O ENSINAMENTO QUE ME FOI PASSADO E NO QUAL ACREDITEI, ATRAPALHA  OU NÃO A MINHA ATITUDE EM RELAÇÃO À SOCIEDADE A QUE PERTENÇO?

 

M’bana N’tchigna *

mbatchi@yahoo.com.br

22.08.2013

M´bana N´tchignaExistem verdades coletivas que fazem parte da nossa formação de berço, que nos orientaram até determinado ponto da nossa vida. Para nos libertarmos dessas verdades coletivas é difícil. São verdades que a cultura e a sociedade em que eu vivia (tribo, braasa, por exemplo), têm-me passado como valores inegociáveis. Crenças essas atreladas a minha pessoa e ao meu coletivo tende a se externar quando encontro com outros coletivos que é a soma de toda Guiné como um país.

Mas essas verdades neste momento da história da Guiné Bissau, merecem questionamento à medida que vamos amadurecendo. Enfim, nada no mundo é imutável. Uma vez que, nem tudo o que sei ou que me foi ensinado, enquanto valores socioculturais são necessariamente verdades. Muito menos no meu convívio do dia-a-dia vivo a rigor “valores inegociáveis” que carrego dentro de mim.

O não questionar o que sabemos ou no que acreditamos pode atrapalhar e prejudicar a mim e ao grupo ou país como um todo.

Conheci um homem que se formou na antiga Tchecoslováquia. Por lá ficou aproximadamente uns 14 anos. Quando voltou para a Guiné-Bissau fui visitá-lo. Na nossa conversa, percebi que ainda carregava sobre si coisas que a sua estrutura sociocultural havia-lhe fornecido antes mesmo de ir aos estudos à Tchecoslováquia como verdades inegociáveis. No caso, crenças da etnia braasa.

Esse homem acreditava que algumas pessoas más (pelo poder da feitiçaria); além de poderem adentrar animais, geralmente lobos, cães e gatos, também possuem poder de se transformarem literalmente em animais mencionados acima a fim de tirar almas ou espíritos de gentes que poderão atormentá-las / los até a morte. Essa crença, não é exclusiva dos braasa, mas sim, de vários grupos étnicos na Guiné e em África. Até mesmo em diversos lugares do mundo existem gentes crédulas nesse mito.

Portanto, num grupo, mesmo que alguém como eu, por exemplo, não acredita nesse mito, mas isolado e com medo de ser hostilizado pela maioria acaba por se auto-silenciar. Pois é arriscado bater de frente com o pensamento coletivo.

O engenheiro agrônomo formado na Tchecoslováquia assustou-me. No meu entender o raciocínio e a reflexão em relação ao mito ou verdade do engenheiro, deveriam ter sido questionados em relação à atitude dos jovens contra o idoso. Por ser uma pessoa instruída academicamente pelos estudos científicos mais avançados que carrega sobre si. Afinal, continua acreditando que algumas pessoas se transformam em lobos.

Pois quando o formado na Tchecoslováquia chega ao vilarejo de sua nascença encontra grupos de jovens que acusam um ancião de aproximadamente 75 anos de idade de praticar ato de feitiçaria contra a alma dum jovem que acaba de falecer. Os jovens tomados pela revolta e ódio por causa do falecimento do colega, espancam o ancião de modo brutal. Deixando o idoso com hematomas e feridas pelo corpo. O quadro formado na Tchecoslováquia, além de não intervir para apaziguar a situação, ainda concordou com o ato absurdo e revoltante dos jovens infratores.

Desse modo vejo certo atraso no pensamento desse quadro formado em relação ao mito.

Concorde comigo ou não, saliento que essa forma de pensar ainda silencia as pessoas tais como políticos servidores públicos, judiciários e profissionais a fim que deveriam amparar o país de todos nós perante muitas coisas que se assiste desse gênero.

Esses abusos contra idosos, a prática da circuncisão feminina (fanado), casamentos obrigatórios etc., continuam inquestionáveis na Guiné como deveria pela lei do direito humano. A livre escolha que cada um de nós deveria ter na Guiné-Bissau ainda está trancada no porão do silêncio da injustiça.

A “elite” guineense na sua maioria (uns eu conheço de perto) acredita que cargos políticos que ocupam são fornecidos a eles pelo poder dos mouros. Logo, um mito. Portanto, temem o mal dos supostos feitiços que poderão tirá-los desses cargos. Por isso, não entram nos seus gabinetes de trabalho sem amarrar nas cinturas ou nos braços os seus amuletos de proteção adquiridos pelos adivinhos e encantadores (djambacús ou balobas), “a” ou “b” que lhes prometem segurança e proteção divina. Acreditam nesses “poderes” supersticiosos de que a formação acadêmica e/ ou na sua competência para ocupação duma função no estado.

Há quem não vê atraso nisso. Mas a meu ver é um atraso de pessoas tidas como intelectuais no nosso país. São essas pessoas que se enveredam pelo caminho do nepotismo, trazem seus primos-irmãos, filhos, esposas... para assumirem cargos públicos ao seu alcance. Acreditando no “poder” dos amuletos.

Essas pessoas além de tecnicamente vazias sem conduta e sem expectativa são irresponsáveis e irreverentes em relação aos patrimônios públicos da nossa terra.

Em pleno século XXI não podemos permitir que a sociedade guineense continue a acreditar em mitos para nos governar através do mesmo!

Fez-me lembrar conversa do meu tio na luta com Amílcar Cabral. Meu tio estava entusiasmado a falar ao Cabral como se salvou do ataque dos fuzileiros navais na imediação de Cadique Yalá um dos vilarejos na margem do rio Cumbidjã no Sul da Guiné-Bissau. Após contar longa história para Cabral finalizou afirmando que se não fosse Tilbõnko - (amuleto) que um mouro lhe confeccionou e que amarrou no braço e outro na cintura, teria morrido naquele ataque.

Cabral por sua vez olhou para o meu tio e respondeu mais ou menos assim:

“CAMARADA, OS NOSSOS FILHOS IRÃO NOS CONSIDERAR HERÓIS PELA LUTA QUE ESTAMOS A FAZER PARA EXPULSAR COLONIALISTAS DA NOSSA TERRA, MAS AO MESMO TEMPO IRÃO FICAR PASMADOS DE SABER QUE NÓS ACREDITÁVAMOS EM COISAS ESTRANHAS QUANDO COMBATÍAMOS CONTA O INIMIGO QUE ERA MAIS FORTE EM RELAÇÃO A NÓS. A BALA DO NOSSO INIMIGO NÃO CONHECE OS AMULETOS CHAMADOS DE TILBÕNKOS CARREGADOS POR VOCÊ!”

- Palavras de Amílcar Lopes Cabral pelos lábios do tio de M’bana.

Como se vê; os intelectuais à altura de Cabral, pelo menos no campo de formação acadêmica, parece que eram raros. E com razão, uma vez que o sistema colonial não liberou escola a todos. Agora com muitos intelectuais hoje, depois de 40 anos de independência não podemos continuar a permitir que os nossos intelectuais continuem a ir a Gabu, Bafata, chão dos balantas, Manjacos (tchon di balantas, di mandjacos...) em busca de tilbõnko em prol de garantir seus cargos políticos. Esquecessem que cargos políticos são públicos e dados a eles pelo processo de eleição com prazos determinados.

Até onde o ensinamento que foi passado a mim e acreditei, não influencia e consequentemente pode ou não atrapalhar a minha atitude em relação à governabilidade em minhas mãos como um político?

Reflitamos sobre intelectuais que temos.

M’bana N’tchigna

* Licenciado em Filosofia e bacharel em Teologia

 

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