Recuperar valores motivando a geração pós - independência

 

Filomena Embaló/Fernando Casimiro

fembalo@gmail.com

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Agosto de 2004

 Filomena EmbalóFernando Casimiro (Didinho)

A motivação é o complemento positivo (tónico) indispensável à participação activa (maior desempenho) das pessoas, nas várias áreas de intervenção nas sociedades a que pertencem. Recuperar valores motivando a geração pós - independência, é uma abordagem com regresso a um passado recente à procura dos nossos falhanços: causas e consequências, ajudando a encontrar respostas para os mesmos. A geração pós - independência é a geração que fazia acreditar Cabral, que o futuro estava garantido. Uma geração de jovens que, entre o período de 1974 a 1984, respondeu PRESENTE! ao desafio da jovem nação. Uma geração que, com ou sem independência, (proclamação 1973) - (reconhecimento 1974), seria útil para a nova fase estratégica do PAIGC. Utilidade que a nosso ver, Cabral não quis debater no seio do partido, para não comprometer a eficácia da luta de libertação e,  quiçá, as independências da Guiné e de Cabo Verde.

Esta utilidade poderia ser enquadrada em duas situações distintas, pontual e objectivamente.

Numa primeira fase e enquanto as independências da Guiné e de Cabo Verde não fossem realidade, ainda que em 1972 houvesse já uma resolução das Nações Unidas a legitimar o PAIGC como único e legítimo representante dos povos da Guiné e de Cabo Verde, encarar-se-ia a possibilidade dum aliciamento maciço de jovens guineenses e cabo-verdianos com habilitações literárias suficientes para garantirem as suas entradas em universidades e institutos superiores de países amigos que apoiavam a luta do PAIGC. Esta seria a nova aposta de mobilização que Cabral teria necessariamente que fazer, de forma a preparar o PAIGC com quadros técnicos habilitados para a nova fase da luta que se avizinhava e que seria a  fase da edificação dos Estados da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.

Se  é verdade que o PAIGC, mercê da sua estruturação e ao criar  a Escola Piloto em Conacry pretendia preparar o futuro, apostando na formação de quadros  capazes, não menos verdade seria encarar a realidade circunstancial da luta de libertação que condicionava em parte a qualidade da formação de base dos potenciais futuros quadros.

Cabral contava com os seus meninos e meninas da Escola Piloto, mas sabia que era em Bissau que estudavam guineenses e cabo-verdianos em abundância e que estavam  numa fase explosiva, própria do despertar de consciência. Era preciso aproveitá-los. Estrategicamente, era a Guiné que oferecia condições para a passagem dos jovens para o lado dos camaradas, ou seja para as zonas libertadas. Os que não saíssem de Bissau poderiam ser orientados em células do partido para funções de desestabilização e desmotivação das autoridades e estruturas coloniais no terreno.

Entretanto, a marcha do tempo reservou para o ano de 1973 duas marcas de referência obrigatória na história do processo de libertação que iriam pôr de lado a primeira das duas situações que atrás se referiu sobre a utilidade desta geração pós – independência: as marcas de 20 de Janeiro de 1973 (assassinato de Cabral) e 24 de Setembro do mesmo ano (proclamação unilateral da independência da Guiné-Bissau ).

O processo de libertação chegaria ao fim na Guiné em 1974 e Cabo Verde em 1975, com a passagem de testemunho pelas autoridades portuguesas ao PAIGC. 

Para toda a juventude que exultava com as independências, tinha chegado o momento de serem úteis  tanto à Guiné, como a Cabo Verde. E serem úteis significava passarem por uma fase de colaboração no terreno, durante os primeiros anos após a transferência de poderes para o PAIGC. Foi assim que muitos jovens, que tinham já finalizado os estudos liceais e outros em fase adiantada, passaram a leccionar em vários estabelecimentos de ensino, ajudando a minimizar os efeitos da falta de professores habilitados. Outros, ainda, foram orientados para departamentos governamentais, dentro da política de colaboração patriótica que possibilitava posterior obtenção de bolsa de estudo para formação no estrangeiro. Sem uma definição objectiva, sem uma política nacional de aproveitamento dos referidos jovens, seguiu-se a política de formação em países amigos, como vinha acontecendo desde os tempos de luta, com os alunos saídos da escola piloto. A palavra de ordem era: Formar, formar, formar. Se é verdade que era uma necessidade legítima, não menos verdade seria o facto de se justificar uma ampla acção de debate na definição de políticas de orientação para o desenvolvimento da Guiné e de Cabo Verde, tendo como base os valores humanos de que dispúnhamos. Cabral não estava mais presente  e os seus seguidores não conseguiam encontrar interpretações correctas a dar ao processo de construção dos dois Estados independentes da Guiné e de Cabo Verde.

A primeira desta geração e após  cinco a seis anos de formação no estrangeiro, voltou à Guiné ou a Cabo Verde, numa situação de ruptura do órgão dirigente nos dois países, o PAIGC, em 1980. É esta ruptura do PAIGC, consequência do “desaprender” da sua classe dirigente que depois das independências da Guiné e de Cabo Verde se esqueceu dos ensinamentos de Cabral e deu o pior dos exemplos a uma juventude que se confrontava com uma sociedade em mutação, mutação essa implicando mudança de mentalidades (com a passagem de uma sociedade colonial a uma sociedade soberana e africana virada para o desenvolvimento).

  Findo o projecto traçado por Cabral e com o “virar de costas” dos dois países e povos irmãos e a criação dum outro partido em Cabo Verde, o PAICV, terminava também a orientação conjunta na gestão e aproveitamento dos recursos humanos da geração pós – independência. Uma orientação e gestão com saldo negativo, no que ao aproveitamento dos valores dizia respeito e que ainda hoje se verifica.

  A abordagem ao tema continua a sua análise com incidência na Guiné-Bissau, por razões da própria continuidade do PAIGC na condução dos destinos deste país e portanto, continuar a haver um indicador de referência para o desenvolvimento do tema.

  Se é verdade que se formou muita gente nas várias áreas técnicas e científicas por exemplo, o mau enquadramento dos mesmos arrastou toda uma geração que prometia, para uma situação de desmotivação e para o consequente desacreditar das suas reais oportunidades de participação activa e positiva no desenvolvimento do país. Com efeito, pouco ou nada foi feito para estimular os jovens quadros, uma vez regressados ao país. A garantia imediata de emprego no Estado, praticamente o único empregador nos primeiros anos do pós independência, era o único factor positivo para o aliciamento dos recém formados, pois não houve uma política do Estado voltada para a criação de um mínimo de condições básicas de vida. Por exemplo, na capital, a maioria dos quadros não oriundos de famílias privilegiadas da “praça” de Bissau teve que se contentar com alojamentos precários nos bairros suburbanos da cidade, sem água canalizada e luz eléctrica. É certo serem essas as condições do país, que de meios dispunha poucos. Mas  não admitir que uma solução poderia ter sido encontrada, no sentido de dar condições minimamente condignas àqueles sobre os quais repousava o futuro do país, foi um erro crasso. E como prova disso, constatou-se um regresso cada vez menor ao país dos quadros formados nas gerações seguintes.     

  Em termos de enquadramento profissional, pecou-se também pelo baixo grau de exigência de aplicação dos quadros (seria por se saber que nas condições em que viviam era desumano exigir-se-lhes mais?...). Este facto explica-se, em parte, pelo próprio nível da equipa dirigente, que, tendo cumprido valorosamente a sua missão na libertação do país, não estava apta a assumir os comandos de um Estado numa concepção moderna do termo. Infelizmente, o pós independência se caracterizou por um “repouso do guerreiro”. Os dirigentes, salvo raras excepções, não sentiram a necessidade de continuarem a aprender e de se prepararem para a nova fase da luta. Como poderiam nessas condições dinamizar equipas técnicas e exigir delas um desempenho rigoroso? Esse desleixo acabou por criar uma cultura de pouco rigor laboral, a tal ponto que o quadro que exigisse ou que tentasse executar o seu trabalho com a maior perfeição possível era imediatamente acusado de ter “ a mania de branco”. Era o alvo a abater, pois o nivelamento se fazia por baixo.

  As reformas económicas (certo necessárias, mas inadaptadas e incorrectamente concebidas, tendo em conta o tecido socio-económico do país nessa altura) iniciadas na década de oitenta, trouxeram também um outro factor de desmotivação dos quadros pela coisa pública. Na verdade, a rápida baixa do poder de compra do funcionalismo levou a que os funcionários em geral e os quadros em particular se vissem na necessidade de se dedicarem a actividades paralelas a fim de completarem os seus vencimentos, tornados insuficientes para o sustento familiar. Aos poucos, essas actividades foram-se revelando mais rentáveis e passou o salário da função pública a ser o seu complemento... Nestas circunstâncias, o trabalho do Estado passava, sem dúvida, para segundo plano.

  E, enquanto isso, o que acontecia com a classe dirigente? A abertura económica deu lugar a uma corrida desenfreada ao negócio lícito ou ilícito, pouco importava. A sociedade urbana passou a conjugar-se na primeira pessoa do singular, em plena contradição com o resto do país, cuja sobrevivência só era garantida por o sujeito permanecer solidariamente colectivo. Se aqueles que vieram da Luta, que hastearam a bandeira da justiça e da igualdade, deram esse exemplo, o que se poderia esperar da nova geração, que apesar de estar armada com diplomas, não conseguia garantir a sua subsistência? Longe ficaram os ensinamentos de Cabral!

  Com o mudar da sociedade num tal sentido, depressa também se alterou a escala de valores de forma a legitimar-se a política do salve-se quem puder. A honestidade passou a incomodar, por ser acusadora e a corrupção tornou-se  uma forma legítima de ser e estar por ser a única a garantir a sobrevivência.

  Num contexto destes, o que se pode esperar das futuras gerações que apenas conheceram este estado de coisas? Como dizer aos jovens que o futuro de cada um e do país está no trabalho honesto, sério e rigoroso de todos?

  Sendo que as novas gerações são formadas pelas precedentes, a mudança terá que vir dos que estão actualmente na vanguarda dos destinos do pais. É pela sua tomada de consciência da responsabilidade que têm na gestão do futuro da Nação, que deverá despertar o germe da transformação das mentalidades.

  O estado actual do país não permite mais tergiversações nem erros, sob o risco de se aprofundar a crise até a um ponto de não retorno. Não é da comunidade internacional que se deve esperar o milagre. Ele tem que vir de dentro! De dentro de cada indivíduo que se quer cidadão responsável; de cada cidadão a quem foi dado o privilégio de aprender a ler e a escrever, bases incontornáveis da evolução do conhecimento humano. E esse milagre supõe a mudança de atitude de cada um perante o interesse colectivo. Pensar em si, pensando no país e não pensar no país pensando em si, eis a chave da mudança! Isso equivale também a posicionar-se numa perspectiva de desenvolvimento a longo prazo, sem o qual o bem-estar individual não pode ser duradouro. Essa tomada de consciência é, pois, também uma prova de inteligência daquele que compreenderá que o seu enriquecimento pessoal isolado não passa de uma ilusão a curto e médio prazo.

  Como o declinar dos valores da sociedade não aconteceu por si só, uma vez que ele foi a consequência de todo um processo que teve na origem a degradação das condições de vida, o recuperar dos mesmos deverá, necessariamente, assentar numa melhoria das condições de subsistência. Porém, estas só poderão vir com o desenvolvimento económico do país, que proporcionará a cada cidadão o indispensável para a sua sobrevivência. E aí está-se perante um círculo vicioso, em que só a vontade política da mudança é o factor determinante para o ponto de partida. E tal como o mau exemplo viera das classes dirigentes, compete à actual direcção do país dar o bom exemplo, exigindo, a si mesma e ao aparelho administrativo, honestidade, rigor, eficácia e disciplina na gestão das coisas públicas.

  Só assim ela será credível aos olhos da sociedade e poderá resgatar as gerações vindouras de um futuro sem amanhã.

  Como diz o ditado e bem “ ora qui garandis di cassa ta tchami, fidjus tudu ta nornorí”... (*)

 

    (*)Tradução literal: “Quando os pais são bêbados, os filhos nascem engelhados”. Pode-se equiparar ao ditado português “Tal pai, tal filho”

 Agosto de 2004

  


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