“A VERDADE VOS LIBERTARÁ”

Sem qualquer motivação que não o reconhecimento da importância das igrejas na sociedade guineense, decidi reproduzir neste secção editorial a "Carta pastoral na abertura das celebrações do 30º aniversário da Diocese de Bissau", da autoria do Bispo de Bissau D. José Câmnate na Bissign.

Se em Outubro deste ano, chamava a atenção para o silêncio das igrejas na Guiné-Bissau, através do artigo "O (IM) PACTO DO SILÊNCIO", hoje, chamo a atenção para a leitura, reflexão e divulgação da Carta pastoral do Bispo de Bissau.

Partilhar o pensamento é, para mim, partilhar conhecimentos, é contribuir com ensinamentos, através do discurso desse pensamento.

As religiões representam a parte espiritual das nossas populações e as igrejas devem ter em conta este aspecto por forma a ajudarem na sensibilização dos seus fiéis, que não são mais do que membros de toda uma comunidade designada: Povo guineense!

É dever das igrejas ajudarem a trabalhar/educar as mentes do nosso povo!

Fernando Casimiro (Didinho)

16.12.2006

 

“A VERDADE VOS LIBERTARÁ”

 

D. José Câmnate na Bissign

 

Carta pastoral na abertura das celebrações do 30º aniversário da Diocese de Bissau

 

            «Se permanecerdes na minha palavra sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará» (Jo. 8, 31b-32).

            Começamos esta mensagem, com a qual abrimos a celebração do 30º aniversário da nossa Diocese, evocando o texto do evangelista João, onde o Bispo D. Settimio se inspirou para cunhar o seu lema episcopal, o qual caiu fundo na alma do povo guineense  a ponto de ainda hoje constituir um forte apelo.

            A verdade é dinâmica e tem o poder extraordinário de nos libertar porque ela é a descoberta progressiva de Deus, da nossa própria identidade e do projecto que Deus sonhou e quer realizar em cada um de nós, projecto que é sempre de amor e de salvação. Quem ama e acolhe a verdade, deixa-se invadir pela graça libertadora de Deus, não põe entraves à realização do projecto que Ele sonhou para cada um dos seus filhos e filhas e para o povo que Ele escolheu para ser «seu».

            A celebração deste ano jubilar pode ser um espaço propício para verificarmos como é que este projecto se realizou aqui entre nós, na Igreja radicada no nosso chão.

            A história da nossa Igreja já vem de longe, não queremos ignorá-la nem passar superficialmente por cima dela; no entanto, queríamos que o nosso exame privilegiasse a história destes últimos 30 anos, para colhermos nela a acção do protagonista principal, o Espírito do Senhor, vivo e actuante na teia dos acontecimentos e das vicissitudes que teceram a nossa história recente, levando a nossa Igreja a adquirir um rosto, uma voz, um perfil próprio.

 

Fazer memória da nossa história

            A memória é uma faculdade decisiva para realizar a viagem da vida, aquela viagem que nos conduz a Deus. A memória crente é a que “recorda”, no sentido etimológico do termo, ou seja, que traz ao coração aquilo que ao coração era dirigido; é a memória que nos ensina a reconduzir tudo o que vive à sua fonte e a nossa história à sua raiz, que é o amor divino manifestado na Páscoa de Jesus.

            Narrar estes 30 anos de vida, reflectir sobre os passos mais salientes que foram dados, fazer emergir as figuras mais significativas (sem esquecer o trabalho e a vida escondida de tantos outros que, no silêncio e na simplicidade mais radical, criaram a base onde a obra se pôde erigir sólida e visível), é uma tarefa proposta a cada um de nós e às diversas instituições da nossa Igreja diocesana. Só assim poderemos redescobrir uma história, desenhar uma memória que Deus realizou para nós e connosco. Só assim poderemos resgatar o seu significado e relevar, através da recordação, a força de um caminho que, apesar dos seus limites, da sua simplicidade e humildade, foi feito em companhia de Deus e guiado pelo seu Espírito.

            Celebrar estes 30 anos é pois celebrar um acontecimento que nos chama a caminhar nas sendas da história para contemplar a acção de Deus na vida da nossa Igreja e do nosso povo.

 

Um sentimento de gratidão

            Diante desta obra concreta de Deus que é a nossa diocese de Bissau, nascida oficialmente no dia 21 de Março de 1977, não podemos deixar de experimentar um profundo sentimento de gratidão.

            Fazer memória, como dizíamos antes, de certos momentos, gestos, pessoas, situações, instituições que lhe foram dando corpo, não pode deixar de suscitar em todos nós uma oração contemplativa que abra o coração ao reconhecimento e à gratidão. Agradece aquele que reconhece. E reconhecer é conhecer novamente, com uma percepção mais fina e uma consciência novíssima, o amor do Eterno disseminado nos dias da nossa existência e, neste caso, nos anos que teceram este pano forte e colorido que é a Igreja de Bissau. E diante deste trabalho maravilhoso do Espírito, secundado por tantas pessoas, queremos ao longo deste ano, sentir-nos em sintonia com o salmista orante  que conta a sua história para reconhecer que «é eterno o seu amor por nós» (cfr. Sl 136).

 

Tomar consciência da nossa identidade

            Dissemos que o dinamismo da verdade nos leva à descoberta progressiva não só de Deus  mas de nós mesmos. E, se isto é verdade do ponto de vista pessoal, é-o também do ponto de vista institucional.

            Temos um grande anélito dentro de nós ao iniciarmos este ano de celebrações jubilares. Queremos que estas não se esgotem em si mesmas mas nos ajudem a avivar e fortalecer a consciência da nossa identidade cristã e eclesial. Esta deve ser a nossa identidade mais profunda. Ela resulta de uma fé madura,  vivida e alimentada pelos sacramentos  e expressa-se pela consciência de pertença e pela corresponsabilidade. É ela que nos pode oferecer aquela segurança nova e única que gera confessores, mártires, virgens e santos de todos os tipos. «Eis que estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo» (Mt. 28, 20). É ela que nos pode fazer experimentar que a água do baptismo é mais forte que o sangue tribal, que a comunhão e a catolicidade são possíveis. Que podemos viver a Igreja como Família de Deus, como está escrito no nosso Projecto Diocesano, empenhando-nos num trabalho paciente e constante em prol da reconciliação que combata a insegurança, a injustiça e a opressão que marcam ainda, infelizmente, o quotidiano da nossa sociedade. O esforço que se está a realizar, a nível da catequese, delineando e actuando um percurso catecumenal mais rigoroso e mais existencial, vai precisamente nesta direcção. Ele deve e pode facilitar o processo de conversão exigido para uma profunda identificação com Cristo, sem a qual não há identidade nem fé madura. Vai também nesta direcção o trabalho de fazer nascer e de fortalecer as pequenas comunidades vivas onde a Palavra e a vida se podem intimamente ligar, como é próprio da tradição africana, bem como a nossa insistência numa pastoral familiar que faça nascer famílias evangelizadoras e forme casais catequistas. Anotamos também, com alegria que está a crescer o amor e a  familiaridade com a Palavra; estimulamos a continuar todas as iniciativas que nos levam a um conhecimento não apenas intelectual da Palavra, mas ao encontro pessoal com Cristo que nos fala na Escritura, como pode ser a “lectio divina”, ou seja uma leitura orante da Palavra.  

 

Um olhar profético

            O cristão que se deixou formar pelo dinamismo da vida teologal – da fé, da esperança e da caridade – que nele habita e que foi amadurecendo no contacto vital com a Palavra é uma pessoa capaz de entender melhor o presente que lhe foi dado viver e onde é chamado a intervir como protagonista. De facto, mesmo numa rápida abordagem da Sagrada Escritura, ficamos impressionados com o relevo que nela é dado ao tema do discernimento e dos sinais dos tempos. Encontramos contínuas exortações a discernir e a examinar tudo (cfr. 1Ts 5,21; 1Jo 4,1); a entender o que está a acontecer, mesmo quando não há sinais clamorosos (Mc 8, 12-23; Lc 11, 29; Mt 12, 39) e quando as pessoas ou as Instituições, por superficialidade, embotamento da sensibilidade ou recusa, não entendem podem sentir como dirigidas a si a interpelação amarga de Jesus frente a Jerusalém: «Não reconheceste o tempo em que foste visitada». Queremos que o percurso que vamos fazer ao longo deste ano nos ajude a reconhecer quando e como fomos visitados por Deus. Estimulo, pois, cada paróquia, cada movimento, cada comunidade de vida consagrada a apropriar-se da sua própria história que é história de salvação em favor deste mundo no meio do qual vivem e ao qual são enviados.

Discernir o tempo presente significa, nalguns casos, saber dizer “não”, dissentir das vozes que circulam à nossa volta e nos pressionam, venham elas do contexto tradicional ou da modernidade que nos começa a envolver. E dizer “não” é opção que exige lucidez, adultez moral e qualificada formação doutrinal. Daqui decorre a importância de investir cada vez mais na formação permanente de todos os agentes de pastoral e, em geral, de todos os cristãos adultos. «O melhor serviço que a Igreja pode prestar é a oferta de uma formação qualificada de consciência e na fé», lemos no recente documento em preparação à II Assembleia Especial para a África do Sínodo dos Bispos. E ainda no mesmo documento pede-se «uma catequese contínua e de qualidade para os adultos» (n.90).

Mas, discernir o tempo presente  passa também por uma certa capacidade de saber ver em profundidade o que está a acontecer. E isso exige olhos lavados com a água da esperança e corações trabalhados pelo amor. Então será possível abeirar-se da realidade com aquela perícia que sabe «pôr em acto todas as possibilidades cristãs e evangélicas escondidas, mas já presentes e operantes, nas coisas do mundo» (E.N. nº70).                              

Uma boa leitura do tempo presente ajuda a traçar os caminhos do futuro e ajuda-nos a enfrentá-los com renovado ardor.

João Paulo II, na sua carta Novo Millennio Ineunte, dizia que não era necessário «inventar um “novo programa”», porque o programa é de sempre «contido no Evangelho e na viva Tradição». E este «centra-se... no próprio Cristo, que é necessário conhecer, amar, imitar, para viver nele a vida trinitária, e transformar com Ele a história até à sua realização na Jerusalém celeste» (N.M.I. nº 29). Este programa de sempre «é necessário que se traduza em orientações pastorais adaptadas às condições de cada comunidade» (N.M.I. nº29). O trabalho que todas as paróquias e comunidades estão a fazer sobre os “Lineamenta” em preparação à nossa Assembleia Diocesana e a celebração da mesma poderão ajudar-nos a perceber melhor em que campos «deverá prioritariamente trabalhar a imaginação para alinhavar os caminhos do futuro» (Lineamenta – Sínodo dos Bispos para a África p.15). Sem querer substituir-me ao trabalho de todos, ousava, no entanto individuar algumas prioridades.

 

 

Olhamos a criação da nossa Diocese como um sinal dos tempos. Damos graças por ele e  queremos continuar a perscrutar o horizonte de Deus para saber o que nele está escrito a nosso respeito. E não podemos deixar de ler o apelo à maturidade da nossa fé, como já, referimos antes; à coragem de assumir essa mesma fé, de a cultivar e de a testemunhar, gerando e intensificando a dimensão profética e missionária da nossa Igreja.

Confiamos este caminho, presente e futuro, à guarda materna de Maria, mãe da Igreja e mãe da África. Queremos acolher, como dirigida a cada um de nós e à nossa Igreja, a recomendação que ela fez aos servos nas núpcias de Caná: «Fazei tudo o que Ele vos disser» (Jo 2, 5) para podermos experimentar a superabundância dos seus dons, transformados em  Vida,  Paz,  Reconciliação e Festa.

Para todos vós, a minha profunda amizade e a minha bênção de Pastor.

 

Bissau, 26 de Novembro de 2006

Solenidade de Cristo Rei

O Bispo de Bissau

D. José Câmnate na Bissign

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