GUINÉ-BISSAU: UM AJUSTE DE CONTAS COM O PASSADO

 

 

Militares guineenses

 

Alin Li

 

 

16.05.2005

 

 

O regresso de Nino Vieira e Kumba Yalá à ribalta da política guineense afigura-se como "um ajuste de contas com o passado.", numa controversa decisão política do Supremo Tribunal de Justiça da Guiné-Bissau.

 

A notícia foi escutada com espanto e receio. Espantos, porque se pensava, com tudo o que já vivemos, os guineenses, onde quer que estejam, já deveriam ter aprendido que só a legalidade e mais nada do que isso, poderia salvar a Guiné-Bissau.

 

A decisão do STJ – Supremo Tribunal de Justiça de validar as candidaturas de Kumba Yalá e Nino Vieira às eleições presidenciais de 19 de Junho foi condicionada pelas seguintes circunstâncias-chave:

 

-         Nenhuma das candidaturas merecia ser aprovada em termos estritamente jurídicos (por razões menos importantes no caso de N Vieira, mais importantes em relação a Kumba Yalá); ambas apresentavam vícios substanciais e de forma; os pareceres exteriores ao STJ coincidiam na sua rejeição.

 

-         A decisão teria de atender, na presente conjuntura, a factores predominantemente políticos – em geral definidos e exercidos pela ONU, em cooperação com a CEDEAO e CPLP; o principal desses factores – preservar a estabilidade no país – recomendava a aprovação de ambas as candidaturas.

 

-         A não validação da candidatura de Francisco Fadul é não só um absurdo, como um colossal erro de interpretação da lei. Era, sem dúvida, um temível adversário para Kumba Yalá e muito principalmente para Nino Vieira (o Acórdão do STJ, nesse aspecto, deveria ser mais explícito);

 

Joaquim Chissano, enviado especial do SG da ONU a Bissau para avaliar a situação, denotou ao longo do tempo da sua missão, preferência por uma solução que não excluísse Kumba Yalá e Nino Vieira, principalmente este; o argumento era o de que seria preciso demonstrar neutralidade externa face a uma questão interna que os eleitores guineenses teriam oportunidade de dirimir nas urnas. O Presidente senegalês Abdoulaye Wade também alinhou, por razões adversas, mais económicas do que políticas, nesta estratégia (as posições firmes do Governo guineense na defesa dos seus interesses económicos, principalmente nos domínios da pesca).

 

O Acórdão do STJ, baseia a aprovação de ambas as candidaturas numa tese segundo a qual os actos de renúncia de Nino Vieira e Kumba Yalá ocorreram em situações anormais (por motivos de força maior, constrangedores), não devendo, por isso, ser-lhes liminarmente aplicada a lei, na presunção foi definida tendo em conta outro tipo de situações.

 

Ao fazer tábua rasa à Carta de Transição Política, o próprio STJ condiciona a sua própria existência, (ninguém nasce sem ter pelo menos uma mãe, já que ela é uma emanação dos instrumentos legais onde assentam os sustentáculos das diferentes instituições guineenses) e neste caso, uma interpretação lógica do seu Acórdão, faz do próprio Kumba Yalá o Presidente da República de facto da Guiné-Bissau.

 

Kumba Yalá não se fez esperar e autoproclamou-se Presidente da República, afirmando ainda que vai cumprir até ao fim o seu mandato de cinco anos, interrompido três anos e meio depois de iniciado, utilizando na sua argumentação o facto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ter considerado a sua carta de renúncia, na sequência da sua destituição a 14 Setembro de 2003, na sequência de um golpe de Estado, "não ter resultado de um acto de liberdade e de vontade".

 

Kumba Yalá é claro e peremptório quando afirma e com razão, diga-se em abono da verdade, citamos, "uma vez decidido o caso no tribunal, decidi dirigir-me ao povo da Guiné-Bissau para revogar publicamente a carta de renúncia e, consequentemente, reassumir o cargo de Presidente da República".

 

A argumentação ou a solução política do STJ da Guiné-Bissau encontrada para fazer de Kumba Yalá e Nino Vieira candidatos, já é alvo de fortes condenações por parte de uma esmagadora maioria de juristas guineenses, com particular relevo por parte do Dr. Armando Mango, Bastonário da Ordem dos Advogados Guineenses e pelo Constitucionalista Carlos Vamain, que a consideram de autêntica vergonha nacional, sustentando ainda que mesmo sendo ela considerada, numa interpretação mais extensiva, relativamente ajustável ao caso de Nino Vieira, mas não ao de Kumba Yalá, pelas razões que passamos a citar:

 

-         A renúncia de Nino Vieira ocorreu em circunstâncias da alçada da constituição; esta prevê que os presidentes que renunciem fiquem impedidos de se candidatar nos dois mandatos seguintes, ou seja, ao mandato seguinte à renúncia e ao quinquénio do mandato subsequente, o que só ocorreria na melhor das hipóteses em 2009, sem considerar o período de interrupção ocorrido com o golpe que derrubou Kumbá Yalá;

 

-         O acto da renúncia de Kumba Yalá, testemunhado por personalidades de relevo internacional, nomeadamente o Presidente da Nigéria, General Olesengum Obasanjo, do Presidente do Ghana, na sua qualidade de Presidente em Exercício da CEDEAO e do Abdoulaye Wade do Senegal, é especialmente objecto de uma lei expressa, a Carta de Transição Política, que lhe veda o exercício da actividade política por um período de 5 anos (até 2008).

 

Os factores políticos que condicionaram a decisão do STJ (o respectivo exercício foi propiciado pelo estado de temor dos 7 juízes que o constituem e assim sendo deve ser considerada nula e sem valor o seu Acórdão), radicaram das seguintes avaliações de situação:

 

-         Forte convicção e/ou certeza de que os militares, na sua maioria balantas, reagiriam face a um preterição da candidatura de Kumba Yalá, já que é nítida a consciência tribal que os identifica com Kumba Yalá, assim como também é perceptível neles o sentimento de que só este lhes dá garantias de continuidade e de protecção face a consequências da rebelião interna violenta por meio da qual consolidaram ou se apoderaram do comando das Forças Armadas da Guiné-Bissau.

 

-         A conveniência política de lidar por igual com a realidade dos patrocínios do Senegal e da República da Guiné às candidaturas de Kumba Yalá e Nino Vieira, respectivamente, de modo a mantê-los em concorrência e satisfazer as suas pretensões de subalternização da Guiné-Bissau na região, em manifesto prejuízo para as aspirações dos guineenses, para alcançar um desenvolvimento sustentável e competitivo com os referidos países.

 

-         Idem, relativamente a tendências contemporizadoras com um regresso à política de Nino Vieira, mas censuradoras de Kumba Yalá, existentes em países com estreitas ligações com a Guiné-Bissau, particularmente a França. Os países da CPLP, sem excepção (Moçambique durante o mandato de Chissano, um apoiante do ex-Chefe de Estado guineense. Com Guebuza esta posição tende a mudar) não vêm com bons olhos o regresso de Nino Vieira ao poder.

 

O balanço do consulado de Nino Vieira como Presidente da República da Guiné-Bissau é por demais conhecido. A herança que deixou é a imagem da Guiné-Bissau dos dias actuais. Ele promoveu o obscurantismo, o oportunismo, a corrupção e a ignorância. Foi em nome desses valores que se recusou firmemente a negociar com a ex-Junta Militar de Anssumane Mané e apelou às forças armadas do Senegal e da Guiné-Conakry para combater o seu próprio povo. Se hoje temos o fenómeno “balantismo” é graças, infelizmente a Nino Vieira.

 

Para chegar ao poder, Nino Vieira, serviu-se deles e para os “pagar” promoveu-os de forma descoordenada, para logo de seguida os combater ferozmente, levando à prisão e à morte largas dezenas de “notáveis” balantas, entre eles, Paulo Correia (Vice-Presidente e Ministro da Justiça), Benhanquerén Na Tchanda (Chefe da Casa Civil da Presidência), Embaná Sambú (Chefe da Contra-Inteligência), N´Foré Bitna (Coronel do Exército – na época o mais alto posto militar – já que o de Comandante de Brigada atribuída a Nino era só honorífico), Major Beate Na Beate, Viriato Pam (Procurador-Geral da República), isto sem falar de outros altos postos militares que não eram “yes men” do Nino, nomeadamente Braima Bangurá (Coronel e Ministro), João da Silva, Coronel e Ministro), Pedro Ramos (Coronel e Ministro).

 

O cenário da aprovação da candidatura de Kumba Yalá por critérios políticos ou em condições susceptíveis de serem atribuídas aos mesmos, era objecto de duas visões antagónicas no que toca às suas consequências:

 

-         Kumba Yalá está desgastado; não tem actualmente base de apoio eleitoral que lhe permita ganhar, a não ser dos balantas;

 

-         Os seus partidários não controlam suficientemente a administração para poderem manipular e viciar o processo eleitoral, como o fizeram aquando das últimas eleições legislativas ocorridas no país (onde eram Governo);

 

-         É fraca a qualidade dos seus apoiantes assumidos (agrupados no MKP), onde convergem promiscuidades de interesses duvidosos;

 

-         Uma derrota eleitoral terá a utilidade de pôr termo às suas veleidades políticas.

 

-         Esta decisão judicial que foi favorável à sua candidatura será vista, sem a menor sombra de dúvidas, pelo próprio e pelos seus sequazes, como uma manifestação de fraqueza das instituições perante a pressão e a ameaça;

 

-         Esta decisão do STJ dará lugar a um movimento em espiral, capaz de dar azo a abusos na campanha e a incitar a tentativas de fraudulências no escrutínio.

 

O quadro político criado com a “decisão” do STJ apresenta para já os seguintes elementos com projecção eleitoral:

 

-         O voto étnico de que Kumba Yalá pode vir a beneficiar (+/- 27%), para conseguir passar a 2ª volta está hoje condicionada a factores imprevisíveis. Uma tem a ver com a profunda divisão que o PRS enfrenta, como a seguir expomos.

 

A deserção do seu ex-Presidente e ex-Primeiro Ministro Alamare Nhassé Intchia, com peso e preponderância entre uma larga camada de Balantas no sul do país, hoje um declarado adversário de Kumba Yalá, que aliado ao ex-Primeiro Ministro e Secretário-Geral do PRS, Artur Sanha, considerado o ideólodo do partido, foram os grandes responsáveis pelo golpe de 14 de Setembro de 2003 que ditou o afastamento de Kumbá Yalá.

 

A candidatura de Faustino Imbali que conta com apreciáveis apoios entre os Balantas da zona centro e de algumas faixas do norte.

 

O conhecido espírito de unidade dos balantas tenderá a dispersar os votos destes em torno destes interesses acentuando assim as grandes divisões existentes entre eles.

 

-         A candidatura de Malam Bacai Sanhá, sufragada por uma esmagadora maioria do Comité Central do PAIGC, está a colher, principalmente depois da “decisão política do STJ” apoios de vários e importantes quadrantes políticos.

 

As divisões internas no PAIGC, poderiam fragilizar a sua candidatura, já que a sua disputa com Nino Vieira tem uma base de apoio político e eleitoral que é comum a ambos – com pequenas variações, entre as quais a do apoio maciço dos mandingas ao candidato oficial e dos papéis em relação ao agora independente Bernardo Vieira.

.

-         Contudo, não se pode prever qual dos três poderá vir a passar à volta, embora haja factores favoráveis, tanto a Bacai Sanhá como a Nino Vieira, que podem ser decisivos; de um lado é o PAIGC e o seu actual líder, enquanto Chefe de um Governo que está inegavelmente a trabalhar bem e a conquistar a confiança quer dos nacionais quer da comunidade internacional e do outro, de um ex-Presidente que apesar do seu carisma, foi um chefe militar derrotado e que tem uma herança de sangue e de corrupção como uma maligna herança, que agora foi agravada aos olhos dos guineenses pelos elementos proeminentes que o cercam como lugar-tenentes para a sua campanha e o velho ditado “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem tu és” pode vir a impor as suas regras. O passado recente de Kumbá Yalá como Presidente deixou muito a desejar e deve por isso ser penalizado pelo eleitorado guineense.

 

-         O Governo de Carlos Gomes Júnior está a transmitir uma sustentável confiança ao eleitorado como promotor de uma estabilização do país, enquanto que Kumba Yalá, pelos seus recentes e rocambolescos episódios e Nino Vieira pela sua reconhecida e voraz tendência de vingança que sempre o animaram, podem vir a constituir um pólo muito sério de destabilização para um país sedento de paz e de estabilidade.

 

-         Carlos Gomes Júnior ficou (aparentemente) enfraquecido face a uma ala do partido que contesta a sua liderança e com a qual entrou em choque devido ao apoio prestado pela mesma a Nino Vieira, mas será a sua determinação e o trabalho que o seu Governo conseguir nestes próximos tempos que o salvarão de um julgamento dos seus inimigos;

 

-         Os guineenses já aprenderam a ver que é nas situações mais difíceis que o PAIGC se fortalece e se une ainda mais.

 

A atitude complacente e conivente do Presidente da República do Senegal, Abdoulaye Wade, relativamente à candidatura de Kumba Yalá, é em parte devida a promessas e gestos de predisposição deste no sentido de um favorecimento de interesses económicos e empresariais senegaleses na Guiné-Bissau. De se salientar que Abdoulaye Wade também confia mais em Kumba Yalá, como parceiro comprometido com uma não restauração de antigos apoios e facilidades à guerrilha do Casamansa.

 

A linha ostensivamente anti-portuguesa que Kumba Yalá e os seus apoiantes seguem, tem implícito o fito de transmitir mensagens de boa vontade dirigidas ao Senegal, já que são portugueses, até ao momento, os principais interesses instalados na Guiné-Bissau; novos interesses podem ser instalados no vazio que estes abririam se por hipótese tivessem de ser levantados.

 

Mas nem tudo está perdido ainda e muita tinta ainda vai correr. O PAIGC e o seu líder Carlos Gomes Júnior ainda têm alguns importantes trunfos na manga. É grande o rol de crimes e graves violações cometidas pelo regime de Nino Vieira num passado ainda bem recente.

 

Retomando uma análise feita pelo já guineense de origem togolesa, Fafali Koudawo, que reside na Guiné-Bissau há alguns anos, citamos: "quando o regime de Nino Vieira terminou, na guerra de 1998/99, o PAIGC bateu no fundo. Ninguém pensava que ele voltasse a ser a esperança da Guiné-Bissau."

 

Ainda segundo este investigador e jornalista, citamos: “a presidência de Kumba Ialá, recheada de casos e incapaz de fazer o país recuperar economicamente, depressa reabilitou o partido libertador. Um ano e meio depois de Kumba Ialá ter sido eleito já o PAIGC tinha regenerada a sua imagem perante o eleitorado guineense", para logo adiantar que “o fracasso foi rápido, uma vez que Kumba Ialá exerceu o poder de forma ilógica e arbitrária".


Tanto Nino Vieira como Kumba Ialá, apesar de tudo há que reconhecer que "têm uma dimensão pessoal muito forte", sendo este elemento o que faz mais aproximar estes dois ex-Chefes de Estado, porque no resto, eles são diferentes. "Kumba cultiva uma imagem baseada no populismo e na demagogia; Nino joga muito com o facto de ser um herói da guerra de libertação."

Retomando ainda Fafali Koudawo, num trabalho de investigação e estudo realizado, citamos: “Apenas mais dois, no meio de tantos outros, sendo o povo a parte mais enigmática de todo este processo. Muitos são os que questionam como é possível que a sociedade guineense continue a olhar para homens que já provaram não ser capazes de fazer o país caminhar rumo ao desenvolvimento”.


Fafali Koudawo tem uma teoria que responde à pergunta. Para o professor, na Guiné-Bissau "houve um relativismo da democracia" e acrescenta que "esta deixou de ser um valor ou aspiração para muitos guineenses, que estão muito marcados pela guerra. Os guineenses sabem que no seu país a política é um jogo, com actores que querem apenas satisfazer os seus interesses. Isto faz com que Nino e Kumba sejam percebidos como pessoas normais, mesmo depois de terem cometido tantos erros. São apenas mais dois no meio de tantos outros."

 

Fafali Koudawo discorda, no entanto, da posição desta parte da população, afirmando que os dois ex-presidentes "são um perigo para a democracia, pois concerteza não mudaram em relação ao que foram e fizeram no passado."

 

Esta é a situação que nos foi criada pelo STJ  ao aceitar, apesar da própria Procuradoria Geral da República ter recomendado a “rejeição” das candidaturas de Nino e Kumba, mas que a força da “promiscuidade de alcova” (a Presidente do STJ é amante do actual mandatário de João Bernardo Vieira) colocaram hoje o país numa situação deveras delicada. Contudo, os guineenses não vão baixar os braços e lutarão para sobreviver com dignidade e coragem e como um dia disse o antigo Bispo de Bissau, D. Settimio Ferazetta, que durante o conflito militar de 98/99 demonstrou de forma eloquente a atitude de um homem que nunca perdeu a esperança, mesmo quando poucos a tinham e que não hesitava em "contestar esta guerra", ao mesmo tempo que perguntava: "Não podemos desanimar. Hão-de chegar dias melhores. Guardemos a esperança. O que podemos fazer?"

PROJECTO GUINÉ-BISSAU: CONTRIBUTO - LOGOTIPO

VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!

Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO

www.didinho.org