Simbólica de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau

Por Leopoldo Amado

O testemunho presencial de Mário Dias é sem dúvida uma peça imprescindível para um melhor enquadramento da historiografia da guerra colonial “versus” guerra de libertação, de resto, algo que enquadra perfeitamente no significativo esforço que a Tertúlia tem vindo a desenvolver de forma empenhada, entre outras plausíveis razões, porque todos estão profundamente conscientes – penso eu – de que os povos sobrevivem sempre às turbulências próprias de uma guerra, qualquer que ela seja, donde a importância do estabelecimento da necessária ponte de ligação com as novas gerações, através da memória histórica.

Porém, apesar de muito limitada no tempo (11 anos) e no espaço (pouco mais de 30.000 Km2), as malhas históricas em que se processou e se desenvolveu a guerra colonial e/ou guerra de libertação, conforme o lado dos contendores onde nos posicionamos, revela-se de uma profunda complexidade, quer pelo potencial de estandardização factual que a sua evolução comporta, quer pelas intrincadas conexões que os acontecimentos ou episódios inerentes apresentam, aconselhando este estado de coisas a uma atitude de humilde resignação metodológica ante a evidência, de resto compreensível, na medida em que a existência de eventuais ou prováveis obliterações, estas últimas decorrentes dos défices de objectividade com que a temática é aqui e acolá aflorada, contanto nos convençamos de que tanto tanto as abordagens que procurem explanar uma visão de conjunto (aparentemente, mais cómoda) como as que apenas nos dão uma visão parcelar (aparentemente, mais trabalhosa) afiguram-se autonomamente importantes por um lado e, por outro, altamente complementares aos esforços tendentes a uma mais cabal e mais bem sucedida reconstituição histórica.

Assim, o justamente ou o impropriamente denominado Massacre de Pindjiguiti (abstemo-nos metodicamente, pelo menos por agora, a tecer juízos de valor), apresenta-nos como bom exemplo para se ilustrar a complexidade referida, na medida em que, não obstante inéditos e importantes, os factos relatados como fazendo parte da sua decorrência apresentam-se-nos também, à jusante e a montante da ocorrência, como factores limitativos à uma abordagem com horizontes mais abrangentes. Efectivamente, reportando-nos ao período que, à jusante do processo que o antecedeu Pindjiguiti, temos de convir que este não foi senão um marco, uma referência e, muito provavelmente, o cumulativo e o auge de um sentimento que se expressou como se expressou – violentamente, é certo –, pese embora também o facto de se possível discernir suficientes elementos à montante da ocorrência, elementos esses que, tanto quanto possível, podem ajudar-nos a conferir uma interpretação histórica à fenomenologia que, por comodidade, designaremos doravante por Pindjiguiti.

Convenham-nos então de que Pindjiguiti, isto é, o fenómeno considerado enquanto tal, é deveras tributário de inúmeros acontecimentos que o antecederam, desde os mais longínquos aos mais próximos, uns e outros variando em função da longevidade, intensidade e/ou projecção que tiveram no imaginário colectivo guineense. Assim, independentemente das influências exteriores e dos ulteriores desenvolvimentos no plano internacional que directa ou indirectamente desembocaram no “boom” das independências africanas em 1960, o povo guineense sempre resistiu à colonização. Atestam-no, entre outros aspectos, a denoda resistência oferecida a ocupação colonial portuguesa que, iniciado nos finais do século XIX, prolongou-se praticamente até a ao início da segunda metade do século XX, mediando, assim, pouquíssimo espaço de tempo entre o final do período da resistência à ocupação e o da emergência do embrionário nacionalismo guineense que - coincidente e curiosamente -, surge concomitantemente no preciso momento em que o poder colonial também tinha acabado de criar as condições mínimas para iniciar a extensão da administração a maior parte do território.

É certo, outrossim, que acontecimentos tal como a segunda Grande Guerra e suas ressonâncias na Guiné, diminutas que foram, contribuíram igualmente para que o povo guineense começasse a questionar o seu papel e o seu lugar na História e no Mundo. Aliás, Rafael Barbosa lembra-se de os jovens de Bissau se terem posicionadodurante durante a segunda guerra mundial do lado dos Aliados contra a Alemanha de Hitler, seguindo com entusiasmo e acrescido e interesse os media internacional (sobretudo a BBC e Voz da América) o evoluir dos acontecimentos no teatro das operações, tal a suspeita que alimentavam de que a neutralidadeera que Portugal dizia manter era dúbua ou mesmo falsa, na medida em que era evidente o apoio súbtil que Portugal conferia a Alemanha de Hitler. No entanto, por si só, esta atitude dos então jovens pré-nacionalistas estavam ainda longe de levar-nos a aferir da existência nessa altura de uma crença ou da antevisão segundo a quais jogava-se também, de certo modo, o futuro dos povos das colónias africanas com a II Grande Guerra.

Estava-se na Guiné, isso sim, perante manifestações libertárias, mas algo difuso, tanto mais que junto aos "grumetes" e elementos da pequena burguesia local, o ideal libertário bifurcava-se também na vontade oculta de ascensão na sociedade e estruturas do poder coloniais. Vivia-se, convenhamo-nos, naquilo a que hoje se convencionou denominar-se de protonacionalismo ou pré-nacionalismo, apesar de que de, na década de "40" do século XX, essas aspirações libertárias quase apenas se circunscreverem como contraponto da exploração imposta pelo desumano e repressivo aparelho colonial e, só residual ou subsidiariamente, como resultante de uma hipotética influência ou impulso importado do movimento das ideias e aspirações libertárias que já se fazia sentir no plano africano e até internacional, mormente através do movimento pan-africanista, cujas ressonâncias – não obstante terem a chegado a Guiné desde 1910, com a fundação da Liga Guineense –, não tiveram nem continuidade e nem expressão assinalável, tal a repressão que o temerário Teixeira Pinto ("autrement" conhecido pelo epíteto de “Pacificador”) engendrou contra os seus membros mais activos e que conduziu posteriormente a sua proibição em 1915.

Para lá do ambiente gerado pela longa e penosa guerra de ocupação colonial (“pacificação”) versus resistência à ocupação – que durou oficialmente até 1936 (apesar de que várias importantes revoltas foram aqui e acolá assinaladas até aproximadamente 1950), o relacionamento entre o aparelho colonial e as populações guineenses eram, em geral, bastante hostis. Inclusivamente, em 1942, toda a estrada de Plubá foi aberta pelos prisioneiros que, na maior parte dos casos, não quiseram ou não puderam pagar a "daxa" ou o imposto de palhota. Durante todo o período que durou a II Guerra Mundial, no tempo do Governador Vaz Monteiro, "havia em Bissau, Safim e Quinhamel algo que em muito imitava os campos de concentração na Alemanha do Hitler. "O maior assassino era o administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, que veio a ter aqui preso o Benjamim Correia. A partir daí, o filho da Guiné tomou consciência de que havia que lutar pela sua causa" (Entrevista de Elisée Turpin a Leopoldo Amado).

No início, a pequena burguesia organiza-se num quadro africano, mas cujo fim não é ainda a independência nacional. Trata-se de mais um desejo confuso de encontrar o seu lugar, de emergir socialmente. Mas a dominação portuguesa não é ainda contestada, a aspiração a assimilação mantém-se, nesta etapa, largamente espalhada. Isto apesar de alguns elementos da élite guineense serem já sensíveis a uma “reafricanização”. A prova eloquente disso é o facto de a maior parte dos "notáveis" guineenses da sociedade colonial pertencerem ao Conselho Legislativo do Governo da Guiné, tal como Mário Lima Whanon (comerciante), Dr. Augusto Silva (advogado), Joaquim Viegas Graça do Espírito Santo (aposentado e comerciante residente em Bafatá), Dr. Armando Pereira (advogado), Benjamim Correia (comerciante), Carlos Domingos Gomes (comerciante) e Dr. Severino de Pina (advogado).

À estes juntaram-se outros guineenses pertencentes à pequena burguesia, sendo de reparar a participação de cabo-verdianos e portugueses que na altura eram claramente anti-situacionistas. Este grupo, que não escondia igualmente as suas pretensões de ascensão na sociedade colonial, dava também, paradoxalmente, o seu inequívoco apoio ao emergente nacionalismo guineense. Os notáveis desse grupo que se destacaram, tendo por isso merecido um registo das suas actividades pela PIDE, foram Eugênio Rosado Peralta (industrial de pesca), Manuel Spencer “Tuboca” (comerciante) e Fernando Lima (comerciante), os quais foram acusados de fomentarem a rebeldia entre os guineenses considerados indígenas, chegando mesmo alguns deles mais tarde a aderir aos ideais de libertação, embora sem nela tomarem parte activa .

Com efeito, a maior parte dos povos da Ásia tornou-se independente após a II Guerra Mundial. Em Outubro de 1946, com o fim de realizar a união de todos os africanos, realizou-se lugar em Bamako (Mali) uma reunião em que se fixaram os princípios do Ressemblement Democratique Africain (RDA), propondo-se a fusão de todos os agrupamentos e partidos democráticos de cada território num partido democrático unificado, passando o RDA a ser inicialmente dirigido por um Comité de Coordenação, apesar de que sempre se debateu ao longo dos anos com a unidade proclamada. No decorrer deste período, a acção das massas africanas, as organizações políticas e os seus dirigentes, impuseram nos territórios vizinhos, sobretudo nas colónias francesas, um certo número de realizações no campo económico e social que eles próprios consideraram positivas, pelo que a ideia da unidade das organizações políticas africanas na luta pelaindependência ganha novamente vulto entre essas mesmas massas e nas organizações não aderentes ao RDA.

As organizações que não aderiram ao RDA agrupam-se no MAS (Movimento Socialista Africano) e na Convenção Africana, esta animada por Leopoldo Sédar Senghor. Em 1957, foi criado o PAI (não confundir com o PAI de Amílcar Cabral), o qual lança a ideia da independência africana. Em Julho de 1958, verifica-se uma reunião em Paris dos principais dirigentes africanos, onde se reafirmou o principio da unidade com vista à independência. Em Maio-Junho de 1958 a França atravessou uma grande crise, retomando os destinos do país o General De Gaulle. Este desloca-se a Conakry e no decurso da sua visita declara que os povos da África sob dominação francesa podiam escolher entre responder “sim” e aceitar a sua Constituição que sob o nome da “Comunidade” substitua a chamada “União Francesa” ou responder “não”, caso em que o território se tornaria independente.

A maior parte dos territórios, confiantes nas promessas feitas, votou “sim”. Só a Guiné por votação popular realizada pelo PDG respondeu “não” em 28 de Setembro de 1958 à Constituição do General De Gaulle e, em 2 de Outubro, a sua independência era proclamada. Esse feito deveu-se sobretudo a acção do PDG (criado em Maio de 1947), sete meses depois do Congresso de Bamako, o qual resultou da fusão étnica das associações que na Guiné Conakry e especialmente à acção de Sékou Touré que dirigia o sindicato e era o Secretário Político do Partido. A República da Guiné adoptou uma bandeira tricolor – vermelho, amarelo e verde em que o vermelho simboliza a determinação do povo em aceitar todos os sacrifícios até ao derramamento do sangue, o amarelo a cor do sol e das areias de África e o verde a cor da esperança e da vegetação africana, cores estas que se encontram nas bandeiras de quase todos os países do Oeste africano, diferindo apenas a disposição.

Em Março de 1952, Cabral subscreveu em Lisboa uma exposição ao Presidente da República em que, entre outras coisas, reclamava-se a retirada de Portugal do Pacto do Atlântico. Seguidamente, desembarca em Bissau a 20.9.52, no navio “Ana Mafalda”, tinha ele 34 anos, após ter estado em Cabo Verde (1949), onde, segundo o próprio, fez "todas tentativas de acordar a opinião pública contra o colonialismo". Chegou a Bissau a sua primeira mulher a 2.11.52. Foi contratado pelo Ministério do Ultramar como Adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné até 18.3.55, data em que regressou à Metrópole. Nessa altura, Portugal tinha o compromisso internacional de apresentar o Recenseamento Agrícola da Guiné e até então este trabalho não fora sequer iniciado. Depois de vários contactos de trabalho, particularmente nos momentos em que Amílcar Cabral exercia interinamente as funções de chefe de serviço, o Governador decidiu confiar-lhe a execução daquela importante tarefa, na qual veio a ser secundado pela engenheira Maria Helena Rodrigues (recentemente falecida em Braga), sua esposa na altura. "Em cada tabanca deixava uma palavra como ele a sabia dizer, embora o povo só viesse a interpretá-la devidamente quando lá chegasse a palavra de ordem do Partido para a luta" (Entrevista de Aristides Pereira a Leopoldo Amado). O Recenseamento Agrícola acabou por permitir a Amílcar Cabral conhecer mais de perto as populações e os seus problemas, pelo que constituiu-se assim na antecâmara da mobilização urbana e rural que se lhe seguiram.

Em 1952, Amílcar Cabral sugeriu a formação de um Clube de Futebol apenas reservado aos naturais da Guiné, opinando que dentro do mesmo devia existir uma biblioteca para a elevação do nível cultural dos associados. Várias reuniões foram realizadas tendo também para a arrecadação de fundos sido efectuado um baile no bairro Chão de Papel. Nessa altura, Amílcar Cabral tentou, aparentemente sem sucesso, disfarçar as actividades políticas com a criação desse um clube desportivo e recreativo de cujos subscritores da petição foram: o próprio Amílcar Cabral, Carlos António da Silva Júnior, João Vaz, Ricardo Teixeira, Pedro Mendes Pereira, Inácio Carvalho Alvarenga, Paulo Martins, Julião Júlio Correia, Martinho Gomes Ramos, Víctor Fernandes, Bernardo Máximo Vieira. O aparente insucesso acabou todavia acabou por insuflar a ideia de associativismo. Segundo Luís Cabral, " (…) o projecto de associação começava a tomar corpo e a ter aceitação, enquanto o Amílcar provava não estar disposto a recuar diante das dificuldades. E a denúncia surgiu (…) ”. A não admissão neste Club de europeus acabou por gerar dissidências deixando os propósitos do seu mentor bem à vista: lançar as bases duma organização de nativos, irmanando-os na mesma fé e nos mesmos destinos. O Clube não chegou a ser autorizado, mas o certo é que ficou entre os nativos a ideia duma união entre todos.

Com efeito, durante a sua permanência nesta cidade, diz uma notada PIDE, “o Eng.º Amílcar Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de actividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade de direitos dos nativos e, como método de difundir as suas ideias por meios legalizados, o Eng.º pretendeu e chegou a requerer juntamente com outros nativos, a fundação de uma agremiação desportiva e Recreativa de Bissau, não tendo o Governo autorizado ”. A mesma nota dava ainda conta de que “(...)eram anti-situacionistas o João Vaz, ajudante de mecânico, de 33 anos, natural de S. Tomé, Carlos António da Silva Semedo Júnior, de 21 anos, estudante, a estudar em Lisboa; Pedro Mendes Pereira, enfermeiro de 1ª classe de 52 anos, Inácio Carvalho Alvarenga, 42 anos; Julião Júlio Correia, de 50 anos de idade, Martinho Gomes Ramos de 35 anos, Víctor Fernandes, de 30 anos, Bernardo Máximo Vieira, de 33 anos, tendo esses mesmos indivíduos assinado a petição referida no sentido da criação de um clube denominado Clube desportivo e recreativo de Bissau, destinado ao desenvolvimento de actividades nativistas, superiormente orientadas pelo engenheiro Amílcar Cabral.

As reuniões, presididas por Amílcar Cabral para esse fim, realizavam-se clandestinamente na casa de João da Silva Rosa (guarda livros da NOSOCO). Nela tomavam parte Isidoro Ramos, João Rosa, Víctor Robalo (agricultor em Bigimita), Martinho Ramos (empregado da Gouveia), José Maria Dayves, Elisée Turpin (empregado ao tempo da SCOA), Godofredo Vermão de Sousa (professor primário) e Crates Nunes (carpinteiro). Para suprir as necesssidades recorrentes dessas actividades, foi nomeado tesoureiro Estevão da Silva (Alfaiate).

Foi com estes fundos conseguidos que financiaram as cópias dos Estatutos que Cabral elaborou e que depois levou a uma reunião para ser apreciado e aprovados, secundando este acto a constituição de uma Comissão que os deveriam levar a aprovação do Governador. Essa Comissão foi então constituída por João Rosa, Víctor Robalo e João Vaz (alfaiate) que igualmente não conseguiu a aprovação do Governo, justamente porque uma das clausulas dos Estatutos aludia ao facto de que nesta agremiação não podiam tomar parte os europeus e caboverdianos, razão pela qual passou-se a dizer que Amílcar Cabral estava feito com os "grumetes".

Depois de 1954, alguns povos de África tornaram-se independentes. No Sul da Guiné, mais concretamente em 1956, registaram-se certas actividades dos nativos nas áreas de Cacine e Bedanda a favor do Ressemblement Democratique Africain, tendo-se mesmo formado o que apelidaram de “clubes de trabalho”, em quase todas as povoações vizinhas. Como resposta, as autoridades coloniais prenderam alguns responsáveis e deram perseguição a outros, pelo que estas acções foram desmanteladas. Em 1955, José Ferreira de Lacerda (que estudou em Coimbra e teria sido aluno de Salazar - Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado), futuro patriarca e líder lendário do MLG, redigiu, a pedido de César Mário Fernandes e José Francisco Gomes (assinada por várias pessoas)uma “Representação” que foi entregue ao Presidente da República de Portugal aquando da visita deste a Província da Guiné, documento esse onde se condensava, segundo os seus subscritores, o essencial das aspirações da Guiné.

Paralelamente, nas eleições para membros do Conselho do Governo da Província da Guiné faziam parte dos elementos favoráveis aos candidatos da "oposição", os seguintes guineenses: Benjamim Correia, Armando António Pereira (advogado de 54 anos e candidato a membro do Conselho do Governo da Província), proposto pelo grupo de Benjamim Correia e constituído pelo branco Luís Mata-Mouros Resende Costa, 36 anos de idade, natural de Bissau, que nesse processo encarregou-se de expedir circulares, em colaboração Gastão Seguy Júnior, 36 anos, oficial de diligências do Juízo de Direito da Comarca, natural de Bolama. É igualmente digno de registo a existência, mais ou menos paralela, de outro grupo de nacionalistas que actuava sob a coordenação de Mário Lima Wanon e do qual faziam parte o Dr. Artur Augusto Silva, o Dr. Severino de Pina, Godofredo Vermão de Sousa, Víctor Robalo, Armando António Pereira, Manuel Spencer e Crates Nunes. Embora as acções desenvolvidas nesta fase da luta fossem poucas, devido a feroz repressão e apertada vigilância da PIDE, o certo é que contribuíram para a mobilização em Bissau, particularmente as camadas ligadas à pequena burguesia local.

A independência do Gana (1957) e as perspectivas da independência da Guiné Conakry e do Senegal (respectivamente, 1958 e 1959) rapidamente transformaram a predisposição latente de luta pela independência dos guineenses num entusiasmo difuso, alimentado pela expectativa imediatista duma libertação pacífica da Guiné, à semelhança do que ocorrera com os territórios africanos vizinhos. Coincidentemente, e sob o impulso de elementos directamente doutrinados por Amílcar Cabral, registou-se em 1957 uma primeira grande greve dos trabalhadores no cais de Pindjiguiti em Bissau, apesar de que é a independência da República da Guiné (Conakry) que iria doravante funcionar como o ponto de partida e o “leitmotiv” para um amplo movimento para a independência.

Chega-se assim aos inícios da década "50" do século XX com um nacionalismo guineense já mais amadurecido, pois, nesse período, para além de toda a carga histórica e cultural herdada da resistência à ocupação colonial, este nacionalismo começou a ser directa ou indirectamente influenciado pela evolução política no Senegal e da Guiné Conakry, apesar de que as organizações surgidas na altura terem um carácter incipiente, reflectindo todos eles um certo idealismo. O primeiro das organizações políticas a aparecer foi o MING (Movimento Nacional para a Independência da Guiné). António E. Duarte Silva( "A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa" , Afrontamento 1997) atribui a paternidade da fundação do MING, em 1955, a José Francisco Gomes ("Maneta") e Luís da Silva ("Tchalumbé"), não obstante saber-se que o MING tinha por detrás a mão de Amílcar Cabral. Em qualquer dos casos, MING não teve propriamente acções conhecidas e nem grande projecção. Seguiu-se-lhe o PAI (Partido Africano para a Independência, fundado em 1956 por Amílcar Cabral (e que só se transformaria em 1962 em PAIGC), apesar deste Partido ter sido forçado a experimentar um período de profunda hibernação (1956-1959), dado que o Governador Peixoto Correia, depois de devidamente informado sobre as actividades de Amílcar Cabral, proibiu-o de estabelecer residência na Guiné, transferindo-o compulsivamente para Angola.

Portanto, é nesse hiato, em que as actividades do PAI quase desaparecem, que é fundado em 1958 o MLG (Movimento para Independência da Guiné), uma formação política que integra sobretudo guineenses, nomeadamente os dignatários com que Cabral havia começado a trabalhar desde 1952 e que, entretanto, assumem ou pretenderam assumir a liderança do movimento pela independência. João Rosa, um dos líderes históricos do MLG lembra (segundo o seu auto de interrogatório na PIDE, datado de 1962) de ter integrado este movimento a convite de José Francisco Gomes e de ter participado na primeira reunião do MLG em princípios de 1958, na qual estiveram igualmente César Fernandes, Ladislau Justado Lopes, este último mobilizado por Rafael Barbosa, elemento que viria a revelar a grande veia mobilizadora, chegando mesmo a protagonizar entre 1959 e 1960 uma rotura que praticamente definhou a estrutura residual do MLG em Bissau, apesar de que, em jeito de “revanche” e antecipação ao PAI, o MLG ter desenvolvido, após a referida rotura, uma ou outra acção clandestina com o objectivo de demarcar-se publicamente do PAI, à exemplo do correio que enviou a todas as repartições públicas no dia 8 de Fevereiro de 1960, de um “Comunicado do Movimento de Libertação”, de resto, em tudo semelhante a já referida “Representação” que o Lacerda produziu a pedido de César Mário Fernandes e José Francisco Gomes ao Presidente da República de Portugal em 1955.

Eram ainda da nata fundadora do MLG indivíduos tais como Tomás Cabral de Almada, Rafael Barbosa, Paulo Lomba, Aquino Pereira, Alfredo Menezes e José Ferreira de Lacerda, o patriarca do MLG e líder consensual deste movimento, tido desde 1948 como o líder do Partido Socialista, que só não participou no acto da fundação do MLG porque, à data da sua consumação, encontrava-se em Lisboa, no gozo de licença graciosa na qualidade de funcionário administrativo, tanto mais que, segundo palavras de Elisée Turpin, “(...) logo após a Segunda Guerra Mundial, uma organização que tinha como cérebro principal o guineense José Ferreira de Lacerda, funcionário público em Bolama, liderava um movimento que de alguma forma tinha influência no Conselho do Governo colonial, chegando quase a ganhar uma eleição para o provimento desse órgão, quando foi abafado e reprimido pelas autoridades coloniais (...)" (Entrevista de Elisée Turpin a Leopoldo Amado) ”.

Outra peça documental imprescindível para se compreender e enquadrar as acções do MLG, pelo menos do período que se estende de 1958 ao Pindjiguiti, são os clarividentes autos de interrogatório da PIDE de Isidoro Ramos (ainda vivo). Aí ele é taxativo ao lembrar-se ter visto, em princípios de 1958, um grupo de indivíduos em frente a Farmácia Lisboa (cuja proprietária, Sofia Pomba Guerra, era uma comunista desterrada pela PIDE para Moçambique e depois Guiné) que o abordarem sobre questões relativas a independência. Segundo ainda os autos de interrogatório de Isodoro Ramos, participaram nessa reunião Ladislau Justado Lopes (enfermeiro), Epifânio Souto Amado (empregado de farmácia), César Mário Fernandes (empregado do trafego do cais de Pindjiguiti), Rafael Barbosa ( “O Coxo”, ou o “Patrício”, oleiro da construção civil), José de Barros (guarda-fios dos CTT). Isidoro Ramos lembra-se ainda de, uns dias mais tarde, ter sido abordado por Ladislau Justado Lopes que o informou de que iriam formar um Movimento de Libertação e que estavam a ver que pessoas é que podiam ser admitidas, pelo que imediatamente anuiu ao convite no sentido de integrar o Movimento de Libertação, após ter sido informado pelo seu interlocutor de que Fernando Fortes (funcionário da Estação postal dos CTT) e Aristides Pereira (telegrafista dos CTT) também faziam parte desse grupo.

Salvo raras excepções, de 1958 a 1961, numa amálgama inextricável, alguns destacados dirigentes do MLG e do PAI, indistintamente, partilharam, voluntária ou involuntariamente o mesmo espaço político, coincidindo essa fase com o período em que ainda se acreditava ser possível, a breve trecho, sobretudo da parte do MLG, o início do processo que havia de conduzir a Guiné "dita portuguesa" à independência. Na verdade, a criação em Bissau, em 1958, do MLG (Movimento de Libertação da Guiné), a par das perseguições das autoridades coloniais, constituiu-se no mais sério problema para os propósitos unitários que Amílcar Cabral postulava na Guiné, na luta contra o colonialismo português. O MLG, que desenvolvia acções numa perspectiva política pouco elaborada, cedo hostilizou Amílcar Cabral, a quem alcunhou pejorativamente de "caboverdiano". Este movimento acusava os caboverdianos de terem ajudado os portugueses na dominação colonial da Guiné e, perante a iminência de independência, pretenderem substituir os colonialistas. A miragem de uma independência prestes a concretizar-se, à semelhança do que ocorreu nas colónias francesas da Guiné "dita francesa" e do Senegal, precipitou nas hostes do MLG a tendência para a organização de um movimento que procurasse congregar no seu seio alguns poucos guineenses ilustres, dando assim primazia a necessidade de sublimação das inquietações mais personalizadas que colectivas, relegando para um plano secundário a preparação para a luta armada e a estruturação do movimento em termos populares.

O ambiente de luta pela independência, levou a que os nacionalistas guineenses e caboverdianos de Bissau se posicionassem a favor do candidato da oposição, Humberto Delgado, nas eleições presidenciais de 1958 que opuserem este a Américo Tomás. Conta Aristides Pereira que “(...)Eu, o Fortes e outros patriotas organizamos as coisas de maneira a dominar a situação e fizemos um trabalho subterrâneo de forma a que chegasse às pessoas o que quiséssemos, por exemplo, as listas de voto de Humberto Delgado. Foi assim que a administração ficou perplexa quando apareceram em todos os círculos votos a favor do mesmo. Mas apesar de haver muito boa vontade da nossa parte, havia também muita falta de experiência. Porém, as nossas acções só começaram a ter alguma expressão prática depois da passagem do Amílcar na Guiné. Antes eram apenas ideias " (Entrevista de Aristides Pereira a Leopoldo Amado).

Como quer que seja, é dado adquirido que o PAI, enquanto tal, até pelo hiato referido que caracterizou a sua quase inacção entre 1956 e 1959, não teve, pelo menos directamente, uma acção ou influência decisivas nas acções que viriam a desembocar em Pindjiguiti. Diferentemente do PAI, a mesma asserção já não pode aferir-se relativamente ao MLG que teve, de facto, uma assinalável e directa participação nos acontecimentos (Entrevista de Paulo Gomes Fernandes a Leopoldo Amado). Efectivamente, activistas do MLG tais como César Mário Fernandes (empregado do tráfego do cais de Pindjiguiti), Paulo Gomes Fernandes e José Francisco Gomes tinham-se há muito empenhado em acções de discreta mobilização e consciencialização política dos trabalhadores portuários em geral e dos marinheiros e estivadores do cais de Pindjiguiti em particular .

Com feito, Amílcar Cabral só regressaria a Guiné em Setembro de 1959, isto é, um mês após Pindjiguiti, mas não antes sem ter feito um verdadeiro périplo aos países africanos recém independentes (Congo Kinshasa, Gana, Libéria, etc.) junto dos quais começou discretamente a procurar apoio político e material para a luta de libertação nacional. Assim, a reivindicação a posteriori da paternidade de Pindjiguiti por parte do PAI(GC) só se pode compreender na medida em que tanto o MLG como o PAI partilhavam indistintamente, como já se referiu, o mesmo espaço político, a mesma clientela, chegando mesmo muitos membros do PAI a serem concomitantemente do MLG e vice-versa, de resto, tendência essa que em certa medida se acentua mesmo depois de consumada a rotura entre as duas formações políticas, sobretudo a partir do momento em que a partir de Conakry e Dakar Amílcar Cabral, movido pelo imperativo da união na luta contra o coloniasmo, passou a produzir e a expedir para Bissau inúmeros panfletos em que, à cautela, omitia de propósito quer a sigla do PAI quer a do MLG, para apenas se referir ao Movimento de Libertação da Guiné e Cabo-Verde, os quais, de resto, eram clandestinamente distribuídos em Bissau por elementos de filiação dupla, particularmente os que, não renegando o MLG em favor do PAI, tal como fez Rafael Barbosa, de alguma maneira permaneceram no PAI, sob a influência deste último.

Curiosamente, a PIDE conseguiu tardiamente reconstituir, através da sua rede de informadores em África, todos os passos de Amílcar Cabral neste périplo (itinerário, autoridades contactadas, assuntos versados, etc.), na medida em que tal reconstituição só se concluiu quando Amílcar Cabral tinha já saído de Bissau, mas após ter informado os correligionários que iria instalar a Sede do exterior do PAI em Conakry, a qual, doravante, se articularia com a Sede do PAI do interior, que acabou clandestinamente por ser instalada pouco depois numa palhota, algures em Bissalanca.

Nessa sua meteórica passagem por Bissau( 14 à 21 de Setembro de 1959), Amílcar Cabral acordou com os seus principais colaboradores, na altura Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Rafael Barbosa e João da Silva Rosa em como largaria tudo e seguiria para a República da Guiné (Conakry) de onde enviaria directrizes. Efectivamente, a decisão de Amílcar Cabral de escolher um poiso de apoio na Guiné-Conakry foi devidamente sustentada com o exemplo de Pindjiguiti, pois que para ele era a prova iniludível da natureza permanentemente violenta do sistema colonial que, sintomaticamente, tinha maior força nos centros urbanos, donde a razão porque era preciso proceder a uma extensa e meticulosa preparação para a guerra de libertação e a consequente mobilização dos camponeses para responder com violência à violência colonial. É essa linha de raciocínio que presidiu ao envio, a 15 de Novembro de 1960, de um Memorandum a que Salazar nem sequer se dignou responder, no qual propunha uma série de medidas "para a liquidação pacifica da dominação colonial", secundando-o também, na mesma lógica, a "Nota Aberta ao Governo Português", na qual, em jeito de "última tentativa para a liquidação pacifica da dominação colonial" , reitera o teor do Memorandum de Novembro de 1960.

No entanto, em Bissau, consumada que foi a rotura entre o PAI e o MLG, este último Movimento de Libertação quase que desapareceu, vindo todavia a ressurgir-se das cinzas no além fronteiras, a saber, em Dakar, Ziguinchor e Conakry, sobretudo a partir do momento em que um número relativamente considerável de nacionalistas guineenses tiveram que acorrer a essas países recém independentes, seja na qualidade de emigrantes económicos, seja para darem continuidade as acções políticas, ou motivados conjuntamente pelos dois factores, sobretudo após Pindjiguiti e a subsequente grande vaga de repressão que em Abril de 1961 foram efectuada pela PIDE, seguindo-se-lhe uma outra, igualmente da responsabilidade da PIDE, ocorrida em Fevereiro de 1962. Nestas correntes de emigração, divisam-se motivações que se reportavam a certo sentimento de concorrência em relação ao PAI, mas também era possível descortinar nelas um certo frenesim alimentado pela ideia imediatista da independência.

Foi o caso, por exemplo, dos enfermeiros que fugiram para a Guiné Conakry desde 1959 e que trabalhavam todos no Hospital “Ballay” como Paulo Dias (que veio posteriormente a ascender ao cargo de Presidente da FLING-COMBATENTE - uma das facções dissidentes da FLING, Frente de Libertação para independência Nacional da Guiné), João Fernandes e Inácio Silva, Fernando Laudelino Gomes, sendo este último o locutor principal de um programa radiofundido semanalmente a partir da rádio Conakry sobre a Guiné "Portuguesa", e que era basicamente alimentado por notícias que denunciavam as reais ou pretensas atrocidades do colonialismo com base en informações que César Mário Fernandes e Rafael Barbosa enviavam clandestinamente para Conakry.

No Senegal, o MLG enraizou-se sobretudo entre os inúmeros refugiados guineenses ali instalados, calculados em cerca de 60.000 pessoas. Dakar acolheu ainda outras organizações tal como a UPG (União Popular para a Libertação da Guiné), a UPLG (União Popular para a Libertação da Guiné), o Ressemblement Democratique Africain de La Guiné (RDAG) que, desde 1956 fez propaganda no sul da Guiné, em especial na área de Cacine, para além da UNGP (União dos Naturais da Guiné-Portuguesa). Em Conakry, o médico e nacionalista angolano-santomense, Hugo Azancot de Menezes, propositadamente expedido para Conakry no quadro do Centro de Estudos Africanos (uma dissidência protagonizada no seio da Casa dos Estudantes do Império essencialmente por Amílcar Cabral, guineense-caboverdiano, Mário de Andrade, angolano e Francisco José Tenreiro, santomense) e do MAC (Movimento Anti-Colonial), pelo que Hugo Azancot de Menezes passou a enquadrar embrionariamente os guineenses nacionalistas ali emigrados através do “Mouvement pour l’indépendance des Territoires sous la domination colonial portugaise”.

Reportando-nos ao Pindjiguiti enquanto tal, acontecimento ocorrido na sequência da greve dos trabalhadores do cais de Bissau (Pindjiguiti), a 3 de Agosto de 1959, não nos parece nem relevante, nem curial e nem sensato, atiçar uma estéril polémica acerca do número de trabalhadores mortos ou feridos. Infelizmente, porque certamente nunca atribuí importância acrescida a questão do número de mortes, não fotocopiei e nem guardei as referências (cotas) de um ou dois relatórios circunstânciais feitos pela então PSP, relatórios esses que cheguei de manusear e ler nos Arquivos da PIDE/DGS, na Torre do Tombo. No entanto, da leitura desses relatórios, fiquei com uma vaga ideia de que os números de mortos aí descritos roçam a casa dos vinte e poucos, não atingindo assim os 50 que tradicionalmente a historiografia oficial do PAIGC assinala. Porém, não se podendo negar a ninguém o interesse em apurar exactamente o número de mortes e feridos de Pindjiguiti, em que ficamos então?: no quantitativo que nos é sugerido pela historiografia oficial do PAIGC? No do brilhante depoimento de Mário Dias ou na suposição numérica que eu próprio introduzi?

Nos trilhos da procura da verdade, abstendo-nos sempre de emitir qualquer juízo de valor, convenhamo-nos de que persistem ainda questões pertinentes e legítimas a colocar, as quais, entre inúmeras outras plausíveis, podíamos assim tentar alinhavar: Mário Dias apenas refere-se ao quantitativo dos mortos contados localmente, não se referindo ou ignorando os que eventualmente vieram a morrer na sequência dos ferimentos registados? Mário Dias refere-se aos mortos contabilizados na sua presença ou ao quantitativo aferido pela versão que lhe teria chegado ao conhecimento? Será um caso típico de propaganda o quantitativo de mortos que alude a historiografia do PAIGC? Mesmo supondo que o(s) relatório(s) a que me refiro o(s) existente(s) nos Arquivos da PIDE/DGS) situa, de facto, a ordem de grandezas na casa do vinte e poucos mortos, será que o(s) quantitativo(s) ali estampado(s) corresponde(m) na realidade à verdade dos factos?

Como quer que seja, para lá da veracidade ou não desses números e sem nos iludirmos com a possibilidade imediatista de virmos a deparar de forma mágica com toda a verdade, importa sobretudo tomar as declarações dos contendores com cautelas redobradas, seja pela via da confrontação de entrevistas e depoimentos realizados ou a realizar (inclusive com o máximo de sobreviventes ainda vivos e testemunhos presenciais possíveis), seja pela via da prova de autenticidade heurística aplicada ao fenómeno, através de uma aturada investigação que privilegie a confrontação cruzada do teor da documentação disponível com o das entrevistas ou de testemunhos presenciais.

Acresce ainda, já o referimos, a necessidade de adoptarmos uma postura de humildade perante as naturais dúvidas metódicas que imensos aspectos e episódios relativos à guerra colonial versus guerra colonial suscitam, em virtude de se reportarem a acontecimentos recentes que se ligam ao campo da chamada História imediata e que, por isso mesmo, ainda não criou, naturalmente, a necessária estandardização historiográfica susceptível de a conferir um maior grau de visibilidade e sistematização, aliás, razão porque nos seus meandros abundam “zonas cinzentas” cujo grau de verosimilhança ou de distorção, têm ou podem ter diversas e prováveis explicações: necessidade de um maior labor de investigação que melhore o estado actual dos conhecimentos sobre a matéria; motivações de natureza política; segredos e/ou interesses ocultos de Estados; razões de índole “propagandística” ou de deliberada falsificação, “tout court”.

Os poucos exemplos que a seguir daremos, alguns conhecidos do grande público, são ilustrativos do quanto se disse. Nos finais de 1970 o Estado Maior do Exercito Português publicou um relatório que aludia a 2600 baixas nas forças do PAIGC durante os anos de 1969 e 1970, assim repartidas:

1969

Mortos......................614
Feridos......................259
Capturados................165
Total..................1038

1970

Mortos......................895
Feridos......................449
Capturados..................86
Desertores..................132
Total..................1562

Vê-se claramente que estas estatísticas apenas obedeciam a desígnios de propaganda ou da guerra, pois de forma nenhuma podiam corresponder à verdade dos factos, na medida em que é simplesmente incrível que um exército de guerrilha cujo contingente máximo seria na ordem dos 5000 e que tinha perdido em dois anos de guerra 2600 combatentes, sem que a luta tivesse diminuído de intensidade, antes pelo contrário. Isto não precisa de comentários. Tomando em conta os relatórios secretos do Estado-Maior português, as forças do PAIGC sofreram entre 1963 e 1966 as seguintes perdas, «entre outras perdas»:

1963

Mortos....................1 497
Feridos.......................240
Capturados................287
Total.......... 2 006

1964

Mortos....................1 589
Feridos.......................448
Capturados.............1 492
Total........... 3592

1965

Mortos....................1 153
Feridos.......................397
Capturados..............1 761
Total............3311

1966

Mortos.....................1 125
Feridos........................256
Capturados.................700
Total............ 2081


Como não possuímos dados referentes a 1967 e 1968, iremos considerar, para estes anos, a média dos anos anteriores. Assim, teríamos, para cada um deles:

Mortos ...........................1 336
Feridos ...........................335
Capturados ....................1 010
Total.............. ......2681

O que totalizaria, compreendendo as pretensas perdas em 1969 e 1970, um total de 18. 889 perdas entre os efectivos do PAIGC no decurso dos 8 anos de luta armada. Se considerarmos as ditas «outras perdas», podemos arredondar este número para 20.000. Mesmo o observador mais distraído ou o menos favorável à causa da libertação por que o PAIGC dizia bater-se, concluirá que estes números são a melhor propaganda. Na realidade, numa guerra como que decorreu na Guiné entre 1963 e 1974, e nas condições concretas da Guiné, um movimento de libertação que tenha sofrido 20.000 perdas e que continuava com sucesso o combate contra forças numérica e materialmente bem superiores, realizaria um feito singular, senão um milagre.

Na altura da publicação desses números de nada serviu uma entrevista de Spínola à Televisão portuguesa, na qual afirmou: “No caso particular da Guiné, dos seus 550 mil habitantes, um número que não atinge os 80000 abandonou o território nacional ou encontra-se refugiado no mato». Ora, sabe-se que, segundo os números apresentados pela ONU na altura, cerca de 60 mil habitantes da Guiné estavam refugiados, só no Senegal. E como 80.000 menos 60.000 é igual a 20.000, devemos concluir que, segundo os números oficiais dos balanços portugueses, secretos ou tornados públicos, eles teriam já matado, ferido ou capturado todas as pessoas que, na Guiné, estariam refugiadas na floresta.

Um outro exemplo que ilustra o quanto se disse, prende-se com a espectaculosidade com que os serviços de informação e propaganda do PAIGC (de longe o melhor e com maior audiência africana e internacional dentre todos movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas) reivindicou em Julho de 1970 o derrube de um helicóptero que transportava uma importante delegação parlamentar portuguesa na Guiné, quando, na verdade, o aparelho simplesmente não teria resistido a um forte tornado que acabou por vitimar todos os seus ocupantes. Aliás, bastaria uma varredura comparativa dos Comunicados de Guerra do PAIGC ou os relatórios escuta das emissões radiofundidas pelo PAIGC (existentes no Arquivo da PIDE/DGS) com os informes militares do Exército Português na Guiné (Intrep’s, Sitrep’s, Supintrep’s, etc.,) para darmos conta que a propaganda entre os contendores desencadeava frequentemente uma atmosfera de verdadeira guerra de comunicados e que, tanto de um lado como doutro, justamente porque compreendiam que a propaganda era uma importantíssima dimensão da guerra, faziam tudo para que os mesmos obedecessem a estratégias militares, mas igualmente a desígnios político-diplomáticos, para além da acção psicossocial.

De resto, esses comunicados tinham também um denominador comum: não raras vezes, eram elaborados com base numa torrente de factos cuja verosimilhança mantinha uma relação de base com o real acontecido, mas apenas como ponto de partida para daí ampliar-se ou amputar-se de forma mitigada os desenvolvimentos "ipso factu" provenientes do teatro das operações, obviamente, com artifícios e/ou subterfúgios que reforçam a propensão de confundir desde o mais neutral, até o mais céptico ou atento observador.

Com efeito, à montante do ciclo fechado da guerra colonial versus guerra de libertação, não é mais possível obliterar-se o direito que assiste a todos de qualificar este ou aquele episódio como um embuste político ou militar ou uma monstruosa mentira, apesar de termos de reconhecer que, do ponto de vista estrito da investigação histórica, ganhar-se-ia qualitativamente mais se se procurar indagar as fontes disponíveis no sentido de compreender e se possível interpretar as pretensas ou as aludidas distorções, oficiais ou oficiosas que sejam, ao invés de sobre elas se tecer juízos de valor que só aparentemente se nos apresentam como axiomas, quando, na realidade, ressentem-se frequentemente de uma assaz descontextualização, nas suas imbricadas conexões e bifurcações factuais.

À distância dos anos da guerra, confidenciou-me um ex-elemento dos Serviços de Informação e Propaganda do PAIGC das circunstâncias em que foi mais ou menos redigido o Comunicado de Guerra que reivindicou para o PAIGC o derrube do helicóptero que então vitimou os deputados portugueses. Com efeito, disse-me ele que quando abordou Amílcar Cabral, indagando-o se apenas devia no Comunicado noticiar a morte na Guiné de uma importante delegação parlamentar portuguesa, este respondeu-o: “Olha, a verdade é que, de facto, nada tivemos que ver com o sucedido, mas estamos em guerra. E em guerra, acontecimentos desses não caem do céu sem que deles tiremos os dividendos possíveis”. Assim, o PAIGC elaborou o Comunicado a que se deu a maior difusão internacional. Quanto a real dimensão do sucedido, não obstante os desmentidos vários das autoridades militares portuguesas, os mesmos não colheram provimento nos areópagos internacionais da altura, tanto mais que o PAIGC já tinha granjeado enorme prestígio em matéria de organização político-militar e contava já, no seu palmarés, inclusivamente, com o derrube confirmado de algumas importantes aeronaves da FAP (Força Aérea Portuguesa).

Mas voltemos ao Pindjiguiti, afinal, objecto principal do comentário que nos propusemos escrever, e que já vai longe, à propósito do texto de Mário Dias. Em primeiro lugar, ocorre-nos rebater a ideia redutora de que Pindjiguiti teria apenas sido uma mera reivindicação laboral cujos contornos escapou ao controle das autoridades que, em consequência, viram-se na obrigação e na contingência de usar da força. Se por um lado demostramos já que à jusante do processo libertário guineense Pindjiguiti circunscreve-se como um elo importante na cadeia de acontecimentos directa ou indirectamente a ele relacionados, pelo que não é e nem pode ser tomado como um acontecimento isolado, pontual ou circunstancial, por outro, ocorre questionar, como normalmente se faz em situações de tumultos, se na decorrência de Pindjiguiti teria havido, de facto, real necessidade de uso da força das armas por parte das autoridades coloniais? Por outras palavras, será que a resposta das autoridades coloniais teria sido proporcional à gravidade e a suposta violência gerada pelos grevistas?

Porém, se relativamente ao enquadramento histórico de Pindjiguiti nos posicionamos inequivocamente do lado da tese que aponta para a necessidade de sua contextualização histórica, já em relação as circunstâncias que guindaram esta mera ou complexa contenda laboral que, estranhamente, apenas se saldou em mortos num dos lados da contenda, em lugar de aqui e acolá conjecturar com base em juízos de valor, preferimos por agora manter uma postura de dúvida metódica e aguardar serenamente que se faça mais luz sobre o estado actual dos conhecimentos sobre a problemática, se assim o podemos chamar, na media em que, de um e outro lado, muito para além das prováveis ou reais lacunas existentes na historiografia, é iniludível do nosso lado a convicção de que Pindjiguiti representou e representa (com paralelismo português talvez similar ao alcance simbólico que engendrou o sequestro do “Santa Maria” por Henrique Galvão), um importante factor de consciencialização e um ponto de viragem decisivo no processo libertário da Guiné-Bissau.

Esta interpretação e esta percepção, independentemente da forma como foi depois objecto de tratamento por parte da historiografia oficial do PAIGC, teve-a "avant la lettre" Amílcar Cabral, com a clarividência e a capacidade peculiares de antever as situações que sempre o caracterizou. Quando a XVª Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua reunião plenária de 14 de Dezembro de 1960, aprovou a resolução 1514, mediante a qual estabelecia os princípios para a concessão da independência aos territórios sob domínio colonial e proclamava solenemente "a necessidade de eliminar, rápida e incondicionalmente, o colonialismo em todas as suas formas e manifestações", Amílcar Cabral e os nacionalistas das ex-colónias reunidos à sua volta na CEI (Casa dos Estudantes do Império) e depois no Centro de Estudos Africanos e no MAC (Movimento Anti-Colonial), convieram da necessidade de uma acção espectacular com vista a chamar à atenção da comunidade internacional sobre a situação das colónias portuguesas, particularmente os de África.

Nesse sentido, Amílcar Cabral e Mário de Andrade deslocaram-se várias vezes a Londres entre 1959 e 1960, pelo que datam dessa época as primeiras denúncias internacionais do colonialismo português, as quais foram sobretudo feitas pelo escritor e africanista britânico Basil Davidson, secundados também com conferências de imprensa que, aqui e acolá, Abel Djassi (pseudónimo de Amílcar Cabral) e Mário de Andrade foram dando em Londres e que acabaram por servir de antecâmara a grande conferência de imprensa que os nacionalistas representantes das colónias portuguesas realizaram depois em Dezembro de 1960.

Assim, escolhida a cidade de Londres por razões óbvias, obtido o apoio de certos círculos hostis ao colonialismo português e redigido em língua inglesa uma brochura que Amílcar Cabral intitulou "Facts About Portugal's African Colonies", realizou-se uma concorrida conferência de imprensa apresentada por parte de cada um dos representantes das colónias portuguesas (pelo PAI: Amílcar Cabral e Aristides Pereira, pelo MPLA: Mário de Andrade, Viriato da Cruz e Américo Boa Vida e pela Goa League: João Cabral). Marcelino dos Santos de Moçambique encontrava-se em Londres, mas não tomou parte na Conferência de Imprensa que, de resto, para além de ter versado sobre a situação de cada uma das colónias de Portugal representadas, deu particular ênfase ao massacres neles cometidos.

Efectivamente, é nessa brochura de autoria Amílcar Cabral que ele faz, no plano internacional, a primeira denúncia de Pindjiguiti, de resto, texto esse que apresentou também como o primeiro relatório perante o Conselho especial da ONU em Junho de 1962 e a 12 de Dezembro do mesmo ano, desta feita, quando prestou declarações perante a 4ª Comissão da ONU. Tratava-se, claro está, de conquistar a adesão, desavisada ou não, dos círculos londrinos e da comunidade internacional, pelo que afigura-se difícil aferir ou excluir a hipótese de que a descrição desses massacres teriam sido ou não alvos de excessivo empolamento, tanto mais que no intróito do Facts About Portugal's African Colonies, Amílcar Cabral foi incisivo ao espelhar os objectivos subjacentes: “ (...) é preciso conhecer e dar a conhecer os objectivos do inimigo para melhor o combater – tarefa que urge realizar não só junto dos militantes directamente engajados, como junto da opinião africana e internacional, ainda mal informada e muitas vezes iludida pela ideologia colonial portuguesa (...)”.

Porém, é importante referir-se que as denúncias internacionais de Pindjiguiti que – catalisaram em medida considerável a sua interiorização e longevidade no imaginário colectivo guineense – foram posteriores ao “Memorandum” e “Nota ao Governo Português” endereçados por Amílcar Cabral ao Governo português, o que demonstra que desde cedo o PAI optou sempre por enquadrar e mesmo legitimar o seu substracto ideológico, pelo menos em termos de enunciado, identificando-o com os princípios da legalidade internacional, mormente com o postulado das Nações Unidas e os Direitos Humanos. No fundo, o objectivo que Amílcar Cabral perseguia, perante o silêncio das autoridades coloniais portuguesas, era a obtenção da legalidade e da atmosfera internacionais propícias ao desencadeamento da guerra, segundo o postulado que ele próprio definiu como o "supremo recurso", e que acabou de certa maneira por se incorporar no Direito Internacional, ou seja, o direito de recurso a todos os meios possíveis, inclusivamente os violentos, para erradicar o colonialismo.

Aliás, não foi por acaso que, na sequência da grande conferência de imprensa de Londres, no dia 25 de Junho de 1962, o PAI ataca a vila de Catió (destruição da jangada de Bedanda e cortes de fios telefónicos e estradas com abatises), marcando-se este acto, do lado do PAIGC, a passagem à acção directa, tal como se havia prometido em Londres, pois a luta armada só começaria no ano seguinte, com o ataque ao quartel de Tite, a 23 de Janeiro de 1963.

Daí que, para além das denúncias de carácter económico, político ou humanitário, Amílcar Cabral tivesse também apelado no "Facts About Portugal's African Colonies"(...)para todas as forças democráticas e progressistas do mundo, para os povos e para os Governos anti-colonialistas, para as organizações sindicais, da juventude, das mulheres e dos estudantes, para as organizações jurídicas internacionais e, em particular, para os Governos dos países africanos e asiáticos, para que um auxílio concreto e imediato seja concedido ao nosso povo em todos os planos, com vista à libertação dos patriotas presos e ao desenvolvimento da nossa luta de libertação nacional. (...)". Em particular, renovava "(...) o seu veemente apelo às Nações Unidas para que, em defesa do seu próprio prestígio aos olhos do mundo, se decidam a tomar, sem demora, medidas eficazes para acabar com os crimes dos colonialistas portugueses no nosso país e obrigar o Governo de Salazar a respeitar o direito do nosso povo à autodeterminação e à independência nacional. (...)".

Ora, para lá do provável ou mesmo real empolamento de Pindjiguiti e da justeza ou não das formas e conceitos, sempre discutíveis, sobre a forma como Pindjiguiti foi etiquetado (contenda laboral, massacre ou carnificina) ou ainda do quantitativo de mortes que se saldou na decorrência do acontecimento enquanto tal, temos para nós que o que se afigura importante é o reconhecimento da importância e o alcance históricos que o mesmo teve, à jusante e à montante da guerra colonial/guerra de libertação, no contexto do processo libertário do povo guineense. Aliás, não foi por acaso que depois de Pindjiguiti o PAIGC logrou atingir uma assinalável mobilização que permitiu o desencadeamento da luta armada de libertação. Também, não foi por acaso que no decorrer da guerra colonial/ guerra de libertação, invariavelmente, o PAIGC normalmente assinalava a efeméride com ataques simultâneos a várias localidades, inclusivamente os centros urbanos, sobretudo a partir de 1968.

Não foi igualmente por acaso que em 1962, os vários partidos e movimentos de libertação que pululavam em Dakar e Conakry (mais contra o PAIGC do que contra o colonialismo português) decidiram criar a 3 de Agosto desse mesmo ano uma frente de luta, a FLING. Por fim, não foi também por acaso que Spínola, por ironia do destino, mas com objectivos claramente à vista, procedeu, no âmbito da sua política da "Guiné Melhor", a 3 de Agosto de 1969, a uma espectacular libertação de cerca de uma centena de prisioneiros políticos guineenses, dos quais Rafael Barbosa, ex-Presidente do PAIGC, bem como todos os que se encontravam na colónia penal d da Ilha das Galinhas, da Colónia Penal de Tarrafal em Cabo Verde e os que se encontrvam no Forte de Roçadas, em Angola, em pleno deserto de Moçamedes.

Para fechar este texto – que inicialmente apenas tinha o propósito de tecer um comentário em torno do texto de Mário Dias –, mas que acabou por se alongar demasiadamente, pois comporta(va) a preocupação de subsidiariamente ir dando vazão ao repto lançado por Luís Graça no sentido de trazer à colação elementos disponíveis dos Arquivos – assinalo, para fechar, como dizía, que mesmo não subscrevendo algumas ideias expressas por Mário Dias (as quais procurei rebater com a devida lisura e respectiva contra-argumentação de que me fui valendo - tanto os que parcialmente sustentaram a minha tese de doutoramento como as que serviram outras investigações) - , afirmo e reitero a importância de que se reveste o texto de Mário Dias, de resto, uma contribuição extraordinária para o actual estado do conhecimento sobre a matéria, na justa medida em que, muito para além da importância narrativa e historiográfica que encerra, voluntária ou involuntariamente, quebra igualmente o tabú de abordagem sobre o passado recente da guerra colonial/guerra de libertação que, paradoxalmente, reforça-se à medida que sobre o seu término se avolumam os efeitos da erosão dos tempos, talvez porque ainda se nos afigura lenta e demorada a catarse que o seu conhecimento dessa mesma guerra devia suscitar e catalizar – já tarda! –, em ordem à efectivação de uma maior reconciliação que se impõe entre os actores passivos e activos da mesma, independentemente do lado da barricada em que a viveram ou nela participaram.

Pese embora as normais diferenças de leitura do "événementiel", fundado este último em distintas interpretações que se nos opõe relativamente ao mesmo sujeito histórico (o que é salutar), e ainda as naturais reservas que me suscitaram algumas passagens do texto de Mário Dias, tanto mais que parte do mesmo reporta-se a uma situação de retransmissão do que lhe foi transmitido (a Oral History também tem dessas armadilhas) e porque também, estranhamente, não se referiu a presença no cais de Pindjiguiti de soldados africanos como Domingos Ramos (seu conhecido) e outros como o Constantino Teixeira, vulgo Tchutchú Axon – futuros comandantes da guerrilha do PAIGC); pese embora isso tudo, como dizía, do meu lado não restam dúvidas relativamente a preocupações ou motivações que a ambos move – e nisso estamos conversados! –: alertar para a necessidade de uma cada vez maior necessidade de desmistificação e clarificação das naturais “zonas cinzentas” (as “meias-verdades ou mesmo “inverdades”, certamente existentes) e que ainda conspurcam a novíssima abordagem histórica da guerra colonial/guerra de libertação, em ordem à reposição, tanto quanto possível, da(s) verdade(s) histórica(s) a que legitimamente todos aspiram, obviamente, adentro da não menos importante constatação de que ninguém é detentor de toda a verdade histórica, qualquer que ela(s) seja(m), pelo que não se pode pretender, pelo menos por agora, que ela seja única e axiomática.

Para lá da obrigação que temos de preservar e partilhar os legados da nossa História comum, é natural e compreensível que subsistam – porventura, subsistirão sempre –, perspectivas interpretativas dissonantes, estas últimas, talvez decorrentes dos novos paradigmas que actualmente consubstanciam o devir das ex-colónias (hoje, países independentes que procuram legitimamente um lugar no contexto africano e no concerto das Nações) e de antiga potência administrante (hoje, um país que se pretende moderno, com uma democracia consolidada e que, legitimamente, aspira a um lugar igualmente digno no contexto europeu e no mundo).

Leopoldo Amado
Fevereiro de 2005