O mau, o pior… e o inferno

 

Samuel Reis*

samuel_henrik@hotmail.com

29.08.2009 

  A Guiné-Bissau talvez nunca tenha vivido tempos como os presentes. Não tenho conhecimento de nenhuma época em que as trevas reinassem tão absolutas como hoje. Na minha opinião, nem há 500 anos, quando os povos do território a que hoje chamamos Guiné-Bissau foram escravizados e espezinhados por europeus “cristãos” e “exportadores de civilização”, houve tamanha desolação. Digo isto porque já não temos como opressores apenas os europeus racistas e imperialistas, temos como opressores irmãos africanos, tal como nós. E embora sempre tenha havido traidores, nunca os houve em tão grande número e em tão altas estâncias do poder como os há agora, nem tão pouco houve tanta promiscuidade e corrupção. A prostituição nas ruas de Bissau, o tráfico de droga e todos os negócios criminosos que corrompem até os nossos governantes, a ignorância e cegueira do povo, a fuga de todos os intelectuais para o estrangeiro ou o assassinato dos que permanecem em território nacional, qualquer uma destas calamidades, por si só, bastaria para mergulhar um coração patriótico no mais amargo sofrimento.

  Perante esta situação, muitos são os que defendem a intervenção militar de forças internacionais no território soberano da Guiné-Bissau, afirmando que a liberdade e a independência podem ser suspensas por algum tempo de maneira a alcançar benefícios maiores e mais duradouros. Escrevo este texto com o intuito de persuadir o leitor a rejeitar essa posição, que considero ser perigosa e, frequentemente, simplesmente fruto da falta de informação sobre as intervenções militares internacionais que já foram levadas a cabo e fazem parte da história recente do continente africano e de todo o chamado “Terceiro Mundo”. Acredito que exigir uma intervenção militar estrangeira é o pior passo que alguma vez poderemos dar. Para suportar a minha tese apresentarei casos de intervenções semelhantes que apenas resultaram em mais destruição para a nação que deveriam ter ajudado. Aconselho o leitor a servir-se de todas as ferramentas que tiver à sua disposição para pesquisar posteriormente os casos aqui referidos, de maneira a aprofundar os seus conhecimentos sobre este tema e a confirmar ou desmentir as afirmações aqui elaboradas.

  Como primeiro caso a analisar escolhi a actuação das forças de “manutenção da paz” da ONU no ano de 1994, em Rwanda. Não escolho este caso por acreditar que existe alguma similaridade entre ele e o presente estado da Guiné-Bissau, e muito menos por achar que um massacre racista está prestes a despontar na nossa pátria amada. Escolho este caso muito particular de (des)intervenção militar porque ele é extremamente revelador acerca das intenções e prioridades da organização a que chamamos Nações “Unidas” e é a esta organização que muitos de nós querem recorrer.

  Em 1994 Rwanda encontrava-se impregnada de ódio racista entre uma maioria étnica, os hutus, e a minoria Tutsi. A rádio transmitia mensagens racistas aberta e orgulhosamente, os jornais publicavam opiniões similares, com os mesmos sentimentos de nobreza e justiça acompanhando o ódio irracional, e formavam-se assim grupos de populares “justiceiros” hutus que castigavam tutsis simplesmente por serem tutsis. A violência das agressões escalava, os homicídios começavam a ser comuns. Existia o hábito, entre muitos hutus, de chamar os tutsis de “baratas”. E neste clima altamente violento, onde se podiam ver claramente os sinais do que estava para vir, as forças da ONU mantiveram a calma, a única virtude que as acompanhou durante todo o processo. Muito descontraidamente assistiram a todo o tipo de manifestações racistas, ignorando os incontáveis avisos de que existia um holocausto em gestação no pequeno e paradisíaco país.

  Quando, em Abril daquele ano, o genocídio eclodiu finalmente, a máscara da ONU caiu e o mundo teve, uma vez mais, oportunidade de vislumbrar o verdadeiro rosto da louvada organização. Todos os europeus foram evacuados prontamente, juntamente com os capacetes azuis, ou seja, todos os africanos foram abandonados às mãos da Interahamwe, a (des)organização que levava a cabo os homicídios. Os Estados Unidos e a ONU negaram qualquer responsabilidade ou dever de ajudar o país, e para evitar as obrigações impostas pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, assinada em Paris a 11 de Dezembro de 1946, nunca consideraram “genocídio” aquilo que estava a passar-se. Durante todo o processo se referiram ao holocausto como “actos de genocídio”. O grande massacre era assim, por óbvia conveniência, encarado como um gigantesco aglomerado de singulares “actos de genocídio”, mas não existia propriamente um “genocídio”! Todos os funcionários do governo americano e da ONU foram proibidos de utilizar a palavra “genocídio” sem o prefixo “actos de”…

  Que conclusões devemos tirar desta lição da história? Porquê que a ONU nada fez para evitar a matança? Para mim, e sublinho que isto é apenas a minha opinião (embora fundada sobre factos), é muito simples: a ONU defende os interesses de alguns países e de algumas pessoas, os direitos humanos são só para quem a ONU considera humanos, e os povos africanos não são humanos aos olhos destes falsos altruístas. Não havia nenhuma vantagem, para os países e pessoas que a ONU defende, em prevenir ou interromper esta guerra de pretos, portanto, não o fizeram.

  O segundo caso que vou apresentar é o da Somália e dos infames “piratas” somalis. A Somália há muito se encontra num estado mais miserável do que a Guiné-Bissau (sim, nós não estamos, pelo menos ainda, no fundo do poço… só quase). Uma guerra civil varreu o país de recursos materiais e humanos, agora tudo parece estar condenado no corno de África, tal como na maior parte do continente, que já sustentou grandes povos, avançadas civilizações e impérios impenetráveis.

  Neste estado de caos e anarquia em que está a Somália, a sua extensa e rica costa encontra-se vulnerável a violações das leis marítimas pelas quais se deveriam reger os governos dos países ditos civilizados. Estes últimos, reconhecidos oportunistas natos, rapidamente aproveitaram a miséria alheia para enriquecer e partiram para os mares sem lei do corno de África, a fim de pescar furiosamente. E pescaram, mas o pior ainda estava para vir. Lixo está a ser deitado ao mar na costa somali. Mercúrio, metais pesados e todo o tipo de lixo radioactivo e tóxico é abandonado no oceano. Agora barris começam a revelar-se timidamente nas praias somalis. De onde provém este lixo não é sabido ao certo... Da indústria dos países “desenvolvidos”, é tudo o que se pode dizer com certeza. Quem o lança às águas são anónimas “máfias” que oferecem os seus serviços à indústria ocidental por preços mínimos, em comparação com o elevado custo que acarreta o despojamento devido deste tipo de químicos e desperdícios. Os efeitos são intoxicação de muitas comunidades que precisam do mar para subsistir, malformação em bebés, chagas e mortes…

  Frente a isto, as populações das zonas costeiras mobilizaram-se e formaram-se os primeiros “piratas” somalis, para defender a costa da Somália destes invasores estrangeiros. Mas na Europa as populações são bombardeadas com notícias repletas de meias-verdades e os “piratas” são demonizados, enquanto se enviam frotas para neutralizar esses incorrigíveis “criminosos”, grandes perturbadores da “paz” mundial e dos negócios importantes dos brancos.

  Novamente aprendemos, com este exemplo, que os povos do “Terceiro Mundo” não podem nunca contar com os governos estrangeiros para receber auxílio (não nos bastou a guerra fria para aprender?). E é necessário compreender que o que “eles” (e espero que compreendam a abrangência deste vago termo) fizeram aos rwandeses e somalis é algo que não hesitariam fazer-nos, a nós, bissau-guineenses. A nossa situação era má depois da independência, é ainda pior agora, mas se houver uma intervenção estrangeira, então suspeito que será o inferno. A Guiné é um país que tem muito potencial, muita riqueza, e consequentemente pode, e tem sido roubada. Convidarmos estrangeiros a controlar o nosso território “temporariamente”, acreditando que partirão mais tarde, satisfeitos com os seus actos de solidariedade e deixando para trás a paz e a ordem é, no mínimo, ingénuo. Eu diria até, muito sinceramente, ridículo.

  Os menos crentes na força inesgotável do povo guineense dizem não haver escolha, a intervenção militar estrangeira é necessária. Mas discordo implacavelmente. A intervenção é apenas um engano. Não existe atalho para a liberdade, não existe solução rápida para o nosso problema. O antídoto para os problemas da Guiné-Bissau é uma revolução popular (atenção, não uma revolta popular, mas sim uma revolução popular), só o povo se pode libertar e recuperar o seu poder, porque poder e liberdade nunca são oferecidos. Esta revolução será lenta, dolorosa, longa e esgotante, fundamentada em princípios como o patriotismo, a integridade em todas as áreas da vida e a restauração/construção da unidade nacional, tudo isto baseado no amor pelo povo guineense e pela humanidade, nunca em armas ou na força da violência e do medo. Levámos muito tempo a chegar tão baixo como chegámos, agora levaremos imenso a voltar atrás, não há outra opção. Cada guineense tem que carregar a sua cruz, só se todos o fizermos a pátria sarará.

 

P.S.:  Devido à exagerada extensão do texto privei-me de dar o terceiro exemplo que tinha planeado e seria o papel da ONU na crise do Congo, durante a década de 60. De qualquer forma, deixo um forte incentivo aos leitores para que pesquisem também sobre essa mancha no currículo da ONU e na história da Europa, especialmente da Bélgica, e dos Estados Unidos.


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