Otto Schacht: Ordem para matar ?

 

 

 

 

Por: Norberto Tavares de Carvalho, « O Cote »

 

 

01.07.2006

 

Os fios do presente testemunho foram-me confiados por dois oficiais das Forças Armadas (FARP). Estávamos nos inícios dos anos oitenta e a Guiné era governada por um « Conselho da Revolução ». (Ultimamente soube que afinal existem outras versões sobre este caso. O juízo pertencerá ao leitor.)

Entretanto, comecemos pelo testemuno do assassinato do Sr. Otto Schacht, contado por um capitão que fez parte do grupo de militares, que na noite do 14 de Novembro de 1980 foi « prendê-lo » em sua casa. (No rescaldo deste acontecimento, o confidente viria a ser vítima de intrigas no seio do exército, tendo sido preso algumas semanas depois do golpe de Estado.) Eis o resumo do seu relato: Chegados à casa do Sr. Otto Schacht, situada na Avenida da Unidade Africana, anunciaram-se discretamente e aguardaram nos arredores. Teria sido o próprio Otto, de tronco nu, que apareceria no umbral da porta principal da sua casa, accionando a fechadura e abrindo-a. Acto continuo destacar-se-ia um militar que teria encostado a sua arma ao peito do Otto, disparando quase à queima roupa. Coberto de sangue e jazendo por terra, o malogrado ainda tentaria falar, mas cedo teria sucumbido às balas. O autor do acto chamava-se “N”. Fim do relato. Entretanto, soube-se que o Sr. Otto Schacht estava desarmado naquela noite e que não oferecera resistência nenhuma aos seus « camaradas ». Tudo leva a crer que não desconfiava de nada. Isto supõe que ele poderia ter sido capturado, se fosse essa a intenção dos militares, sem grandes atropelos. Para quê tê-lo então abatido e qual teria sido o móbil do crime? Vou apresentar a versão que me foi contada pelo segundo militar, na altura também prisioneiro. Mas antes, eis as outras duas versões, a última em resposta a um artigo meu recentemente publicado.[1]   A primeira versão diz que o Sr. Otto Schacht foi morto porque, vizinho imediato do Sr. João Bernardo Vieira, que assumiu a responsabilidade do golpe, a segurança tinha-o encarregado de vigiar os passos deste dirigente, o qual, uma vez assegurada a tomada do poder, resolvera cobrar as « infiltrações » do seu vizinho. Tratar-se-ia aqui de um acto de vingança num momento de euforia? Apesar de tudo, não creio que o Sr. João Bernardo Vieira levasse até esse extremo os eventuais problemas de vizinhança, embora tenha esta versão uma estrutura, que embora muito viciada, poderia levar a acreditar. Tomada assim de forma isolada, tenho sérias dificuldades em partilhar esta afirmação. Aproveito para dizer que na Guiné edificou-se um mito que consiste em fazer crer que a « segurança do Buscardini [2] » queria « matar o Nino » ou senão « transformá-lo num verdadeiro farrapo humano » [3]. Aliás nenhuma prova material foi apressentada até hoje. Enfim, a segunda versão que chegou recentemente ao meu conhecimento, a propósito da pergunta que faço num dos meus artigos sobre « Quem mandou matar o Otto Schacht ? », afirma da sua parte :

« Quem matou o Sr. Otto Schacht foi um dos genros do Sr. Armando Lopes na madrugada de 14 de Novembro por divergências sentimentais entre os dois genros que se casaram com duas irmãs mulatas : um era mulato e civilizado e o outro preto, balanta e incivilizado para casar com uma das irmãs mulatas descendentes de cabo-verdeanos ». [4]

Não vou atelar-me na análise desta versão pois, para mim, trata-se mais de um diversionismo do que de uma preocupação séria na tentativa de estabelecer a verdade.

O que se deve saber no entanto é que, efectivamente, o Sr. Armando Lopes tinha três genros: o Sr. Otto Schacht, o Comandante Paulo Correia [5] e um estudante que na altura se encontrava no Brasil.

Posto que o assassinado foi o Otto Schacht, que o terceiro genro encontrava-se no estrangeiro, creio que nâo há comentários a fazer. Passemos então à versão que me foi confiada pelo Comandante das FARP: Durante a luta de libertação nacional, depois do assassinato do Amilcar Cabral, ter-se ia instalado, de novo, uma grave crise no seio do PAIGC.

O Comandante Osvaldo Vieira estava confrontado com acusações proferidas pelo Chefe da Segurança do PAIGC, de sérias tentativas de divisão no seio do Partido. Ao lado do Comandante Osvaldo Vieira alinhara-se o Dr. Fidélis Cabral d’Almada que o teria defendido contra ventos e marés.[6]

O depoimento do Chefe da segurança do Partido, que não era outro senão o Otto Schacht, teria como consequência  a suspensão e o afastamento do Comandante Osvaldo Vieira da direcção do PAIGC e dos destinos da luta. Acantonado numa das bases das regiões libertadas, o legendário chefe de guerrilha morreria tempos depois.

O Comandante João Bernardo Vieira, após ter tido conhecimento da morte do seu primo, teria dito, « debaixo da garganta » [7]: « Agora que morreu, podem estar descansados. »  Com efeito, o « Nino » afinal nunca apreciara as sanções a que o seu primo fora submetido. E em paga dos serviços prestados a este pelos seus guarda-costas, João Bernardo recrutá-los-ia, um a um, para a sua própria guarda pessoal. Entre esses guarda-costas figuraria o « N ». Fim do relato. Aqui,  o caso dá uma outra chave de leitura que acho interessante. A notar que o Comandante Osvaldo Vieira foi reabilitado a título póstumo e que os seus restos mortais repousam em Bissau na Fortaleza da Amura ao lado dos de Pansau Na Isna, Titina Silá, Domingos Ramos, entre outros.

O Comandante das FARP que me confiou esta narrativa foi libertado em Novembro de 1982. Morreu no ano passado em Bissau, vítima de doença prolongada. O Capitão que tomou parte no assalto à casa do Otto e que me relatou o que diz ter-se passado naquela noite do 14 de Novembro de 1980, bem como « N », estão algures na Guiné. Não se tratando de denúncia, prefiro nâo citar os seus nomes.

De qualquer maneira tratou-se de um crime. Para além da versão que sugere que o autor teria sido o Comandante Paulo Correia, apontado como « preto, balanta e incivilizado », as duas outras dão indícios claros do presumido comanditário do assassinato. Vejamos finalmente o que caracteriza o termo « assassinato »: « Em direito (…), define-se o « assassinato » como uma morte prevista e preparada pelo seu autor (que é classificado de « assassino ». O « assassinato » supõe portanto a premeditação, quer dizer a tomada da decisão de matar outrem e a reflexão sobre a maneira de executar a decisão. » [8] 

Depois de terem abatido o Sr. Otto Schacht quem é que ficou descansado ? O vizinho, o genro (!) ou o primo ?

 


[1] « Crimes, enfim, exumados na Guiné ? »

[2] Segundo testemunhos, o Buscardini e o Otto Schat teriam sido enterrados na mesma cova, no 14 de Novembro de 1980…

[3] Dixit Sr. Nicandro Barreto, Comissão de interrogatórios do  «  Conselho da Revolução », 1980.

[4] « Joangopy, o liberal », em africamente.com, 13.05.2006.

[5] Condenado por um tribunal a soldo do Sr. B.V., e executado em 1986 por uma suposta tentativa de golpe de estado, num total desdém do pedido de comutação da pena de morte pela parte do Vaticano. Um crime horrendo!

[6] Comissário de Estado da Justiça na altura do 14 de Novembro de 1980. Embora muito se falou de « justiça » para justificar o golpe de estado, Fidélis Cabral d’Almada nunca foi importunado.

[7] Expressão do crioulo da Guiné que define uma atitude de repulsa.

[8] Tradução do francês do dicionário Wikipédia, enciclopédia livre.

 

PROJECTO GUINÉ-BISSAU: CONTRIBUTO - LOGOTIPO

VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!

Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO

www.didinho.org