ESTIMULANDO O DEBATE: ilações de 12 de abril e tolice étnica

 

 

Ricardino Jacinto Dumas Teixeira *

ricardino_teixeira@hotmail.com 

30.06.2012

Como outros golpes de Estado, pode-se perguntar o que há de novo no golpe de 12 de abril de 2012 e quais as implicações do pensamento teórico de Amílcar Cabral na forma como os intelectuais concebem o conflito político na Guiné-Bissau no processo da democratização em curso no país?

Falava com um amigo, guineense, pós-graduando em Ciência Política, que recentemente voltou da Guiné-Bissau, para ter uma ideia, visão ou entendimento sobre a configuração política atual com a consumação e a legitimação do golpe por uma parte da Comunidade Internacional e Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO). Numa das falas dele – talvez o mais decisivo – era de que a questão étnica teria influenciado o golpe de Estado, com apoio moral e político explicito da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), o que não deixa de ser um exagero por sabermos que nem todos os 15 países apoiaram o golpe. Deixemos de lado os interesses políticos por trás de cada entendimento e abordemos o problema de outro ângulo, estimulando o debate. Como se configura a questão étnica atualmente na Guiné-Bissau? Qual é o objetivo final da propagação de um discurso étnico-regional por determinados grupos na Guiné-Bissau? Quem ganha com a propagação do etnicismo e quem perde com a tolice do reforço do particularismo étnico? 

De origem que remonta a sociedade grumete, eu sou e sempre fui um destribalizado, urbanizado, mestiço, influenciado por aquilo que nós achamos que é o nosso, tipicamente africano e guineense, como djambacusindade, morundade, baloberundade, entre outras práticas, mas também por aquilo que nós compartilhamos com os europeus, como a ciência moderna e pós-moderna, a tecnologia e a literatura. O sentimento de particularismo étnico vem desaparecendo, morrendo, mas sempre ressurgindo em outras formas na sociedade guineense há mais de décadas. Por vezes ele sucumbe às tentativas nacionais, como a “guineendade” ou a “identidade nacional”. Talvez porque seja o único conjunto de ideia que condiz com o espírito e a dignidade da sociedade pré-colonial que sustentou a base humana da luta de libertação em África. Talvez por isso, também, a “pequena burguesia”, mestiça, destribalizada, urbana, intelectual, fazedora de utopia, não conseguiu efetivar a “prática articulatória” em torno de um “ponto nodal” de articulação das etnias fora do quadro dicotômico colonizado-colonizador da luta armada. Ou seja, o movimento de libertação foi incapaz de perceber que os conflitos para a satisfação das necessidades concretas (roubo de gado e acesso a melhores terras), pode se transformar em conflitos políticos reforçando o particularismo étnico, seja através de disputas entre grupos para a mobilização de recursos políticos, econômicos e socioculturais escassos, seja ainda através da mediação de suas elites para a conservação do status quo. Já se pode verificar, na atualidade, o limite do pensamento de Amílcar Cabral que fora bastante positivo nas bases do PAIGC com a política de “unidade e luta” com a independência de Cabo Verde e de Guiné-Bissau.

Pelo contexto atual da Guiné-Bissau, facilmente se poderia dizer e provar com dados que o líder do PAIGC de Guiné e de Cabo Verde encontrou dificuldades e/ou não teve outras possibilidades de imaginar os conflitos fora do quadro teórico marxista-leninista, base do seu pensamento. Apesar do partido o PAIGC não se definisse marxista, a estrutura do partido contou com a filiação teórica marxista-leninista de praticamente de toda a máquina cabralista, mostrando ser, desde o início da luta armada, a divisa e o lema do PAIGC: a luta de classe. A tarefa de pensar os dois países era grande e não podia se restringir apenas aos esforços teóricos de Amílcar Cabral. Valendo-se do senso de oportunidade e de responsabilidade política (com apenas 1% de assimilados), só ele cabia essa ação de pensar o PAIGC.

Com relação à segundo questão - quem ganha com a propagação do etnicismo e quem perde com a tolice do reforço do particularismo – maior parte dos intelectuais e da sociedade em geral, especialmente a partir do último acontecimento de 12 de abril de 2012 – se confunde com alicerces da fundação do sistema político-partidário do PAIGC ou do PRS. Ficou estabelecida, na cultura política local, a ideia de particularismo e etnicismo, cultivada por alguns lideres do PRS e reforçada pela grande maioria dos intelectuais e simpatizantes do PAIGC. Todos alimentando, sem perceber, o discurso do particularismo étnico, o que acaba reforçando a estratégia política do líder do PRS, visto cada vez mais como o herdeiro político e ideológico do partido de “maior expressão étnica” na Guiné-Bissau. A dificuldade de lidar com a estratégia eleitoral do líder do PRS devido tolice discursiva de intelectuais, de simpatizantes e de dirigentes políticos do PAIGC pautado no “tribalismo” gerou o imobilismo político do PAIGC, que politicamente não parece ter as condições discursivas de unir os guineenses para articulação de novo “ponto nodal”. Em suma, sem perceber, os intelectuais guineenses acabam por fazer o trabalho do líder do PRS, que, sabendo da impossibilidade de assumir o poder com apoio apenas dos Balantas (que não deve ser confundidos com o PRS e seu líder) empreendeu esforços - nessa fase política que o país atravessa - para uma nova articulação política com alguns líderes “político-religiosos” do PAIGC para tornar o PRS a maior agremiação política do país. Nesse sentido, ao articular parte dos dirigentes do PAIGC como um dos elementos chaves do processo de “transição”, Kumba Yala tratou de articular para o PRS a base de apoio de uma das alas mais estruturada e forte do PAIGC, num ambiente político pré-eleitoral bastante competitivo.

Para concluir, gostaria de lançar um apelo aos colegas investigadores no sentido de articular e debater novas categorias analíticas capazes de dar conta da atual configuração e disputa política na Guiné-Bissau. Não existem dúvidas de que a influência teórica de Amílcar Cabral é reconhecidamente incontornável na formação da geração intelectual pós-independência. Amílcar Cabral exerce influência de tal maneira que suas palavras se transformaram em “guia” para reorganização política do país. A sua capacidade de não ficar pegado a um “passado”, agindo muitas das vezes como um paladino para pensar os conflitos na Guiné-Bissau, nenhum dos intelectuais se arrisca apontar os limites do seu pensamento político. O pensamento de Amílcar Cabral sobre a natureza do conflito étnico na Guiné-Bissau colonial, apesar de demonstrar em alguns momentos sua consistência, nada ajuda para compreender na atualidade o conflito político.    

Como exemplos teóricos sobre a temática, ver TEIXEIRA, Ricardino Dumas. O Conceito de Sociedade Civil: um debate a partir do contexto da Guiné-Bissau. Estudos de Sociologia, Recife, 2009, vol. 15, n. 2, ISSN 1415-000X.    

Como exemplos empíricos sobre o debate, ver TEIXEIRA, Ricardino Dumas. Sociedade civil e Democratização na Guiné-Bissau 1994-2004. Publicado pela Editora Universitária, Recife, 2010, ISBN 0788573158175.

 Ricardino Jacinto Teixeira

* Doutorando em sociologia política UFPE/Brasil

 

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