O CRIOULO DA GUINÉ-BISSAU : LÍNGUA NACIONAL E FACTOR DE IDENTIDADE NACIONAL[1]

  

Filomena Embaló

fembalo@gmail.com

10.03.2009

 Filomena EmbalóEste pequeno trabalho pretende apresentar um panorama geral da situação do crioulo falado na Guiné-Bissau, também designado por guineense ou kriol e do seu papel na formação da identidade nacional. Língua veicular e da unidade nacional, sem um estatuto oficial, ele coabita, numa situação de triglossia ou de diglossias sobrepostas, com o português, o idioma oficial, e as mais de duas dezenas de línguas africanas nígero-congolesas que constituem as línguas maternas da esmagadora maioria da população guineense.

 

O kriol no contexto plurilingue guineense

A Guiné-Bissau é um pequeno país de 36 125 km², situado na costa ocidental africana entre o Senegal (a norte) e a República da Guiné (a este e a sul) e banhado a oeste pelo oceano Atlântico.

Autêntico mosaico étnico-cultural, onde coabitam mais de duas dezenas de etnias para uma população total estimada em 1 416 027 habitantes (2005), a Guiné-Bissau

 foi a primeira das colónias africanas de Portugal a aceder à independência, após cinco séculos de presença portuguesa e 11 anos de luta armada de libertação, conduzida pelo PAIGC[2]. A 24 de Setembro de 1973 o movimento de libertação proclamou unilateralmente o Estado da República da Guiné-Bissau, que veio a ser

 reconhecido por Portugal somente quase um ano mais tarde, a 10 de Setembro, depois do derrube do regime ditatorial de Lisboa pela Revolução dos Cravos na

Primavera de 1974.

Tal como aconteceu com as demais ex-colónias portuguesas, a Guiné-Bissau tem como língua oficial o português, que é também a língua de ensino, de cultura e de comunicação em fóruns internacionais onde ele é utilizado. Língua materna de uma insignificante percentagem da população, o português não é a língua de comunicação nacional, na medida em que apenas cerca de 13% dos guineenses a falam, incluindo os que a têm como língua segunda, terceira ou até mesmo quarta para a maior parte dos guineenses.

A língua franca é o crioulo guineense. É através dele que os diferentes grupos étnicos que compõem a população guineense se comunicam, o que lhe conferiu o estatuto de língua da unidade nacional, ou simplesmente de língua nacional.

É a língua guineense que mais locutores tem. Segundo os dados do recenseamento de 1979, 15% da população tinha o crioulo como primeira língua e 44,3% como língua

 

 segunda. Apesar de não ser língua oficial, o kriol é a língua do quotidiano e da rua, sendo correntemente utilizado nas instituições públicas, em muitos discursos oficiais

 

 e até nos debates da própria Assembleia Nacional. Não sendo também língua de ensino, ele não deixa de ser o recurso de muitos professores, que por deficiência do

 

 próprio conhecimento do português ou pelo não domínio desta língua por parte dos alunos, utilizam-no para melhor se fazerem compreender pelos seus discentes.

 

No entanto, nem o português e nem o kriol são línguas maternas da maioria dos guineenses. Com efeito, as línguas africanas[3] (pertencendo à família das línguas

 nígero-congolesas) são a primeira língua das diferentes comunidades, através das quais se transmitem os conhecimentos ancestrais, as tradições e a identidade

 comunitária. As línguas com um maior número de locutores são o balanta, o fula, o mandinga e o pepel, na medida em que estes povos são os mais importantes do

ponto de vista numérico. As línguas africanas guineenses não estão codificadas, permanecendo orais.

O kriol  língua nacional

O kriol é um crioulo de base portuguesa, com uma gramática e léxico próprios. Surgiu do contacto do português com as línguas africanas, facilitando a comunicação não só entre os europeus e os africanos, mas também entre estes próprios, dada a diversidade linguística da região. Ele ter-se-ia formado entre o fim do século XVI e início do século XVII. No entanto, as opiniões divergem quanto ao local onde ele teria surgido. Para uns (Naro, 1978) teria sido em Portugal com a ida de escravos negros para lá ainda no século XV. De lá teria “emigrado” para a África. Outros estudiosos defendem que o berço da língua crioula foi Cabo Verde, como Peck (1988) e Kihm (1994) e, por fim, uma terceira corrente considera que foi na Guiné que ele se formou (Rougé, 1986).

Muito próximo do crioulo falado em Cabo Verde, ou o caboverdiano, o kriol forma com este o Grupo Crioulo da Alta Guiné, o mais antigo de línguas crioulas de base

 portuguesa. Ele é também falado na região sul do Senegal, a Casamansa, parte integrante da colónia portuguesa da Guiné até 1899.

A importância e prestígio do crioulo guineense evoluíram ao longo da história. De língua utilitária propagada pelos lançados ou tango-mãos [4] e grumetes[5] nas suas

expedições comercias, o kriol desenvolveu-se fundamentalmente nos centros urbanos. A partir dos anos vinte do século XX ele começou a ser estigmatizado e a sua

utilização acabou por ser interdita pelas autoridades coloniais, o mesmo acontecendo com as línguas das comunidades etnolinguísticas. O kriol passou a ser visto

como uma língua de “não civilizado” e aquele que falasse português era considerado “civilizado”. Esta situação prevaleceu nas zonas do território ocupadas pelos

 portugueses até à independência em 1974. Entretanto, nas regiões libertadas[6] pelo PAIGC, desde o início da mobilização das populações para a luta armada, o kriol

 conheceu uma enorme expansão por todo o país. Foi durante a luta de libertação que ele adquiriu o estatuto de língua da unidade nacional.

Depois da independência, a utilização do kriol generalizou-se, invadindo as próprias administrações e conquistando lugares que até aí eram dominados pelo português, como foi o caso da rádio nacional. Houve até tentativas de introduzi-lo como língua de ensino, mas as experiências levadas a cabo não deram os resultados esperados, certamente motivados por uma confluência de causas que vão, entre outros, desde uma deficiente preparação dos próprios professores, passando pela falta de materiais didácticos e o facto do crioulo apesar de ser língua nacional não ser necessariamente a língua materna dos aprendentes.

Porém, a questão da introdução do kriol como língua de alfabetização das crianças continua a ser actual e segundo Johannes Augel[7] ele é a única língua viável para essa

função, na medida em que a heterogeneidade populacional não permite a existência de tabancas[8] homogéneas[9].

Se é verdade que a língua de alfabetização tem um peso determinante no sucesso ou insucesso escolares, não é menos verdade que o insucesso escolar constatado actualmente na Guiné-Bissau, a todos os níveis, não é alheio ao baixo nível de formação dos professores. Com efeito, se compararmos com o que se passava na época colonial, veremos que crianças dos meios rurais que não tinham sequer o kriol como língua materna, conseguiam fazer os seus estudos com sucesso nas missões católicas ou mesmo nas escolas oficiais, tendo muitas delas beneficiado de bolsas de estudo para formações superiores no estrangeiro. 

Outro aspecto que dificulta a promoção do idioma nacional como língua de ensino é o facto de ele permanecer uma língua sem escrita regulamentada, apesar da existência de uma proposta para unificação da sua ortografia feita pelo Ministério da educação guineense em 1987. Nesta proposta a ortografia é fonética e com base no alfabeto latino, mas recorrendo a empréstimos do alfabeto internacional para expressar sons do crioulo que não existem na língua portuguesa. A inexistência de uma regulamentação faz com que cada um escreva o crioulo à sua maneira, o mesmo vocábulo aparecendo com diferentes grafias. Este facto é também apontado como um freio ao desenvolvimento da literatura em língua guineense.

 

O kriol, língua de cultura?

Apesar da não existência de uma codificação oficial do crioulo guineense, a sua presença na cultura guineense tem-se afirmado cada vez mais.

O português, que predominou quase exclusivamente até aos anos 1980 na literatura nacional, tem vindo nos últimos tempos a partilhar de modo crescente com o kriol

 as letras guineenses. Com efeito, se a prosa continua a privilegiar a língua portuguesa, a utilização de termos crioulos é cada vez mais usitada pelos autores[10],

 enquanto que ao nível da poesia o kriol impõe-se como língua de expressão e várias são as obras, individuais ou colectivas, de poesia exclusivamente em kriol [11] ou em

 português e kriol [12].

A banda desenhada foi inaugurada em língua crioula na década de oitenta do século passado com as histórias de Ntori Palan de Manuel Júlio e dos Tris N’kurbados de

 

 Fernando Júlio.

 

Também o imaginário da tradição oral é contado em kriol, como atestam várias obras[13].

 

O que acontece com a escrita em kriol é que ela é pouco divulgada, dando a impressão de não existir. Mas esta língua está incontestavelmente a impor-se na área

 

 literária, com particular acento na poesia, revelando uma nova geração de novos talentos.[14]

 

Outra área onde a língua nacional guineense reina é a música: a música popular, as canções das mandjuandadi[15], os cantos guerreiros da luta armada de libertação, e a

 

música moderna guineense (cujo precursor foi o músico e poeta é José Carlos Schwarz).

 

Do mesmo modo o teatro e o cinema são encenados em língua crioula. 

 

Finalmente, a presença do kriol na comunicação social destaca-se pela primazia que tem ao nível dos programas radiofónicos, o que levou a Assembleia Nacional Popular a impor, em 2007, uma quota de 50% entre o kriol e o português nas emissões da rádio. Ao nível dos programas da televisão a língua portuguesa tem uma maior presença o que se explica pela importação de programas nomeadamente de Portugal e do Brasil e pela fraca produção nacional. Mas existem programas em kriol, nomeadamente os noticiários e debates.

Perante este panorama pode-se dizer que o crioulo guineense está-se a tornar numa língua de cultura porquanto a ele recorrerem os poetas, contistas e músicos para traduzirem o seu mais profundo sentir e restituírem ao ‘produto cultural’ a sua verdadeira identidade.

Kriol e identidade nacional

O alcance da afirmação de Amílcar Cabral, durante a luta de libertação nacional, de que a língua portuguesa era uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, vai bem mais longe do facto de ela permitir aos guineenses comunicarem-se com outros povos falantes do mesmo idioma, acederem ao conhecimento e à ciência e abrirem-se ao mundo. 

A Guiné-Bissau é dos raros países africanos onde uma das línguas étnicas não se se impôs como língua franca ou língua dominante. E esse fenómeno deve-se sem dúvida à existência do crioulo guineense.

Produto da « convivência » da língua portuguesa com as línguas oeste africanas, desde os primórdios da presença lusitana em África no século XV, durante muito tempo o kriol foi falado essencialmente nos centros urbanos guineenses e muito pouco utilizado nas zonas rurais. Estigmatizado, como vimos, pelo poder colonial, ele conseguiu no entanto constituir-se como um elemento de resistência e responder « presente » ao apelo do movimento nacionalista para a independência.

A luta de libertação, servindo-se do kriol nas campanhas de mobilização, foi incontestavelmente a que mais contribuiu para a expansão e generalização deste sobre todo o território nacional, levando-o aos mais recônditos lugares onde até então ainda não tinha chegado.

Ao servir de língua de comunicação entre os diversos grupos populacionais no processo independentista, o kriol tornou-se num elemento congregante da diversidade étnica nacional. A utilização de uma língua comum, outra que não a do colonizador e ao mesmo tempo símbolo de resistência cultural, contribuiu, juntamente com o objectivo da luta pela libertação do jugo colonial, para a criação de uma unidade nacional.  

Com efeito, unidos pela mesma língua e partilhando um território e uma história comuns, história essa forjada num combate secular de resistência em que a luta de libertação contribuiu grandemente para uma convergência de valores, povos com uma identidade cultural[16] própria conseguiram engendrar uma identidade comum

 que se sobrepõe às de cada um dos grupos populacionais. E é esta identidade comum que faz a coesão da sociedade guineense, sobretudo nos momentos de crise,

 evitando que esta tome proporções maiores.

É nesta óptica que considero que a afirmação de Cabral sobre a herança linguística portuguesa ultrapassa uma simples questão de língua de ciência e de comunicação internacional. Por estar na origem do kriol, contribuindo para 80% do seu léxico, a língua portuguesa, à revelia das autoridades coloniais, proporcionou a um povo multi-étnico uma língua comum própria que foi o catalisador na formação da sua identidade nacional.

(30 de Outubro de 2008)


 

Bibliografia


 

[1] Inicialmente publicado em: Embaló, Filomena (2008) "O crioulo da Guiné-Bissau: língua nacional e factor de identidade nacional". Papia 18, pp. 101-107.

[2] Partido Africano para a independência da Guiné e Cabo Verde,  movimento de libertação que levou à independência a Guiné-Bissau e Cabo Verde.

[3] Pajadinka,banhum, balanta, bassari, baiote, biafada, bijagó, felupe, djola, cassanga, cobiana, mandinga, manjaco, mancanha, mansoanca, nalú, pepel, fula, saracolé, http://www.ethnologue.com/.

[4] Portugueses que por razões diversas (entre elas por serem judeus) tiveram que abandonar Portugal e que depois de uma estada em Cabo Verde e com família formada com mulheres africanas,

 aventuraram-se pela costa ocidental africana introduzindo aí o crioulo aprendido nas ilhas.

[5] Africanos cristianizados que serviam de intermediários entre os portugueses e os africanos

[6] Quando foi proclamado o Estado da Guiné-Bissau em 1973, dois terços do território nacional eram regiões libertadas sob a direcção do PAIGC, onde o embrião do novo Estado se começava a formar. O

 reconhecimento do Estado da República da Guiné-Bissau pelas Nações Unidas colocou Portugal na situação de país ocupante de um Estado independente.

[7] Augel J., O crioulo da Guiné- Bissau, http://www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/795156.pdf

[8] Aldeias, pequenas povoações

[9]  Augel J, idem

[10] Abdulai Silá: Última tragédia (1996) e Mistida (1997); Odete Semedo: Histórias e passadas que ouvi contar, 2000a e 2000b; 2003ª; Filinto de Barros (Kikia Matcho)

 

[11] Barkafon de poesia na kriol  (colecção Kebur), obra colectiva; Mininus di Nha Tera de Nelson Medina; Dinheru di abota e Sigridus di Kerensa de Flaviano Mindela dos Santos.

[12] Kebur. Barkafondi poesia na kriol (1996).

 

Momentos primeiros da construção. Antologia dos jovens poetas (1978), Entre o ser e o amar de Odete Semedo; as diversas obras de Tony Tcheca; Retrato de Rui Jorge Semedo

 

[13] Lubu ku lebri ku mortu i utrus storya di Guiné-Bissau (1988) de Augusto Pereira; N’ sta li n’ sta la, livro de adivinhas (1979a), Junbai  e Uori. Storias de lama e philosophia de Teresa Montenegro e Carlos de

 

 Morais .

 

[14] Flaviano Mindela dos Santos, Nelson Medina, Rui Jorge Semedo

[15] Agrupamentos de indivíduos de ambos os sexos, da mesma faixa etária, com uma estrutura  social específica e hierarquizada, que se confraternizam em festas e encontros sociais.

 

[16] Por identidade cultural, entenda-se o conjunto de valores através dos quais se manifestam as relações entre indivíduos de um mesmo grupo que partilham patrimónios comuns como a cultura, a

 língua, a religião, os costumes, para citar apenas estes. Não sendo um processo estático, ela vai evoluindo à medida que a sociedade avança do ponto de vista cultural, social, económico e político. É graças

 a ela que um indivíduo se identifica com um determinado grupo com o qual a partilha e é a ela também que se deve a coesão da sociedade.   Uma crise dessa identidade põe em causa a própria ordem social.

 


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