OS LIMITES HISTÓRICOS DE UMA FRONTEIRA

TERRITORIAL :

GUINÉ "PORTUGUESA" OU GUINÉ-BISSAU

Autor: Carlos Lopes

Dr. Carlos Lopes

Janeiro de 1994

A actualidade do triângulo territorial no qual se encontra inserida a Guiné-Bissau é regularmente marcada por indícios de agitação centrífuga, que, ao contrário de certas aparências, tem raízes históricas bem profundas.

Em vários trabalhos publicados anteriormente tenho tentado defender uma hipótese que não parece muito popular: a de que a existência das delimitações territoriais actuais tem contribuído para historicidades cruzadas entre o que é hoje a Guiné-Bissau, Casamansa e Gâmbia.

Neste pequeno artigo tentarei resumir os argumentos principais que me levam a pensar que o território Guiné-Bissau, de uma certa forma, é uma realidade inócua, ainda mais artificial do que a Guiné "portuguesa".

Existem fundamentalmente duas formas de ler a realidade guineense: uma privilegia a componente exógena, e por essa razão desenvolve uma argumentação baseada na presença e historiografia europeias; outra concentra-se no desenvolvimento da historiografia endógene, e como tal colide com a primeira.

TESE EXÓGENE

A tese exógene pretende que a presença europeia de cinco séculos na zona então conhecida por Rios de Guiné é o factor socio-político e económico mais marcante. Através da historiografia dessa presença consegue-se facilmente justificar as relações privilegiadas, particularmente de Portugal, até ao século XVII, e depois também de França, Inglaterra e Holanda, com os "rios do sul". Inúmeros cronistas e outros testemunhos provam a natureza do comércio transatlântico e também trans-costeiro, as tentativas de ocupação territorial até ao século XIX, bem como os principais motivos comerciais.

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A partir do século XIX, com o advento da disputa do Congo, as potências coloniais à procura de consolidar o seu controle das matérias primas cedo perceberam da necessidade de desenvolver uma administração baseada na ocupação territorial. Assim começam as campanhas de pacificação, depois assimilação, e outros artifícios tendentes a proteger uma melhor ocupação do espaço político no hinterland. Este processo não foi pacífico e não conseguiu vitórias imediatas. Certamente, no que depois se formalizou como Guiné "portuguesa", a tradição de resistência foi extremamente importante, e criou dificuldades consideráveis aos projectos de expansão portuguesa.

Portugal conseguiu, no entanto, amigalhar um pedaço dos rios de Guiné e fê-lo, através de uma administração ligeira, com sede nas ilhas de Cabo Verde. A ligação então estabelecida foi depois reivindicada pelo movimento de libertação nacional, que explorou as relações existentes com a metrópole dos seus dirigentes.

Na realidade o desenvolvimento do proto-nacionalismo africano lusófono tem uma história específica com ramificações obrigatórias em Lisboa e sempre se posicionou em função de uma luta das colónias portuguesas.

Nesse âmbito a formação da Conferência das organizações nacionalistas das colónias portuguesas (CONCP) em princípios dos anos 1960 assegurou o elo umbilical entre as premissas proto-nacionalistas e as teses dos modernos movimentos de libertação nacional, que lhe seguiram.

No caso concreto da Guiné-Bissau a reivindicação territorial foi sempre baseada, como no resto do continente, no sacro-santo princípio de respeito das fronteiras herdadas do colonialismo, instituído pela Organização de unidade africana (OUA). Tal princípio consolidou uma visão errada de nação e criou os problemas com que até agora a África se debate.

O PAIGC (Partido africano para a independência da Guiné e Cabo Verde) na esteira destes conceitos aceitou mais facilmente a relação com as ilhas de Cabo Verde do que com os territórios ou países vizinhos com quem a maioria da sua população tinha relações mais chegadas. Assim se chega a uma luta armada consolidando o Acordo luso-francês de 1886 que delimitou as fronteiras terrestres da Guiné portuguesa, embora seja facto conhecido que tal acordo não respeitou as entidades étnicas ou políticas existentes na região, isso não incomodou de sobremaneira os princípios do Programa maior do PAIGC.

Para a elite crioula da Guiné-Bissau a relação com Cabo Verde, muitas vezes até de ordem biológica, era evidente. É a referência constante a uma luta com o fundamento do que viria a transformar-se em reivindicações lusófonas tinha sentido. É preciso não esquecer que os proto-nacionalistas apenas desejavam o seu reconhecimento como cidadãos autênticos de Portugal e só depois de goradas estas tentativas nasceu um sentimento de revolta mais profundo e de reivindicação independentista. Ainda hoje para os crioulos que continuam a dominar a Guiné-Bissau contemporânea a ideia de GÉOPOLITIQUES DES MONDES LUSOPHONES 137 nação é associada ao desenvolvimento da sua própria história e objectivos que pretende transformar o ideal nacional numa luta pela afirmação da historicidade aqui designada de exógene.

TESE ENDÓGENE

É a tese inovadora e polémica. Trata-se de demonstrar a necessidade de perceber os fenómenos socio-políticos da Guiné-Bissau e da região em que está inserida a partir de uma historicidade endógene que minimiza a relação com o exterior. Através de uma pesquisa detalhada das fontes primárias existentes nos arquivos portugueses, franceses e ingleses é possível constatar aquilo que a tradição oral mandinga tem vindo a martelar desde sempre: que do século XII até meados do século XIX o território entre os rios Gâmbia e Nunez foi dominado por estruturas políticas mandingas, primeiro criadas depois herdeiras dos Estados do Alto Niger, nomeadamente do Império do Mali.

A mansaya1 Kaabunke2, estrutura estatal que simboliza essa dominação mandinga, é uma descoberta recente da historiografia. Foi só em 1972, no "Congresso de estudos mandingas de Londres", organizado pela School of Oriental and African Studies, que apareceram as primeiras comunicações do que iria transformar-se na grande descoberta de numerosos historiadores : o Kaabu, os Mandingas ocidentais, são os verdadeiros herdeiros do Império do Mali e da epopeia gloriosa de Sundyata Keita. E a história singular de Kaabunke esconde o seu ainda maior impacto sociológico. Na realidade o Kaabu foi um Estado unificador das várias etnias da região e os seus diferentes espaços de influência abrangeram a cultura de toda esta vasta planície do Sudão Ocidental. É pois imprescindível conhecer a história do Kaabu para melhor compreender a relação estreita entre os que são hoje os Estados da Gâmbia e da Guiné-Bissau e as regiões da Casamance, do Senegal Oriental e do Futa Jalon guineense.

É pois paradoxal que o recurso as fontes escritas europeias permita descobrir e desenvolver uma tese endógene que razões políticas ainda prevalecentes nos nossos dias insistem em menosprezar os aspectos unificadores, em nome de uma pretensa tese nacionalista. Num trabalho a publicar proximamente na base da tese de doutoramento que defendia tento demonstrar a natureza do fenómeno Kaabunke.

1. Estrutura política mandinga.

2. Kaabunke é uma construção de Kaabu mais -Nke, sufixo que transmite a ideia de nação em mandinga. Exemplos : Malinke, Futanke, Soninke, Dianinke, Jalonke, etc.

3. Carlos LOPES.— Les Kaabunke, structures politiques et mutations, Paris, Université de Paris I, octobre 1988 multigr.

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O espaço geográfico onde se desenvolveu o Kaabu é um conjunto ecológico homogéneo e integrado, caracterizado pela existência de grandes rios (Gâmbia, Casamansa, Cacheu, Geba, Corubal, Nunez e Pongo) e seus afluentes que descem em cascadas a partir dos contrafortes do Futa Jalon misturando-se com o mar muito antes dos seus estuários, tendo portanto um grande teor salino.

Um estudo minucioso de certas fontes dos séculos XV e XVI mostra que os navegadores que chegaram a esta região nitidamente a diferenciaram em relação ao norte da Gâmbia devido às suas características vegetativas, quantidade de chuvas e sua duração, e temperatura. Os vários cursos de água ofereciam também condições propícias para a navegação, sobretudo o rio Gâmbia, já que a terra é plana e sem obstáculos. A composição dos solos é recente permitindo uma excelente rizicultura de "bolanhas", conferindo uma grande fertilidade à região. Foram estas características que primeiro demonstraram a existência de um espaço geográfico específico que também é possível de reconstituir como espaço integrado em termos económicos, sociais, culturais, religiosos, linguísticos e evidentemente políticos.

Sem tentar apresentar uma história minuciosa do Kaabu, que tem sido objecto de publicações recentes e bem documentadas4, é necessário confirmar que a sua influência torna-se mais evidente quando se toma em consideração o papel que desempenhou na unificação política da região, no desenvolvimento das relações comerciais (e sobretudo o tráfico de escravos) com os exploradores europeus.

MEMÓRIA CONTEMPORÂNEA

O paradigma que continua a dominar os líderes africanos é uma conjugação de progresso, modernidade e desenvolvimento, todos eles associados ao modelo ocidental. O subdesenvolvimento é por vezes visto como uma etapa para o desenvolvimento já atingido por outros Estados e sociedades. Este é certamente um debate importante que não vale a pena reproduzir aqui. É nossa intenção pura e simplesmente situar o problema com vista a melhor compreender os limites históricos da construção nacional na Guiné-Bissau.

4. Ver nomeadamente Carlos LOPES.— "Bibliografia introdutiva ao estudo dos Kaabunke", em Para uma leitura sociológica da Guiné-Bissau, Bissau, INEP, 1988, p. 275-290 ;

Djibril TAMSIR NIANE.— Histoire des Mandingues de l'Ouest, Paris, Karthala-Arsan, 1989 ; Jean GIRARD.— L'Or du Bambouk. Une dynamique de civilisation ouest-africaine. Du royaume de Gabou à la Casamance, Genève, Georg, 1992.

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Quando o Tratado luso-francês de 1886 dividiu o espaço Kaabunke e criou numa parte significativa do seu antigo território a Guiné "portuguesa", este forneceu ao futuro Estado da Guiné-Bissau o seu primeiro fundamento: o território. O movimento de libertação nacional lutou com vista a obter o controle desse território e jamais utilizou argumentos de extensão territorial ou mencionou fronteiras artificiais. No entanto, reivindicou uma unidade política com as ilhas de Cabo Verde, que como é obvio nada tem a ver com esse espaço Kaabunke.

A direcção pequeno-burguesa e crioula (afro-portuguesa) do PAIGC fez apelo a uma historicidade limitada a referências coloniais. Para esta direcção a ligação com as ilhas de Cabo Verde era indisputável vistas as relações entre as culturas crioulas dos dois territórios. Entre outros argumentos utilizou-se mesmo o que consagrava que durante vários séculos os dois territórios foram geridos por uma mesma administração cuja sede se encontrava na ilha de Santiago de Cabo Verde. Ora é relativamente fácil provar que durante o período reivindicado jamais existiu em terra firme continental um qualquer controle territorial português. A base ideológica que justificou a construção teórica do movimento nacionalista, tal como todos os exemplos africanos deste tipo, era uma base que não podia ser articulada à existência de uma nação. Mesmo se o desejo e a vontade de construção nacional eram reais, a perspectiva histórica limitada despreza historicidades que não são sentidas como susceptíveis de apoiar desígnios modernos. Isto para dizer que o movimento nacionalista, sem o querer, aceitou a premissa de uma África sem história antes da chegada dos Europeus ou sem história autónoma em relação a estes.

A nação, tal como concebida pelo movimento nacionalista, não só se baseava no território de 1886, mas também nas estruturas que o justificam, tentando pois apenas reorganizar as dimensões desse espaço. A aceitação do território, das estruturas estatais e administrativas e da rede de controle criada pela potência colonial implicava, de uma certa forma, a aceitação de um modelo de reprodução económica.

Esta concepção da construção nacional não tem nenhuma possibilidade de sobrevivência a longo prazo, sobretudo depois de esgotadas as legitimidades históricas imediatistas, baseadas no discurso ideológico, mobilizador, do tempo das lutas de libertação nacional.

O Kaabu representa a outra historicidade, baseada numa presença de séculos, e não de algumas dezenas de anos como o movimento de libertação nacional, obrigando pois a uma releitura de toda a catalogação étnica, etnonímica e etnocêntrica da Guiné-Bissau actual.

É paradoxal que o poder político não utilize estes elementos fundamentais da memória colectiva popular, em vez de sublinhar os pontos comuns, a homogeneidade cultural, os cruzamentos linguísticos, a coabitação religiosa entre Islão e animismo, a existência de relações sociais interétnicas, a rede 140 Carlos LOPES de comércio de longa distância, as estruturas de poder descentralizadas, e o equilíbrio dos níveis de vida entre a cidade e o campo, para reorientar as escolhas políticas na construção de um novo tipo de Estado.

A memória contemporânea das elites esquece que os sistemas políticos tradicionais africanos sempre deram pouca importância ao controle territorial centralizado. Por exemplo no Kaabu a regra de ouro da mansaya era a descentralização das funções administrativas através de um esquema complexo de estruturas hierárquicas entre províncias (Farim, Kanta-Mansa, etc.). Os modos de produção existentes também não consideravam a propriedade da terra como um motivo de conflito; e a penetração fula na região pode-se mesmo fazer de uma forma pacífica já que se considerava que o espaço era "para todos". Na realidade, a territorialidade só se tornou numa dimensão política através da estruturação dos espaços pelas potenciais coloniais.

Todo o Estado moderno define-se através de uma extensão territorial precisa. E, neste sentido, a territorialidade é um elemento importante. A mansaya Kaabunke incorporou desde o século XVIII esta dimensão territorial mas de uma forma que não é hoje reconhecida, por se basear nos direitos de família do primeiro ocupante da terra e de certas prerrogativas associadas a estabilidade da gestão do espaço. De uma forma geral era mais comum encontrar espaços de hegemonia do que territórios com fronteiras delimitadas e respeitadas.

Hoje em dia o Estado é uma expressão política da estruturação do espaço. E se o não controla, pode ser desafiado o seu modelo de organização ou de reorganização do espaço. Quando o espaço é harmonioso significa que o Estado encontrou uma historicidade e uma relação de classe que permite uma integração nacional. Se tal não acontece significa que o espaço-território não corresponde aos desejos dos que o habitam.

CONTESTAÇÕES ESPACIAIS

Será utópico pensar que os países podem estruturar os seus espaços em função das suas realidades históricas, perspectivas de integração económica, ou desejos de descentralização política ? O desenvolvimento, esse grande objectivo, é certamente entendido de uma forma muito diferente quando os grupos sociais ou étnicos se sentem integrados ou não nos Estados actualmente existentes no mapa.

Muitos factores quotidianos provam que os povos desta região resistem à estruturação do seu espaço e às actuais fronteiras que o dividem:

— manifestações contra a Confederação da Senegâmbia

— manifestações independentistas na Casamança

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— tentativas de golpe de Estado na Gâmbia (a revolta de Kukoi Sanyamg)

— utilização cada vez mais frequente de línguas francas na região (malinke, crioulo, etc.)

— ramificação dos circuitos de comércio longínquo

— circulação de produtos agrícolas em toda a região

— resistências camponesas ao pagamento de impostos

— presença de dirigentes de origem territorial de um dos Estados vizinhos nas estruturas políticas de cada um dos países

— tensão militar constante nas fronteiras

— grande circulação do CFA na Gâmbia e na Guiné-Bissau

— correntes migratórias importantes

— imigração temporária de mão-de-obra

— explosão cultural, nomeadamente musical, com origem na cultura Kaabunke, são alguns dos exemplos que demonstram que os Estados e os seus espaços estruturados não estão a ser respeitados.

Cabe como papel importante aos intelectuais africanos conceber os argumentos que permitirão uma solução para estas irracionalidades, sem se cair no ridículo de solicitar pareceres a especialistas de história exógene5.

O caminho proposto por Jean-Loup Amselle6 demonstra-nos a necessidade de optar por uma approche contínua, acentuando um sincretismo originário mas privilegiando também uma lógica de mestiçagem. Só assim nos será possível antever uma África capaz de verdadeiramente integrar os seus espaços, em harmonia com a sua história.

Janeiro de 1994,

Carlos LOPES

Instituto nacional de estudos e pesquisa da Guiné-Bissau/PNUD

Bissau/Harare (Zimbabue)

5. É o caso concreto do governo do Senegal solicitando um parecer ao governo francês sobre a legitimidade histórica para a autonomia da Casamança, parecer finalmente pronunciado em Dezembro de 1993 pelo Sr. Jacques Charpy, ex-director dos Arquivos coloniais francêses e portanto especialista das fontes históricas escritas dos Arquivos da AOF que concluiu na "senegalidade" da Casamança (Nó Pintcha, 1454, de 1/1/94, Bissau).

6. Jean-Loup AMSELLE.— Logiques métisses. Anthropologie de l'identité en Afrique et ailleurs, Paris, Payot, 1989.

www.didinho.org