o seu lugar por mérito próprio e nada tinha a ver com a nossa relação, porque além das suas qualidades técnicas, tinha dotações atléticas acima da média e disciplinarmente era um exemplo para todos. Jogava e não falava, até que alguns adversários chegaram mesmo a perguntar se o nosso defesa esquerdo era mudo. Não era não, e nem é, era sim muito fino a jogar nessa posição, não metia nem a mão na bola quanto mais a boca no jogo.

E não era fácil ser titular naquela nossa equipa de “Os Onze Africanos”, onde muitos bons jogadores conseguiam apenas chegar a ser suplentes, alguns até vieram depois mais tarde a jogar na 1ª e 2ª divisão em Portugal. Essa famosa equipa era temida por qualquer outra equipa adversária do seu nível em Bissau, e posso dizer mesmo em toda a nossa Guiné. Eu era então o capitão e líder dentro e fora do campo, numa liderança que se pautava pela camaradagem e solidariedade, pelo espírito de luta, pela disciplina, pelo exemplo, pela frontalidade e sentido de justiça. Para a primeira linha iam os melhores! Pergunto, onde estaria o nosso país se esse espírito fosse levado à política e à governação?

Há pouco tempo encontrei um outro nosso irmão/amigo, Huco Monteiro, que me surpreendeu quando recordava, dizia ele, “Caló tu me deixavas no banco e punhas o Djoca”, fez-me rir antes de lhe dizer: “porque ele era melhor!”; acabamos por rir-nos recordando aqueles tempos. A nossa concorrência era muito renhida em futebol e o Huco Monteiro depois inclinou-se mais para a guitarra, em vez da bola, não sei se alguma lesão o teria condicionado.

Acerca do que sei da contribuição dinamarquesa para a saúde na Guiné e de como se desenvolveram as minhas relações com Peter Aaby

Enquanto médico guineense, fui há 36 anos, o primeiro a ser colocado no Arquipélago dos Bijagós como Diretor do Hospital em Bubaque e responsável pela saúde de todas as Ilhas do Arquipélago. Nessa altura a Dinamarca já apoiava o nosso país significativamente, tal como o fazia Portugal, Itália, Holanda, Suécia, Cuba, China, Bélgica, França, entre vários outros países e organizações internacionais. Estes apoios eram concretizados de formas diversas, tais como através de formação de quadros, assistência técnica ao país, construção de infraestruturas, fornecimento de materiais, equipamentos e medicamentos, além de assistência médica direta.

Quando estava no final da minha missão nas Ilhas Bijagós e pouco tempo antes de ser chamado a assumir as responsabilidades de Director Regional de Saúde em Biombo, em 1985/86, fora conseguido importantes financiamentos dinamarqueses para construção de Centros de Saúde em várias Ilhas Bijagós.

Depois então quando fui assumir a Direcção de Saúde da região de Biombo, mais uma vez o primeiro médico nacional para esta função, encontrei uma região difícil, porque além de ser frequentemente fustigada por epidemias ou surtos epidêmicos (sarampo, cólera, anthrax, etc.), tinha carências de vária ordem, incluindo das vias e meios de comunicação; a maior parte das estradas da região era de terra batida e quase sempre em mau estado. De Bissau até Ondam apenas circulavam no período de manhã os famosos transportes superlotados e com tudo pendurado, eram sobretudo camiões a que davam o nome de “Air Biombo”. A estas circunstâncias se somavam as barreiras de ordem cultural-comportamental da etnia papel – a predominante de região.

Enquanto lá estive, além das funções administrativas inerentes à Direcção, tinha funções clínicas, sobretudo em Quinhamel, tanto no Hospital da Missão Católica onde juntamente com uma freira brasileira muito experiente e dedicada, a irmã Benedita, atendia essencialmente as crianças e grávidas, seguia actividades dos partos e pós-partos e outras questões de saúde materno-infantil, enquanto no Centro de Saúde atendia o resto da população adulta e restantes problemas de saúde. Ainda tinha que fazer intervenções de Saúde Pública em todas as localidades, tabancas, pontas e sectores da região, desde Prábis, Safim, Quinhamel, Clatlé, Ilondé, Bissauzinho, Bijimita, Blom, Dorse, Tôr, Ondam, etc.

Entre as diversas actividades que incluíam consultas externas e urgências, a organização/manutenção da luta contra as grandes endemias (malária, tuberculose, lepra) e a intervenção em surtos epidêmicos ou epidemias, a organização de campanhas de vacinação nas comunidades, em “Estratégia Avançada”, era das actividades que colocava maiores desafios, sobretudo em matéria de disponibilidade de meios de transporte, pessoal em número suficiente, disponibilidade de vacinas e sua manutenção em cadeia de frio, além de mobilização das populações.

Nas campanhas de vacinação contra o sarampo que afetava muitas crianças na altura, tivemos o privilégio de contar sempre com a colaboração de Peter Aaby e sua equipa, vinham desde Bissau, respondendo às nossas solicitações. É esta equipa que alguns anos mais tarde veio a dar origem ao Projeto de Saúde de Bandim. Eles não poupavam meios nem pessoal nessas intervenções em que conseguíamos juntar também o pessoal da missão católica, incluindo as freiras, irmã Beatriz, brasileira, e irmã Julieta, italiana, ambas que tinham idade de ser nossas mães, e que eram muito respeitadas e experientes na comunicação com as populações.

Também conseguíamos ter a participação de membros dos serviços de administração do Comité do Estado, todos apoiando o mesmo objetivo, desempenhando as tarefas que lhe eram indicadas, seguindo as instruções dadas por mim e pelos técnicos de saúde que me acompanhavam. As jornadas corriam com muito entusiasmo desde a manhã, até ao final da tarde, e se conseguia ampla cobertura vacinal.

A gratidão das populações e dos líderes comunitários eram tão evidentes ao ponto de organizarem espontaneamente agradáveis almoços para todo o contingente, onde não faltava carnes de galinhas ou cabritos. Lembro-me com saudades destas jornadas, sobretudo as da Ponta Cabral, onde Honofre Cabral era líder comunitário. Peter Aaby, o nosso amigo dinamarquês-guineense certamente também guarda essas recordações. Os meninos que foram vacinados nestas campanhas são hoje homens e mulheres com mais de 30 anos de idade.

A nossa amizade iniciada desde essa altura com Peter Aaby teve continuidade e mesmo depois que transitei para área de saúde mental, continuou, e através dele pude conhecer muitos dos seus discípulos dinamarqueses que cumpriam parte de seus estágios no Projeto Saúde de Bandim, em Bissau. Fui sabendo que este Projeto ia tendo novos e maiores desenvolvimentos, que proporcionou formações, incluindo mestrados e doutoramentos à muitos, hoje valiosos quadros guineenses que estão no terreno.

Soube com agrado que a Dra. Amabélia Rodrigues tinha integrado o Projeto como Diretora de Investigação, e sei agora que Mouhammed Ahmed (Djicó) integra o Comité de Ética como secretário. Ele era antes um alto quadro dos Recursos Humanos no Ministério de Saúde. Sempre que posso continuo a perguntar pelo meu amigo Peter Aaby, pelo trabalho que continua a desenvolver com a sua equipa. Soube também com muito agrado que em 2015 ele foi distinguido pela Universidade Nova de Lisboa com o título de Dr. Honoris Causa pelos excelentes trabalhos que tem realizado na Guiné-Bissau e não só.

Voltando à polêmica e para concluir

Podem assim compreender porque é que o tom inicial da polémica da investigação do impacto da vacina contra a poliomielite em COVID-19 na Guiné-Bissau não me podia ter passado ao lado, numa altura em que não estava disponível para intervir, e de só me sentir aliviado quando vi a comunicação a entrar no caris acertado e sentir finalmente que todos ficamos a ganhar.

Tendo em conta que problemas desta natureza tem vários ângulos de visualização e questionamento que podem ser ponderados, considerando que a situação de emergência mundial que ainda se vive neste momento em relação ao coronavírus de COVID-19, pairando ainda incertezas várias, todas as linhas de investigação plausíveis, podem ser importantes e urgentes, até se demonstrar o contrário.

E se da nossa Guiné puder sair alguma contribuição, teremos todos nós, sem dúvida, muito orgulho nisso. Porque se recebemos muito do mundo e com satisfação, teremos a mesma satisfação quando formos capazes também de dar alguma coisa ao mundo. Pessoalmente, e consciente dos argumentos prós e contra, se estivesse em condições de o fazer, não me importaria de participar no estudo em questão.

Uma vacina ou um medicamento eficaz contra o COVID-19 são sem dúvida neste momento as soluções mais desejadas. Mas suponhamos que possam vir mesmo a surgir à curto-prazo, presentemente ninguém pode assegurar que não poderiam vir a ser rapidamente ultrapassados ou limitados; no caso da vacina, por eventuais mutações do vírus, e no caso sobretudo do medicamento, pelo eventual efeito adverso, de riscos que não justificam os benefícios, coisas que geralmente só ficam mais claros quando é utilizados em larga escala. Vemos isso frequentemente com medicamentos que num tempo são introduzidos no mercado e noutros tempos são excluídos para tal uso ou mesmo retirados do mercado.

Todas estas incertezas podem ter influências na ponderação dos esforços de investigação, numas e noutras linhas, e mais vale tentar várias opções que limitar as possibilidades nesta luta contra o tempo, mesmo estando consciente de que nem todas as linhas de investigação podem ter o sucesso esperado. O acautelar e resolver questões protocolares prévias, assim como questões de segurança, é sempre uma tarefa obrigatória em qualquer investigação. É tudo que tenho a dizer.

Parabéns e muito obrigado a todos!

Carlos A. Gomes

carlosagomes66@gmail.com

05.07.2020