SÉRIE ANTROPOLOGIA

 

JITU TEN: A INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA

NA GUINÉ-BISSAU

Wilson Trajano Filho

Brasília

1998

 

Prof. Wilson Trajano Filho

JITU TEN: A INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA NA GUINÉ-BISSAU1

Wilson Trajano Filho

Universidade de Brasília

As idéias que se seguem nasceram de um sentimento exasperante que mistura amargura e indignação com uma pavorosa sensação de impotência frente aos duros acontecimentos do mundo. Minha estória e o sentimento que a pariu resultam de uma experiência pessoal em que se cruzam dois acontecimentos corriqueiros no sistema de dominação mundial, sendo produtos da miséria, desorganização e penúria das instituições periféricas — daqui e de alhures. Originalmente este ensaio foi concebido como uma homenagem ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) da Guiné-Bissau. Porém, cresceu a um ponto tal que a homenagem corre o risco de ser deslocada para um segundo plano. Esta não é definitivamente minha intenção. Pelo contrário, o seu tamanho e as inúmeras referências que aparecem no texto não são mais do que uma indicação da complexidade da instituição que homenageio e da qualidade da investigação ali realizada.

I O primeiro acontecimento é bastante prosaico e teve lugar em dezembro de 1994.

O Brasil, então, acabava de eleger o seu Presidente da República. Naquela ocasião, o país, inebriado com um presidente que falava francês, com uns poucos meses de estabilidade monetária e com a fantasia de uma moeda sobrevalorizada, se lambuzava com as quinquilharias que aqui aportavam para saciar a sede natalina de uma sociedade de consumidores. Os portos brasileiros, abarrotados de missangas e espelhos modernos eletrônicos, não conseguiam distribuir as toneladas de bugigangas no mesmo passo em que elas desembarcavam. O serviço de correio estava completamente sucateado. E como se pretendesse estragar as veleidades e frustrar as aspirações conquistadas com inaudito orgulho pelos cidadãos-consumidores bem às vésperas do Natal, os funcionários da empresa de Correios e Telégrafos entraram em greve.

A entrada do Brasil no nem tão seleto clube das nações seduzidas e abandonadas — para usar a feliz expressão de Alcida Ramos (1998: 147) — pelas relações globalizadas de dominação foi a responsável por um acontecimento banal do qual fui protagonista. Por causa da greve dos correios e da febre de importação postal, só fui receber no início de dezembro uma carta postada três meses antes em Bissau pelo sociólogo e historiador 1. Johannes e Moema Augel, Abdulai Silá e Teté Montenegro foram de uma ajuda inestimável para a elaboração deste trabalho, preenchendo as muitas lacunas de meu conhecimento. Alcida Ramos e Mariza Peirano leram diferentes versões preliminares e fizeram, como sempre, preciosos comentários. A todos eles meus agradecimentos.

Carlos Cardoso, na altura, diretor do INEP. Nesta carta, meu amigo Caló anunciava a comemoração dos 10 anos do INEP e pedia que eu escrevesse um pequeno texto contando minha experiência no Instituto. Ele pretendia publicar uma brochura comemorativa com os testemunhos de diversos investigadores estrangeiros que haviam estado na Guiné. Porém, a data final para a entrega dos trabalhos já expirara há muito quando a carta de Caló me alcançou. Eu, que tanto devia material, intelectual e afetivamente ao INEP e seu pessoal, não pude tornar pública minha imensa dívida sob a forma de uma homenagem-testemunho por causa da precariedade do serviço brasileiro de correio, paralizado pela falta de condições operacionais que fizessem fluir os dejetos sem nome e sem história produzidos em não-lugares para serem consumidos na periferia do mundo.

Alguns meses mais tarde, com um sentimento de frustração, recebi a tal brochura com testemunhos de estudiosos de diversas partes do mundo que tinham alguma ligação com a Guiné-Bissau. Consolei-me na ocasião fazendo minhas as palavras de todos estes companheiros de jornada, flagelando-me com a idéia de que eu não tinha nada de especial a acrescentar àquela bela homenagem.

O segundo acontecimento é muito mais dramático, embora seja lamentavelmente trivial nesta sofrida África que só em 1998 já sangrou com abundância e violência em conflitos na Libéria, Serra Leoa e Sudão; em Ruanda, Angola, Eritréia e Etiópia; no Congo e na Casamansa. Teve início a 7 de junho de 1998, quando o General Ansumane Mané, ex. chefe do Estado-Maior das Forças Armadas guineenses, se amotinou contra o governo presidido desde 1980 por João Bernardo "Nino" Vieira. O que parecia ser, a princípio, um assunto de caserna, um acerto de contas entre chefes de guerra rivais, ganhou rapidamente contornos de conflito regional, envolvendo milhares de soldados estrangeiros e uma sofrida população civil.

Rebelando-se contra sua demissão da chefia do Estado-Maior, em meio a acusações de tráfico de armas para o movimento separatista da Casamansa, no sul do Senegal, Mané proclamou-se chefe de uma Junta Militar que reivindicava a demissão do Presidente da República e a realização de eleições parlamentares. Muito popular entre a tropa esfaimada e sem soldo, especialmente entre os combalidos "Combatentes pela Liberdade da Pátria" que outrora derrotaram o exército colonial português, Mané tomou rapidamente os principais quartéis de Bissau. Tão logo se viu isolado em palácio, o presidente buscou auxílio nos países vizinhos com os quais havia assinado acordos de cooperação militar — o Senegal e a Guiné-Conacri. Em pouco tempo, desembarcavam em Bissau milhares de soldados estrangeiros. No auge do conflito, chegou a haver cerca de 4.000 soldados senagaleses e 2.000 da Guiné-Conacri na capital guineense, além de uma quantidade indeterminada no interior do país.

Inicialmente, os combates ficaram restritos à capital. Centenas de pessoas morreram cravadas de balas e feridas pela artilharia que destruiu grande parte da cidade já tão miserável. Bissau tornou-se uma cidade fantasma, uma arena aberta à razia, ao rapto e ao roubo. Milhares de pessoas abandonaram as suas casas e pertences e fugiram desabaladas, sem destino nem esperança. As vilas tradicionais no interior do país e as pequenas cidades crioulas acolheram toda uma multidão de refugiados que, num átimo, chegava faminta, doente e desolada. As mortes por todo o país alcançaram a casa dos milhares, e por motivos muito corriqueiros: fome, cólera, desinteria, malária...

Somente a 3 de novembro, portanto quase quatro meses depois do início das hostilidades, as partes beligerantes chegaram a um acordo frágil, que talvez conduza à desocupação da Guiné pelos militares estrangeiros. E só o fizeram porque mexeram com os interesses conflitantes de potências mundiais e coloniais como os Estados Unidos e a França, além de Portugal, e envolveram recursos e esforços de mais de uma dezena de países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da Comunidade Econômica para o Desenvolvimento da África Ocidental (CEDEAO).

O conflito na Guiné-Bissau é um interessante caso para a análise das complexas conexões e conflitos entre as lógicas e interesses de grupos locais, nacionais e continentais.

Mas meu pensamento não se volta para estes grandes temas. Sou antropólogo e minhas estórias são mais prosaicas, porém mais humanas e dramáticas.

Em setembro, depois de um cessar-fogo provisório muitas vezes desrespeitado, funcionários do INEP obtiveram permissão dos invasores para visitar o Instituto. A avaliação feita depois desta primeira visita assim foi resumida por um de seus diretores, num SOS enviado ao mundo através da Internet: DESASTRE. O sociólogo Carlos Lopes, idealizador e primeiro diretor do INEP, resumiu a situação em um lamento: "o centro do saber e memória coletiva da Guiné-Bissau foi transformado em caserna provisória de militares estrangeiros".

As salas de seminários e os escritórios de trabalho dos investigadores foram arrombados e transformados em dormitórios para os senegaleses. Dezenas de computadores abrigando as bases de dados penosamente construídas sobre todos os aspectos da vida do país foram vandalizados. Centenas de fitas cassetes que continham milhares de horas de gravação com a memória viva da história da luta de libertação nacional e com o registro das ricas e variadas tradições orais do país foram pisoteadas, destroçadas ou simplesmente usadas para um registro menos nobre. O Arquivo Nacional foi completamente dilapidado. As caixas que guardavam os documentos e contavam a história do país foram para o lixo, levando para o mesmo destino os anos de trabalho dedicado dos arquivistas do Instituto.

A biblioteca do INEP, embrião da Biblioteca Nacional, a maior do país e a melhor para o estudo da costa ocidental africana, foi destruída por uma única bomba, que a destelhou completamente. As chuvas torrenciais de julho e agosto completaram o serviço.

Uma boa parte do acervo de 70.000 livros e periódicos (cerca de 10.000 de Ciências Sociais) estava a boiar, irremediavelmente perdida no lago de lama em que a biblioteca se transformara. O pouco que sobrou intacto foi consumido gradativamente pelas fogueiras que coziam o alimento da tropa. Repetindo tragicamente o enredo narrado pelos rumores que analisei em outra ocasião (Trajano Filho 1992), a ação dos militares estrangeiros mais uma vez atuou para apagar e fragmentar a memória coletiva e separá-la do corpo social, para assim melhor dominar.

Desde então estou de luto. Mas tenho certeza que não estou só. Dividem comigo esta profunda tristeza e indignação não apenas os investigadores e funcionários guineenses, mas todos os estudiosos estrangeiros que, como eu, tiveram a honra de conviver com o seu pessoal. E com este luto, minha dívida pendente de 1994 cresceu na mesma escala da desrazão que na Guiné fez sua mais recente colheita.

Mas o que é o INEP e qual é, de fato, o fundamento do meu luto? Meu contato com o Instituto se deu logo depois que cheguei à Guiné-Bissau em 1987. Fui à sua sede pela primeira vez numa manhã de dezembro para me apresentar ao seu diretor e cumprir as formalidades burocráticas necessárias para desenvolver meu projeto de pesquisa no país, o que incluia a renovação de meu visto. Já estaria em débito com o Instituto se ele apenas conseguisse que meu visto fosse renovado. Mas, para minha surpresa, encontrei ali muito mais do que uma instância burocrática.

O INEP é a instituição que concentra praticamente toda a pesquisa científica feita na Guiné-Bissau. Além da investigação, seu corpo bem qualificado de pesquisadores presta assessoria às agências estatais e aos orgãos de cooperação internacional na formulação de políticas públicas. Foi criado em 1984 graças à surpreendente capacidade de iniciativa e de sonhar de um pequeno grupo de jovens intelectuais guineenses sob a liderança do sociólogo e historiador Carlos Lopes. Com uma organização burocrática simples e eficiente, o INEP tem uma estrutura material de fazer inveja a qualquer outra instituição governamental, mas só uma parcela irrisória de seu orçamento é financiada pelo Estado.

Suas atividades de investigação se distribuem por três centros: o Centro de estudos de História Contemporânea (CEHC), o Centro de Estudos Sócio-Econômicos (CESE) e o Centro de Estudos de Tecnologia Apropriada (CETA)2.

Ao longo dos seus 14 anos de existência, o Instituto publicou cerca de 250 títulos sobre os mais variados aspectos da vida guineense veiculando a pesquisa científica realizada por seus investigadores permanentes e associados e por colaboradores ocasionais residentes na Guiné e no exterior. São mais de duas dezenas de monografias e coletâneas que cobrem temas tão variados como crioulística, história e etnologia das sociedades tradicionais da Guiné-Bissau, análise de políticas públicas, desenvolvimento, sociologia política e meio ambiente. Além destes livros, o serviço de publicações do INEP edita o Boletim de Informação Sócio Econômica (BISE), veiculando a produção dos investigadores do CESE, o Boletim de Informação Científica e Técnica (BICT), com os trabalhos dos pesquisadores do CETA, e a revista Soronda, de periodicidade semestral.

Vocábulo Kriol de origem mandinga significando desabrochar, crescer, Soronda bem sintetiza a intenção dos criadores do INEP com respeito à investigação científica na Guiné- Bissau.

Foram publicados 117 artigos, 25 notas de leitura, 17 documentos, quatro obituários e três editoriais nos 20 primeiros números de Soronda, entre os anos de 1986 e 1995. Ao todo, a revista veiculou a produção intelectual de 28 autores guineenses e 54 estrangeiros. Os artigos foram assinados por 27 autores guineenses e 48 estrangeiros. Dos 17 documentos publicados, nove se referem a fatos da história colonial da Guiné no período 1861-1952, seis são textos produzidos por representantes do governo independente do país, entre os anos 1978 e 1991 e por agentes do movimento de libertação nacional, nos difíceis anos da guerra colonial. O restante é uma miscelânea documental contendo textos tão variados como o já referido conjunto de depoimentos em homenagem ao INEP, o relatório de uma comissão das Nações Unidas sobre a economia africana, entre outros. As 25 notas de leitura. assinadas por 15 autores estrangeiros e cinco guineenses, resenham 31 2. Até 1988, o CETA era chamado Centro de Documentação Tecnológica (CDT).

 Dentre os autores estrangeiros, sete participam somente na seção de resenhas da revista, enquanto o restante também contribui com artigos originais. Dentre os quatro autores guineenses, apenas um participa exclusivamente como autor de nota de leitura. Das 31 obras resenhadas, oito são de autoria de guineenses e 22 escritas por estrangeiros. Vinte e cinco obras tematizam exclusivamente algum domínio da vida social na Guiné e seis focalizam questões regionais do continente. Os quatro obituários são assinados por dois investigadores guineenses e por um senegalês.

TABELA 1

PRODUÇÃO VEICULADA EM SORONDA3

As trajetórias de vida e de carreira dos 54 autores estrangeiros são muito variadas.

Alguns se formaram e trabalham nos países em que nasceram. Outros estudaram na sua terra natal, mas estão ligados a instituições de outros países, onde residem de modo permanente. Alguns deixaram suas comunidades de origem para terminar os estudos e a elas retornaram para trabalhar. Outros são os habitantes típicos daquelas configurações espaciais que Augé (1994) chamou de não-lugares — são os consultores e técnicos das agências multilaterais de cooperação que passam boa parte de suas vidas profissionais pulando de país em país. Há ainda um grupo de intelectuais da diáspora que foram expelidos de suas comunidades natais pela violência política ou pela falta de oportunidade de estudo e trabalho e que, graças à trama urdida pelo acaso, vieram dar à Guiné, ali se estabelecendo de modo mais ou menos permanente.

Na impossibilidade de esboçar as biografias individuais dos autores estrangeiros de modo a determinar e distinguir com precisão nacionalidade, local de residência e filiação institucional, tomarei a origem nacional das instituições a que os autores estão ligados

3. A soma das colunas "autores guineenses" e "autores estrangeiros" alcança um número maior do que os 28 autores guineenses e os 54 estrangeiros pela simples razão de que alguns autores são contabilizados duas ou três vezes como autores de artigos, notas de leitura e obituários. como equivalente à nacionalidade. Deste modo, sendo-me impossível determinar esta, contento-me com aquela.

Os 54 autores estrangeiros distribuem-se por 21 nacionalidades. Os franceses representam o maior grupo, com nove autores publicando 13 artigos e uma nota de leitura em Soronda. A presença de três senegaleses, uma canadense do Quebec e um zairense torna ainda mais significativa a representação francófona. Sete autores são suecos ou ligados a instituições deste país, veiculando cinco artigos e três notas de leitura na revista.

Seis autores americanos publicaram sete artigos e três notas de leitura. Cinco holandeses contribuem com seis artigos e uma nota de leitura. Quatro autores brasileiros publicam seis artigos. Destaco também a existência de sete autores africanos: os três já mencionados senegaleses, um do Togo, um de Benin, um de Moçambique e um de proveniência nacional desconhecida.

A ligação dos autores estrangeiros com o INEP e com a Guiné-Bissau é variada.

Alguns são ou foram investigadores associados ao INEP, tendo tido uma experiência direta de pesquisa e/ou consultoria no país. Outros estão ou estiveram a residir no país como investigadores permanentes do Instituto, como cooperantes filiados a outras instituições governamentais, ONGs e à Igreja Católica, ou como remanescentes dos "pés vermelhos" — autênticos peregrinos intelectuais que, atraídos pela possibilidade de testemunhar uma genuína forma de socialismo africano orientado pelos escritos de Cabral, têm enxameado a Guiné desde sua independência (cf. Chabal 1983: 189). Outros ainda são colaboradores esporádicos com pouca ou nenhuma experiência de pesquisa de campo na Guiné.

Esta distribuição de autores por nacionalidades ou por filiação a instituições nacionais reflete algo da dependência que caracteriza as relações da Guiné com os países ricos. A elevada presença de autores suecos e holandeses está certamente associada ao fato de serem estes países os dois maiores fornecedores de ajuda direta bilateral para a Guiné.

Das cinco nacionalidades mais representativas entre os autores que publicam em Soronda, somente o Brasil não aparece na lista dos cinco maiores doadores de ajuda bilateral4. Creio que a maioria de autores franceses está associada ao movimento de expansão da hegemonia francesa em toda a África Ocidental. Até 1987, a França era o quarto maior doador de ajuda bilateral para a Guiné-Bissau. Era um dos cinco maiores parceiros comerciais, sendo o terceiro importador de produtos guineenses e o quinto maior exportador para Guiné5. Em 1997, a influência francesa tornou-se ainda mais intensa com a entrada da Guiné na zona de união monetária do Franco CFA, moeda que tem sua convertibilidade garantida pelo banco central francês.

A pequena participação de autores de origem portuguesa e caboverdiana em Soronda é digna de nota. Apenas um autor português e um caboverdiano contribuem para a revista no período em questão. O primeiro é o padre e historiador João Dias Vicente, vigário da Diocese de Bissau, com muitos anos de residência na Guiné. Publicou um artigo, uma resenha e editou um apenso documental. Padre Vicente colaborou ainda com um trabalho sobre a penetração do cristianismo em Cacheu no volume organizado por Lopes

4. Ver Forrest (1992: 104-105) para a lista das principais fontes de ajuda externa para a Guiné.

5. Não está computada aqui a importante exportação senegalesa para a Guiné, cuja pauta certamente conta com muitas mercadorias produzidas por companhias de capital francês no Senegal. (1993) e com um artigo sobre o padre guineense Marcelino Marques de Barros no volume coordenado por Cardoso e Augel (1996), ambos publicado pelo INEP. Contudo, sua longa permanência na Guiné e seu vínculo primário com a Igreja católica não o fazem exatamente um representante da historiografia ou da comunidade intelectual portuguesa.

De fato, a carreira de historiador do padre Vicente é circunstancial e subordinada a suas atividades religiosas. Por sua vez, o caboverdiano Daniel Pereira, da Direção-Geral da Cultura de Cabo Verde, publicou uma nota de leitura em Soronda, contribuindo também em outra publicação do INEP (Lopes 1993) com um artigo sobre a Companhia de Cacheu no século XVII.

A escassa presença de portugueses e caboverdianos nas páginas de Soronda sugere que a metrópole européia que exerceu nominalmente o poder colonial na Guiné por quase um século e as ilhas de onde o regime colonial português recrutou a maioria dos funcionários coloniais que governaram sua mais pobre colônia deixaram o centro do palco em que se desenrolam as relações da Guiné com o resto do mundo. Portugal e Cabo Verde perderam, de certo modo, o prestígio político e simbólico que tinham até a independência, sendo substituídos por outros protagonistas. Portugal continua a ser o maior parceiro comercial da Guiné e o principal destino europeu dos migrantes guineenses, mas já não exerce uma hegemonia de natureza intelectual.

Os trabalhos científicos publicados em Soronda revelam a vocação claramente multidisciplinar da revista e, por consegüinte, da instituição que a publica. Os 74 autores dos 117 artigos distribuem-se por 20 filiações disciplinares, como mostra a Tabela abaixo.

TABELA 2

DISTRIBUIÇÃO DA FILIAÇÃO DISCIPLINAR6

 

A análise do conteúdo dos 117 artigos publicados reforça a indicação da vocação multidisciplinar da revista. A produção intelectual veiculada em Soronda cobre 26 temáticas gerais. É importante chamar a atenção para a natureza necessariamente arbitrária desta classificação, ressaltando que este mesmo agregado de artigos poderia ser classificado diferentemente — tanto no que toca à distribuição interna dos artigos pelas temáticas como no que se refere às próprias temáticas por mim escolhidas — caso os objetivos e o sujeito classificador fossem outros. A freqüência diferenciada com que estes temas aparecem na revista indica a sua importância relativa no conjunto total de pesquisas realizadas na Guiné. A Tabela 2 revela a distribuição de temáticas e sua freqüência relativa.

 

TABELA 3

DISTRIBUIÇÃO E FREQÜÊNCIA RELATIVA DE TEMÁTICAS7

A prática científica desenvolvida no INEP e revelada pela produção veiculada em Soronda caracteriza-se pela inexistência de fronteiras rígidas a separar as disciplinas. A porosidade dessas fronteiras ciplinares torna-se mais ainda evidente quando se focaliza a relação entre as temáticas abordadas e a filiação disciplinar dos autores guineenses. Os artigos escritos pelos 10 historiadores cobrem 13 temas. A produção dos três historiadores guineenses cobre um leque mais amplo de temáticas do que a dos sete historiadores estrangeiros. São os primeiros os autores de textos sobre desenvolvimento e etnologia guineense. A história das sociedades guineenses foi a terceira temática mais freqüente na produção dos cientistas políticos, mas foram exclusivamente os cientistas políticos guineenses que escreveram sobre o tema. Enquanto os economistas estrangeiros lidam majoritariamente com economia política e análise de políticas públicas, os economistas guineenses elaboraram trabalhos sobre religião e sistemas de pensamento e sobre a história das sociedades guineenses. Ilustro meu argumento, referindo-me aos trabalhos de alguns autores guineenses publicados pelo INEP, mas não necessariamente em Soronda. O filósofo Carlos Cardoso escreve sobre o movimento religioso Ki-Yang-Yang (1990), economia camponesa (Cardoso e Ribeiro 1987), conflitos étnicos no século passado (1989) transição democrática (1994, 1996a), Ciências Sociais na Guiné (1996). O sociólogo e historiador Carlos Lopes lida com temas tão variados como a construção da nacionalidade (1987), o reino mandinga do Kaabu (1988, 1990), a penetração do islamismo no reino mandinga do Kaabu (1993a), as resistências africanas à implantação de regimes coloniais na África ocidental (1989), a historiografia africana (1994) e a crise econômica no continente (1995). A socióloga Handem faz a etnografia tradicional dos Balanta Brassa (1986), ao mesmo tempo em que avalia políticas públicas (1987) e escreve sobre desenvolvimento (1991). O sociólogo Raul Fernandes aborda a questão democrática na Guiné 1994), sistemas políticos tradicionais e o poder estatal (1993), e o sistema político Bijagó (1989).

No quadro de paucidade e carência de recursos materiais e humanos que caracteriza a situação da pesquisa científica na Guiné-Bissau, a atomização disciplinar parece não fazer sentido prático. Embora os autores guineenses se filiem a esta ou aquela disciplina, sua prática científica caracteriza-se, de fato, pela interdisciplinaridade. No que toca ao conjunto de saberes que compõem as Ciências Humanas, um quadro de atomização disciplinar a separar, por exemplo, Antropologia de História, Ciência Política de Sociologia, seria absolutamente estranho à experiência guineense. Parece-me ser isto o que explica o fato de que, por exemplo, ao refletir sobre o fazer científico na Guiné-Bissau, Carlos Cardoso (1996) usa a expressão Ciências Sociais, não fazendo em nenhum momento menção às disciplinas que a constituem.

Entretanto, não me parece que a natureza interdisciplinar da prática científica na Guiné se explique unicamente pela situação local de carência, geradora de uma criativa mas também perversa ideologia que se centra no mote "das tripas coração" e que força todos a fazerem de tudo um pouco na Guiné. Uma outra linha de explicação deveria ser buscada em certas tendências contemporâneas dos estudos africanistas nos países centrais e no exame do local de formação dos autores guineenses.

Moore (1994: 86-87) argumenta que os estudos africanistas passaram por cinco ondas de teorização crítica desde os anos 60. A primeira foi a crítica à mentalidade colonial que pôs a antropologia na berlinda imediatamente após a independência dos países africanos. No presente, ela assume a feição de uma crítica às relações neocoloniais, com uma forte ênfase na análise das estruturas de pensamento e dos projetos identitários forjados na interação histórica entre colonizados e colonizadores que competem por hegemonia (cf. Fabian 1986; Comaroff and Comaroff 1991).

A segunda onda tomou a forma de uma crítica à economia global que, por meio de análises de inspiração marxista e das várias versões da teoria da dependência e do sistema mundial, tem revelado a fragilidade e a dependência das economias nacionais africanas frente aos países centrais e a natureza neocolonial das relações entre os estados nacionais africanos e as metrópoles européias (cf. Amin 1976; Rodney 1974). Ligada, de certo modo, a esta onda crítica, aparece a voga contemporânea notada por Hart (1985: 265) e por Moore (1994: 130) dos estudos que abordam realidades locais (uma seita, um movimento de revitalização religiosa, um faccionalismo político, uma estratégia econômica), referindo-as aos domínios mais abrangentes da nação e do sistema global. Também se vinculam à crítica da economia global as análises sobre o impacto que os programas de ajustamento estrutural patrocinados pelo Banco Mundial têm tido sobre a distribuição de renda e níveis de pobreza e emprego e os estudos sobre as transições políticas para regimes de multipartidarismo (cf. Collier 1993: 73-74).

A crítica orientada pelo gênero, que procura estabelecer uma nova visada e um novo entendimento do papel da mulher africana, representa o terceiro grande tema de teorização crítica nos estudos africanistas. Este esforço analítico tem procurado expor e ultrapassar a dupla violência silenciadora que ronda a mulher africana: o silenciar das mulheres por suas próprias sociedades e pelas autoridades etnográficas masculinas (cf. Miller 1993: 260-61, para uma referência às mulheres Mande). Têm tido especial destaque os estudos sobre a divisão do trabalho orientada pelo gênero, o papel da mulher nos processos de urbanização (cf. Little 1973) e a emancipação da mulher em meio ao processo político mais geral de descolonização (cf. Urdang 1979).

A quarta onda de teorização crítica revela o quanto o discurso dos saberes sobre a África estão embebidos nas relações de poder que tradicionalmente subordinam os intelectuais africanos à academia ocidental. O filósofo Hountondji (1992), um dos colaboradores de Soronda, chama a atenção para o fato de que a pesquisa científica feita em África por africanos raramente é destinada a atender às demandas postas pelas sociedades africanas, que há um acentuado desequilíbrio entre o consumo e a produçãocientífica; especialmente no plano da produção teórica haveria uma divisão do trabalho, cabendo ao pesquisador africano o papel de fornecedor de matéria prima intelectual.

Assim, a atividade científica em África é caracterizada por um "vácuo teórico" ou por uma produção presa às especificidades do contexto local, sem capacidade nem vontade de alcançar o universal (Hountondji 1992: 240, 244). Mais incisiva ainda tem sido a posição do filósofo zairense V. Y. Mudimbe (1988). Passando o conhecimento acumulado pelo Ocidente sobre a África por seu ácido escrutínio crítico, Mudimbe expõe um perverso tipo de orientalismo que só poderia ser ultrapassado com o surgimento de uma versão africanasobre o continente e sua história8. De um modo ou de outro, a crítica ao discurso do poder

8. No tocante à pesquisa etnográfica, uma versão a meu ver estreita da crítica ao discurso do poderencontra-se em Owusu (1997), que pretende demonstrar a falácia das representações das propõe a necessidade de um saber afro-centrado que rompa com a distância produzida pela versão africana do orientalismo.

Por fim, a quinta onda de teorização crítica liga-se à problemática pós-moderna da representação, especialmente, as relações associadas à produção de sentido, à possibilidade de um verdadeiro diálogo transcultural. Falando alto ao coração de muitos antropólogos, esta última onda de teorização não é originária dos estudos africanos, mas parte integrante do processo de reconfiguração do pensamento social no meio acadêmico ocidental, sobretudo o norte-americano. Ela tem sido especialmente cara àqueles que se dedicam a algo que eu chamaria de uma meta-antropologia. Nos estudos africanos, esta tendência é ilustrada nos esforços de autores como Jackson (1986), com sua experimentação de gêneros numa novela etnográfica.

Além destes traços distintivos dos saberes contemporâneos sobre África, também vale a pena ressaltar, agora no circuito mais estreito de uma única disciplina, algumas características próprias da antropologia africanista da atualidade que agregariam inteligibilidade sociológica à produção intelectual veiculada em Soronda. A propriedade mais marcante da moderna antropologia das sociedades africanas tem sido, para usar a expressão de Hart, "a consumação do casamento entre antropologia e história" (1985: 255)9. A porosidade que possibilita o movimento de vai-e-vem e que caracteriza a fronteira entre as duas disciplinas — tão distanciadas no período da ortodoxia estruturalfuncionalista — começou a ser elaborada no próprio interior da ortodoxia, notadamente, na sociologia da África negra de Balandier e seus discípulos. Dos estudos urbanos em situações multiétnicas, a abordagem historicizante atingiu as temáticas mais tradicionais da disciplina, como nas aná_ises da formação dos reinos africanos e de suas relações com as sociedades segmentárias. Ilustrando esta linha de abordagem no contexto guineense, destaco o recente estudo de Henry (1994) sobre os Bijagós da Guiné-Bissau. A descoberta da história, especialmente da história africana contada por africanos, teve um imenso poder de renovação nos estudos africanistas. Ela não representa apenas uma rota para o conhecimento de um passado antes tido como inacessível, mas, como corretamente notou Jewsiewicki (1992: 96), referindo-se aos autores que contribuíram na renomada revista

Présence Africaine, é uma força moral, é a fonte na qual as sociedades buscam motivação e energia para reconstruir sua consciência e identidade e para assegurar o controle de seu futuro.

O segundo traço marcante da antropologia africanista contemporânea é a crítica ao modelo de tribo e de sua forma clássica de descrição. Desde os anos 50, com a sociologia da África negra e com os estudos realizados pelos antropólogos do grupo de Manchester, cujo interesse maior se desloca do equilíbrio funcional para a mudança, que a tribo como um ente discreto e circunscrito deixou gradativamente de ser a unidade de análise central da pesquisa antropológica em África. Em seu lugar entraram em cena os intelectualmente provocantes, mas escorregadios conceitos de etnicidade e identidade10.

Um outro atributo distintivo da antropologia africana atual advém de um sociedades africanas feitas por antropólogos ocidentais a partir do precário conhecimento das línguas africanas. No extremo, Owusu estaria colocando limites lingüísticos para a possibilidade da tradução cultural.

9. Ver também Tonkin (1990: 144-45); Moore (1994: 89-90).

10. A crítica ao modelo tribal tem sido feita a partir de perspectivas muito variadas, sendo uma crítica política, teórica, epistemológica e histórica. Ver, entre outros, Southall (1970); Kopytoff(1987). desdobramento dessa crítica ao modelo tribal e, de certa maneira, da nova conjugação entre história e antropologia. Trata-se do relativo declínio do modelo de descrição etnográfica da tribo e do método de colher dados para tal. O uso do método e do material histórico por antropólogos fez com que o tradicional trabalho de campo intensivo perdesse a primazia absoluta que tivera até então nos estudos africanistas (Hart 1985: 255). Como foi muito bem posto por Tonkin (1990: 141), o survey morreu uma morte calma e, com ele, todo o esforço de se realizar etnografia como a descrição totalizante de um etnos enquanto uma unidade discreta e distinta de outras de igual natureza. A conseqüência imediata disto tem sido a relativa perda de interesse nas detalhadas descrições etnográficas da totalidade de um povo em longas monografias. A etnografia africanista contemporânea focaliza majoritariamente questões particulares nas quais a tribo ou seu avatar, o grupo étnico, não constitui o sujeito central de análise. Porém, é curioso notar que a perda de prestígio das monografias gerais na indústria acadêmica é muito mais sentida no mundo anglo-saxão. Os antropólogos franceses ainda continuam a escrever detalhadas descrições dos povos africanos em monografias muitas vezes aborrecidamente eruditas, mas francamente agregadoras de saber (cf. Hart 1985: 253, 263; Tonkin 1990: 143; Moore 1994: 89).

Num certo sentido, a antropologia é a disciplina-mãe do saber social sobre a África. Por isso, tem assumido historicamente uma gama extremamente variada de interesses temáticos, gerando uma miríade de subespecializações. O fim deste monopólio antropológico do saber africanista e o diálogo da antropologia com disciplinas afins criou um quadro tal que as múltiplas temáticas da pesquisa antropológica, muitas vezes, têm mais em comum com tópicos afins em outras disciplinas que com outros campos da própria disciplina (Moore 1994: 122). Toda antropologia feita hoje em África é, portanto, fortemente marcada por um burburinho de diálogos entre saberes que, com seu ruído difuso, esmaece as distinções disciplinares. Esta interdisciplinaridade do saber africanista varia de intensidade e estilo, mas parece-me ser mais acentuada na tradição francesa, que ainda hoje é muito marcada pela influência de Balandier e seu primeiro grupo de estudantes11. A institucionalização dos saberes sobre África no meio acadêmico francês foi marcada pelo esforço de convergência disciplinar em torno do fato social, tendo como conseqüência um mapa disciplinar em que Antropologia, Sociologia, História, Ciência Política e Economia se interpenetram (Balandier 1959: 21; Copans 1981: 103) sem, contudo, renunciar ao esforço de descrição totalizante.

Dos 27 autores guineenses que publicaram artigos em Soronda, os 10 mais ativos são Carlos Lopes, Carlos Cardoso, Raul Fernandes, Diana Lima Handem, Rui Ribeiro, Peter Mendy, Mamadu Jao, Mário Santos, Faustino Imbali e Jorge Cabral12. A Tabela 4 relaciona a produção destes autores, sua titulação e filiação disciplinar.

11. Sobre a importância e influência de Balandier na antropologia africanista feita em França e nos países francófonos ver Adler et. al. (1986). Moore (1994: 99-104) oferece uma leitura exterior desta influência. Ver também o artigo-depoimento de Terray (1992).

12. Não entra nesta lista o nome do engenheiro Abdulai Silá, que, como Jorge Cabral e Mário Santos, publicou dois trabalhos em Soronda. A razão de sua exclusão se deve somente ao fato de sua filiação disciplinar se afastar das Ciências Sociais e das Humanidades.

TABELA 4

AUTORES GUINEENSES MAIS PRODUTIVOS EM SORONDA

 

Nota-se uma clara predominância da formação francesa entre os autores guineenses mais produtivos. O fato de os autores guineenses terem se formado em uma tradição que institucionalizou, sob a sombrinha englobante da categoria "Ciências Sociais", aquilo que em outras tradições nacionais são disciplinas com um relativo grau de autonomia, constitui um fator que, juntamente com a carência de recursos e a urgência de se implantar uma prática de investigação científica na Guiné, opera em direção ao apagamento das fronteiras disciplinares.

De modo geral, há um relativo equilíbrio no número de autores guineenses e estrangeiros a tratar das diversas temáticas. Fogem deste padrão os estudos sobre etnologia guineense, sistemas políticos tradicionais, conflitos sociais, que são tratados majoritariamente por autores guineenses. São os tópicos mais urgentes e de maior prestígio no incipiente campo intelectual da Guiné. É como se a totalidade da nação fosse apreendida pela descrição das diferentes partes que a compõem, pela forma com que o poder as organiza e pelos conflitos decorrentes destas formas organizativas. Neste sentido a Guiné não representa um caso isolado. As Ciências Sociais em alguns países da América Latina são também marcadas pela urgência, desenvolvendo uma quase-obsessão com a temática da construção nacional (ver Peirano 1981, para uma análise do caso brasileiro). Por outro lado, como vimos acima, organização familiar, gênero, estudos de economia camponesa ligando o local ao global, multilingüismo e crioulística, análise de políticas públicas, educação e teoria social são temas em que os estrangeiros prevalecem sobre os guineenses.

Insisto no fato de que alguns temas privilegiados nos estudos africanos atuais (gênero, os aspectos locais e globais da economia camponesa e a problemática da representação) não têm tido muito apelo para os cientistas sociais guineenses, premidos pela urgência da pesquisa social básica no país e pela necessidade de obter financiamento para desenvolver suas atividades de investigação e para garantir o funcionamento do INEP. À exceção do sociólogo Carlos Lopes, que tornou-se, de certo modo, um habitante dos não-lugares, a grande maioria dos autores guineenses conforma-se ao quadro traçado por Hountondji: tem sua produção presa ao contexto local, sem uma manifesta ambição de alcançar o universal.

Para este grupo de intelectuais, o que parece estar em questão não é a necessidade de se alcançar o universal ou o continental. Antes, o que está em jogo é o papel das Ciências Sociais "na promoção do desenvolvimento social e económico" da Guiné (Cardoso 1996: 59). E que não se entenda isto pela via do pessimismo do filósofo de Benin. O que se põe é a estreita associação entre prática científica e os projetos para a nação que desloca para um plano secundário a procura por universais e a ênfase no fazer científico como um fim em si mesmo.

Vivi no país entre novembro de 1987 e setembro de 1988. Mais tarde, em 1992, tive ainda a oportunidade de fazer uma outra visita de quatro meses a Bissau. Nestas ocasiões, realizei uma pesquisa de campo sobre a sociedade crioula das cidades guineenses.

Durante minha estada na Guiné, viajei por quase todo o país, coletando um amplo espectro de dados sobre a vida nos aglomerados crioulos. Aprendi o Kriol (a língua mais falada pelos guineenses), convivi com gente de todos os estratos sociais, assisti e participei de eventos dos mais variados tipos.

Isto só foi possível e intelectualmente produtivo graças à ajuda recebida do INEP e de seus investigadores locais. Era nos carros do Instituto que eu conseguia as "boleias" de que tanto precisava para me mover de uma localidade a outra num país onde as estradas eram praticamente intransitáveis e numa época em que quase não existiam linhas de transporte regulares. Foi em sua biblioteca, onde passei tardes a fio lendo às janelas por causa da permanente falta de luz, que pude me instruir sobre a história do país. Foi ali também, nas pausas que muitas vezes consumiam boa parte da tarde, que pude dar início a prezadas amizades e enriquecedoras conversas. Mas foi sobretudo graças aos dedicados investigadores do Instituto que pude, de fato, ter acesso pleno à vida social local. Carlos Lopes, Carlos Cardoso, Raul Fernandes, Manuel Nassum, Teté Montenegro, Diamantino Queiroz, Arassy Taveiro, Abdulai Silá e tantos outros iniciaram-me no jumbay — uma prática social que bem resume a imensa sociabilidade crioula — com suas prosas amigáveis, seus conselhos sábios e suas intermediações práticas.

Carlos Lopes, primeiro diretor do Instituto, lamentou com toda altivez num jornal de Lisboa: "Custou a montar, foi difícil vender a ideia, desafiar os preconceitos. Apesar de tudo, tratava-se de um projecto viável só por contar com a boa vontade de gente muito empenhada... Queríamos fazer investigação num país pobre sem meios. Queríamos desafiar o estabelecido e demonstrar que era possível" (1998). Como bem disse o cientista político Michel Cahen em seu depoimento-homenagem, a existência do INEP na Guiné-Bissau é um escândalo: "o normal seria que o INEP não existisse" (1995: 123). Não há nada equivalente a ele em Cabo Verde, em Angola ou Moçambique, países infinitamente mais ricos. É um escândalo que funcione, e funcione bem, uma instituição que não tem mais do que 60 funcionários e que cuida de praticamente toda investigação científica feita no país.

É um fortuito absurdo que tenha publicado cerca de 250 títulos sobre os mais variados aspectos da vida guineense num país totalmente carente de recursos intelectuais e materiais.

É ainda mais incrível que exista com plena autonomia administrativa e independência de pensamento em relação ao poder político numa Guiné com uma longa história de concentração de poder excessiva, quase tirânica. E é, por fim, espantoso que tenha sobrevivido todos estes anos sob a égide de valores que privilegiam mérito e competência numa Guiné linhageira, que tanto enfatiza estruturas patrimonialistas de autoridade e  relações clientelísticas de dominação.

Um dedo a mais de pensamento e o aparente absurdo se desfaz. Há algo na desafiadora sociedade crioula das praças guineenses que clama por entendimento. Foi neste mesmo ambiente que portugueses, caboverdianos e guineenses publicaram durante 28 anos, entre 1946 e 1973, os 110 números do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa — de longe a melhor publicação científica de todas as colônias portuguesas. A quase obsessão de homens como Teixeira da Mota, António Carreira e Fausto Duarte, infectados pelos valores do pensamento sistemático e pela curiosidade científica, assim como a sensibilidade de governantes como Sarmento Rodrigues, sem dúvida, devem ser devidamente levadas em consideração, se se quer compreender o êxito desta publicação. Mas, creio que é a voracidade incorporadora da sociedade crioula o que está na raiz de instituições como o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa que, no período colonial, publicava o Boletim e como o INEP na atualidade. A crioulização que a tudo incorpora é o que, no fundo, desafia e clama, ora aos gritos ora em pranto, por compreensão sociológica, histórica e antropológica.

Sinto-me indignado e amargurado com a violência que se abateu sobre o INEP.

Mas estou certo de que no país em que prevalece a fatalista máxima jitu ka ten (não tem jeito), a instituição que corajosamente produziu um estudo denominado Djito Tem (sic) — que também nomeia a presente homenagem — sobreviverá à violência que agora a ameaça.

Certo também estou de que, com a solidariedade que está arrebanhando em todo o mundo, o INEP continuará sendo um grande exemplo contemporâneo de resistência cultural e de preservação da consciência coletiva na pátria do grande ícone da luta contra a sujeição dos povos que foi Amílcar Cabral.

REFERÊNCIAS

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