A instrumentalização da «Segurança do Buscardini »

 

 

 

 

Por: Norberto Tavares de Carvalho, « O Cote »

 

 

28.09.2006

 

 

 

O facto de ter  pertencido à segurança nacional da Guiné-Bissau durante o primeiro regime do PAIGC, não deve ser considerado crime. O governo do Presidente Luís Cabral era legal e, de uma maneira global, progressista. O meu engajamento na defesa desse Estado independente deveu-se à minha qualidade de militante do PAIGC, Combatente da Liberdade da Pátria.

 

Se a imagem dessa segurança a que pertenci  (1974 a 1980) ocupou um lugar de destaque nas alegações golpistas  do 14 de Novembro de 1980, é porque ela foi instrumentalizada na tentativa de justificar um golpe de Estado movido por ambições pessoais. A segurança, corda sensível de qualquer regime, é a que mais facilmente pode produzir bodes expiatórios em situações excepcionais. Tratava-se de tudo menos de justiça. Os grandes culpados continuaram nos seus postos enquanto os trabalhadores mais próximos de António Alcântara Buscardini, que não tinham nenhum poder de decisão, foram severamente castigados e abandonados na prisão. Eu fiz parte desse grupo de trabalhadores.

 

Com a morte do camarada  Buscardini, ganhei mesmo a exclusividade de ser considerado o seu « braço direito ». Que honra ! Não acreditaram que nunca tomei parte em qualquer fuzilamento. Antes pelo contrário, tive a oportunidade de denunciá-los em conversas íntimas e confidenciais com alguns colegas meus e dirigentes da Juventude Africana Amílcar Cabral. (Um deles pelo menos teve a honestidade de confirmar esta confidência.)

 

Em 1976, fui quase expulso do Comando Militar de Bafatá, quando o Comandante resolveu pôr termo à minha missão (que consistia em identificar antigos milícias feitos prisioneiros pelos militares), simplesmente porque resolveu executá-los. Dera conta desse acto à minha chefia hierarquica em Bissau e soubera por ela que o então Comissário de Estado das FARP [1] enviara o seu CEMG de hélicóptero para Bafatá no intuito de elucidar o assunto. Tudo fora sufocado. Mais tarde, depois de ter vivido exactamente a mesma situação, mas dessa vez o acto ocorrera no Comando Militar de Farim, com um outro Comandante Militar, eu e certos colegas da segurança, foramos protestar frente a um dos membros da direcção do Comissariado de Estado do Interior [2] contra tais actos.

 

A promessa de apresentar as nossas demissões não foi, infelizmente, posta em prática. Esses comandantes nunca foram importunados, pois estavam certamente de mãos dadas com o então Comissário de Estado, o camarada João Bernardo Vieira, Chefe do Exército.

 

Também não acreditaram que fiz parte do núcleo que apresentou um relatório-queixa à direcção do Comissariado de Estado do Interior, denunciando actos de tortura. Como não foi certamente por azar que a rádio não emitiu a entrevista que me fizeram na Segunda Esquadra a propósito das minhas actividades como elemento da segurança nacional.

 

A verdade interessava a pouca gente… Eu não tinha assim tanto medo de comparecer diante de um tribunal. Ainda hoje me apresentaria, se fosse necessário, questão de afastar tabous e outros quiproquós. Com a intoxicação do 14 de Novembro, quem vai acreditar que pude no entanto salvar onze prisioneiros em Quêbo e dois jovens estudantes da prisão militar de Farim ?

 

Saibam ainda que as decisões de execução de prisioneiros eram tomadas nas altas esferas do poder e não nos gabinetes do Buscardini, do Lourenço Gomes ou do « Tchutchu Axon » [3], e se este último, que o golpe surpreendeu no estrangeiro, teimou em regressar à Guiné é porque tinha algo a dizer sobre as alegações dos golpistas…

 

Não pretendo ilibar os erros cometidos pela direcção dos serviços da segurança ou pelos seus agentes, cujo efectivo eu fazia parte. Cometemos erros, é certo, mas defendo que esses erros foram sempre alvos de sinceras críticas no interior dos respectivos serviços. E muitas vezes estiveram ligados à própria complexidade do regime de partido único.

 

Paradoxalmente, a multiplicidade dos centros de decisão (certos Comandantes Militares decidiam executar prisioneiros sem nenhum receio), apresentando uma certa anarquia no ramo dos castristas, denotava claramente as primeiras falhas do sistema.

 

 Creio que os militares, (os dirigentes do Partido em geral), mesmo instalados no contexto da República, conservavam ainda as práticas do tempo da luta armada. A inércia que depois se instalou no ramo das forças armadas, foi transferida à primatura aquando da morte do camarada Francisco Mendes, em Julho de 1978.

 

O Chefe do Exército, o camarada João Bernardo Vieira, que era mais mundano do que dirigente, não estando preparado para dirigir o governo, este foi relegado às competências do Presidente da República que seria o Chefe do Estado e do Governo, segundo o projecto de Constituição elaborado em Outubro de 1980 pelo Secretariado Nacional do PAIGC e a Assembleia Nacional Popular e que conduziu concretamente ao golpe de Estado do 14 de Novembro. Mais uma vez, esse acto, à priori,  nunca foi destinado a pôr cobro às « injustiças, matanças » etc.  como se pretendeu.

 

Enfim, resumindo, tudo isto valeu-me 30 meses de prisão (25 de isolamento total – a primeira vez que vi a minha filha, que nasceu em 19 de Novembro de 1980, ela tinha exaxctamente 30 meses de idade - e 5 em que fui submetido a trabalhos forçados). Durante o meu cativeiro, fui alvo de represálias (intensos castigos corporais em Carache) e escapei à morte por duas vezes. A primeira depois de uma greve de fome (forçada) que durou 14 dias (devo o seu termo à Sra Arlete Cabral de Almada, enfermeira, que contra ventos e marés conseguiu ir visitar as celas e vendo o meu estado de degradação, pediu que autorizassem a minha família a preparar-me o comer) e a segunda, quando me deram um comprimido, no Hospital 3 de Agosto onde me encontrava internado (Setembro de 1982), cuja dose era de tal maneira forte que perdi os sentidos e, de novo, foi graças a uma enfermeira a Sra Ivone Borelli, que tomando o serviço de manhã constatou o meu estado e agiu com as medidas adequadas conseguindo estabilizar-me a tensão que baixava a olhos vistos.

 

 Em Bissau, a minha família foi desalojada do apartamento que ocupavamos indo viver num minúsculo recanto em casa dos meus sogros. Para ser libertado (num Primeiro de Maio, Dia Internacional dos Trabalhadores – devo alguma reverência ao Sr. João Bernardo Vieira por esta « coincidência » ?), fui obrigado a assinar um documento onde jurava fidelidade ao novo Ministro do Interior. Quer dizer que saí da prisão com a corda no pescoço ! Porque é que apresento todo este cartaz ? Para atestar, aqui, que mesmo que o facto de ter pertencido à segurança de Estado do regime do Presidente Luís Cabral fosse um crime, então eu paguei-o.

 

Que o saibam de vez os meus detractores. Hoje, milito pelos direitos humanos, pela democracia e pelas liberdades individuais e colectivas. Acredito que na Guiné-Bissau o povo educa-se e é educado para nunca mais servir de refém. O pesadelo atinge o seu termo. (Creio que, apesar do que as aparências podiam revelar, estava lutando por isto.) E congratulo-me que as lutas do nosso século, entre os partidos únicos e as forças  multipartidárias, terminam sempre pela vitória destas últimas.

 

Pensar que defendi um regime de ditadura de partido único, com todo o palmarés democrático que se vê hoje no mundo, às vezes parece desprovido de sentido e de  razão. Doutro lado, também penso que era impossível imaginar que o PAIGC, depois de ter lutado, só, e vencido o colonialismo, ia pôr logo o poder no leilão. Haviamos de lá chegar…

De toda esta história, guardo o sentimento de ter vivido momentos de fascinação, de certezas e de incertezas, de ter tido a oportunidade de exercer uma profissão ingrata e honrada, e de ter conhecido um homem de valor : o Camarada António Alcântara Buscardini.

 

 


[1] Termo utilizado na altura, em oposição à Ministério.

[2] Idem.

[3] Respectivamente Secretário-Geral, Comandante Divisionário, Comissário de Estado do  Interior.

 

 

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