PAISAGEM PERDIDA

 

As crianças, efervescentes, saltam das lajes para o mar, do mar para as lajes. Outras, menos irrequietas, vagueiam, ligeiras, por entre os botes, em câmaras-de-ar, servindo de bóias.

 

 

Ana Cristina Ferro Marques

anymarques@hotmail.com

 

Ana Cristina Ferro MarquesViajo para S. Vicente. Logo à chegada sinto uma irresistível leveza. A cidade, agradável, as casas com uma arquitectura antiga, ruas pitorescas, as pessoas tranquilas. As lojas, os pubs, as praças e os jardins denotam, com simplicidade, gosto e brio.

À janela da casa, vejo a Baía do Porto Grande, como uma pintura estática, cintilante sob o Sol do meio-dia, convidando à melancolia enquanto o Sol se põe, esplêndida sob as luzes da noite. Na Rua da Praia, de um lado, o vaivém dos pescadores, do outro, o vaivém do comércio e, neste, encontro a casa do artista. Entro. Sala ampla, quadros expostos. Por outra porta saio e aí, sentado num mocho, encontra-se o artista em alegre conversa com o pescador.

Rua de Lisboa, Café Lisboa. Local de encontro pitoresco, local in, fotografias expostas de momentos in. Meio-dia. Martini on the rocks!

Na noite de Verão grita a música dos grandes hotéis. Fervilham cidadãos, turistas e festivalenses, excitados pela noite que começa. E nos abrigos do grande hotel, frente à praça, em grupos de três, empilham-se crianças, aquecendo-se, dormindo... À luz do dia, nas mesmas ruas, as mesmas crianças, exigem, agressividade no olhar, 10 escudos. Início de mal-estar... como uma pintura estragada.

Vou de barco a S. Antão. No trajecto Porto Novo - Paul, vejo as montanhas, impressionantes, cheias de força, trabalhadas pelo homem para evitar que a chuva as desfaça. S. Antão é para mim o retorno ao essencial. As ribeiras verdes, banhos nos espanadeiros, andar pelos campos... Ouvir, sentada à beira do poço, a história da nascente que foi revelada após um sonho. Gravado na pedra o nome da sonhadora. O limoeiro cheio de ferrugem negra, esperando pacientemente a chuva para o limpar dessa doença... O prazer das pessoas em oferecer alguma comida saborosa e o meu de a saborear. Beber calda de cana, comer amêndoas abertas na hora, cheirar o chá de cidreira...

E nas minhas caminhadas visito os outrora casarões... Hoje, quase abandonados, tentando reter o que não mais será... Grandeza esquecida, abandonada, degradada, impondo uma resistência digna, patética, ao roer dos tempos... Mil pés e ferrugem negra que atacam batatas, mandiocas, coqueiros, limoeiros. Apenas cana e aguardente...S. Antão, ilha agrícola...

Ponta do Sol, vila de ruas largas, casas alinhadas, deserta... Caminho à procura de vida. Encontro-a numa paisagem fantástica, face ao oceano profundo. No litoral extenso, luminoso, de lajes rochosas, encontro toda a azáfama da vila. Os pescadores chegam, as mulheres de alguidar e faca em punho preparam o peixe. Os peixes, esventrados, são lavados nas lajes rochosas. As crianças, efervescentes, saltam das lajes para o mar, do mar para as lajes. Outras, menos irrequietas, vagueiam, ligeiras, por entre os botes, em câmaras-de-ar, servindo de bóias. E lamento ser apenas espectadora... não me diluir nesta paisagem perdida… do Atlântico.

Ana Cristina Ferro Marques


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