Guiné-Bissau

A busca

da independência econômica

Editora Brasiliense – 1983

 Ladislau Dowbor

Prof. Dr. Ladislau Dowbor

Ladislau Dowbor, formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suiça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, nas áreas de economia e administração.

 

INTRODUÇÃO

Perguntam se o país é viável. Será? E o que é "um país viável?" Deveremos também perguntar se o seu povo é viável? Se os indivíduos desse povo são viáveis? Um índio é viável? Um americano é mais viável que um índio, ou que um negro? A República Sul-Africana é viável?

Trata-se de realidades e não de eventuais viabilidades. Os minúsculos Luxemburgo, Liechtenstein ou Mônaco são muito menores que a Guiné-Bissau, e existem, prosperam.

O próprio conceito de viabilidade mostra a que ponto a economia como ciência e como sistema produtivo se distanciou de seus objetivos iniciais, que eram responder às necessidades da população.

Ninguém poderá pôr simplesmente de lado o fato de existirem hoje no mundo dezenas de países com menos de um milhão de habitantes, porque a própria formação dos macroblocos econômicos – a América do Norte, a Europa ocidental, a União Soviética – passou pelo retalhamento e balcanização de dezenas de países.

A Guiné-Bissau de hoje é um país de pouco menos de um milhão de habitantes, com 36 mil quilômetros quadrados e uma renda per capita de menos de 200 dólares.

É, em termos práticos, um país constituído por 3600 aldeias tradicionais e uma capital de 110 000 habitantes, formando um povo de várias etnias e línguas, ao sabor do ecorte geográfico colonial dos tempos do tratado de Berlim.

r Poderemos voltar atrás na história, e refazer um tratado de Berlim que não destrua, pelo traçado as fronteiras, as áreas naturais e históricas das nações africanas? Ou que dê a estas nações dimensões economicamente mais interessantes?

A Guiné-Bissau faz parte do que se chama hoje o grupo dos "Menos Avançados", grupo de 31 países que preenchem os tristes critérios das Nações Unidas, caracterizando-se por uma renda per capita da ordem de 150 a 200 dólares. (o Brasil tem 1700, a Polônia, 3500, os Estados Unidos 11 000, a Suécia e a Alemanha, algo como 12 000). Além do per capita, as características comuns são cerca de 80 por cento da população na agricultura, 80 a 90 por cento de analfabetos, um consumo de energia ridículo, o que significa que o essencial é feito com as mãos.

E, característica não incluída nos critérios das Nações Unidas, mas significativa, dispõem todos de minorias com amplos privilégios e condições de vida perfeitamente aproximadas da nata mundial. Este nível de vida origina-se normalmente na intermediação da ajuda externa, dos investimentos externos (mais raros), da venda a preços escandalosos das riquezas minerais do país e do controle muito bem remunerado dos contratos estrangeiros, imposto de corrupção que as multinacionais se acostumaram a pagar e os nacionais a receber.

Será diferente a Guiné-Bissau? É diferente porque tem no poder um grupo de homens que lutou durante 14 anos, de armas na mão, contra o colonialismo português, até derrota-lo. Estes homens sofreram junto com os camponeses as mesmas privações, são homens do povo, são filhos em grande parte dos geniais escritos políticos de Amílcar Cabral, um dos grandes ideólogos da revolução africana. O exército que hoje tem o poder,

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indiscutivelmente, não é um exército tradicional, como não é um partido tradicional o PAIGC, partido africano da independência.

Mas não é diferente o país que este poder herdou. O único esforço de urbanização deu-se na capital, Bissau, onde os portugueses, com a ajuda de cabo-verdianos, se instalaram para manter o sistema colonial. Ali há luz elétrica, há os cinemas, há as piscinas, os clubes, as quadras de tênis, as esplanadas sombreadas dos restaurantes. Há água canalizada, chuveiros que funcionam, hospitais e médicos para o momento difícil ou ágico.

tr No interior não há nada disso. Há a madrugada na roça, a imensa dificuldade da água, o desespero resignado da criança de morre de causa ridícula. Ali não se come chocolate Nestlé, e não há sequer esperança a se vislumbrar.

Com todo o seu ardor revolucionário, os combatentes, enquanto estavam no campo e o inimigo colonialista ocupava a capital, tinham de se identificar com a causa camponesa, porque desta identificação dependia a sua sobrevivência.

Com a independência, no entanto, os indivíduos que representavam o "povo no poder" ocuparam as casas, os hotéis, as escolas, os clubes, as esplanadas. E o que há de comum entre o homem de origem e tradição revolucionários, mas que está instalado num escritório com carpete e ar condicionado, e o camponês que ontem o ajudava?

Ocupando uma estrutura de vida e de trabalho elitista, criada para uma elite colonial, a que ponto o novo poder, com outros homens, africanos e revolucionários, deixaria de se tornar elite?

Tão conscientes estavam deste perigo os novos dirigentes que em 24 de setembro de 1974 tomavam o poder na república de Guiné-Bissau, que a primeira proposta era de se criar uma nova capital no interior, em Madina do Boé, numa das regiões mais pobres e miseráveis do mundo rural guineense. Para manter o vínculo. O compromisso.

Quanto tempo duraria o compromisso? Problemas práticos, reais, se colocavam, roendo no dia-a dia das tarefas imediatistas os compromissos históricos e morais contraídos durante a luta.

Problema prático: os portugueses da administração superior tinham-se ido embora, voltando para o conforto da metrópole. Mas ficavam os funcionários subalterno, em geral os mais submissos, indicados por sua confiabilidade colonial, muitos inocentes do processo mas no seu conjunto formados para uma tarefa de administração de privilégios que mantém o povo à distância, e raramente capazes de entender, ou querendo entender, a profundidade da mudança.

O que fazer? Mandar estes administradores embora e levar a desorganização administrativa da fase de transição ao seu cúmulo? Era preciso conviver. Os novos dirigentes tinham mais prática do fuzil ou da diplomacia do que da organização do imposto – e o Estado precisa de recursos –, do que controle da corrupção, das bases administrativas de democracia real.

Os novos ministros viram-se assim jogados à frente de máquinas administrativas com funções pré-existentes e sem quadros novos para enquadrar a transformações das orientações. O que fazer com um quadro confiável, revolucionário? Dar-lhe a chefia de um departamento, uma direção geral, ou mandá-lo para o exterior estudar, trocando a sua ajuda imediata por uma formação universitária que o tornaria mais produtivos após cinco anos? São questões práticas e reais. Na sua ampla maioria, souberam fazer o sacrifício. Mandaram-se quase dois mil quadros políticos adquirir conhecimentos técnicos nas duas Alemanhas, em Cuba, na França, em Portugal – é preciso engolir os ressentimentos, ser

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político –, na União Soviética, nos Estados Unidos, qualquer lugar onde se oferecem bolsas condições sérias de estudo.

e Hoje, oito anos depois da independência, com numerosos quadros já de volta, começam a se tornar claros outros problemas: qual a relação entre o que um estudante aprendeu em economia numa universidade européia e as dificuldades de um país "menos avançado"? Como aplicar os conhecimentos de resistência de materiais de construção europeus ou americanos num país que não tem pedras nem cimento, mas tem argila e aglomerados de ferro, a famosa laterita?

Como aplicar conhecimentos agronômicos de um clima em outro, de um solo em outro?

A grande realidade é que nenhum país dos chamados desenvolvidos jamais organizou um currículo universitário ou técnico em função de dificuldades específicas do desenvolvimento. A própria economia ensinada para países subdesenvolvidos, a chamada economia do desenvolvimento, constitui de uma escandalosa adaptação da ciência econômica dos paises ricos – países onde se colocam problemas de conjuntura de economias estruturadas e maduras – a países onde o essencial é a formação das infra-estruturas e das estruturas produtivas.

Como evitar que um arquiteto recém-formado num país desenvolvido, socialista ou não, tente aplicar o que aprendeu – como construir belos prédios de apartamentos – quando se trata de resolver no país o problema mais elementar do melhoramento da habitação tradicional? Na realidade, todo o ensino foi feito para lhe mostrar o "atraso" do tradicional e o "moderno" no ocidental.

Por que não ter organizado a formação local? Qualquer das soluções procuradas, quando viramos o caleidoscópio, apresenta uma nova e complexa configuração de vantagens e dificuldades. Viu-se na experiência argelina, que muito avanço nesta opção, quanto tempo é necessário para formar o quadro nacional de ensino com o mínimo de qualificação. Formar um professor de medicina leva quanto tempo? Em 1974, na independência, a Guiné-Bissau tinha cinco médicos, resultado de modernização colonial portuguesa.

Quanto tempo levariam estes médicos a formar novas equipes? E que tipo de ensino ministrariam médicos importados apenas para o ensino? Quem asseguraria a criação de currículos adaptados aos problemas e necessidades locais?

Não há soluções-tipo, não há soluções-milagre, não há soluções que não sejam apenas menos más.

E como organizar um poder efetivamente participado quando as correias de transmissão são os quadros intermediários herdados do colonialismo? Quadros solidamente formados na resistência passiva, na filosofia do "o chefe passa, o funcionário fica", práticos escolados no jogar com a divisão interna dos poderes. No dia-a-dia do enfrentamento, vai-se desfazendo o entusiasmo, o objetivo histórico desaparece em algum lugar atrás dos funcionários curvados sobre as suas mesas.

Mas não há, é claro, somente o Estado e o seu aparelho. Há igualmente o aparelho produtivo herdado. Trata-se, mais uma vez, de um aparelho adequado para a elite colonial, e não para o poder popular. Fábrica de cerveja para quem tem geladeira, para beber na esplanada. Estaleiros navais, para manter os barcos de guerra coloniais. Fábrica de óleo de amendoim, para exportação, contribuindo para orientar o agricultor no sentido da monocultura exportadora, suicídio conhecido das atividades agro-alimentares. Várias pequenas unidades de produção de cachaça, mais uma exigência da topa e dos funcionários

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urbanos (os camponeses bebem o vinho de palma que eles mesmos fazem). Aqui e ali uma pequena unidade de produção de cerâmica, muito pequeno comércio de bens e de serviços pessoais, todos da cidade, vinculados à capacidade de compra monetária das elites. As serrarias e outras infra-estruturas de exploração de madeira estão mal localizadas para a utilização local do produto.

O que fazer com o aparelho produtivo herdado? Em Angola, por exemplo, a primeira meta econômica foi recuperar a capacidade de produção de antes da guerra. Mas com que efeitos? Produzir mais bens exportáveis e mais cerveja para a cidade?

A Guiné-Bissau tomou uma séria de medidas contraditórias, hesitando numa não-política que refletia uma situação contraditória. Pressões vinham de toda parte: era preciso mostrar que o povo no poder sabe produzir, recuperar, pôr para funcionar. Mas para que, se o produto não é senão parcialmente para o povo?

Para já, colocava-se o problema do caráter jurídico das empresas do colonizador. Foram nacionalizadas, salvo as pequenas, que foram deixadas aos seus donos. Pelo fato de ser nacionalizada uma empresa deixa de produzir bens para elites? Uma fábrica, constataram-no igualmente os novos administradores, não existe apenas dentro da fábrica. Sobrevive e respira dentro de um complexo tecido de serviços econômicos que tanto podem reanimá-la, como sufocá-la. Viu-o muito bem o regime de Allende, que nacionalizou as empresas e viu-se com máquinas na mão, enquanto grande parte dos serviços de apoio dependiam de decisões multinacionais.

Como pôr para funcionar as unidades de produção de óleo, sem ter acesso aos circuitos internacionais de comercialização? Sem reativar os serviços técnicos de anutenção e de reposição de peças. Sem dispor de créditos me moeda local e em divisas.

m A opção política foi clara, pelo mercado interno, pelas necessidades locais. Mas as peças, a manutenção, a embalagem – a embalagem de produtos alimentares coloca problemas técnicos ainda não resolvidos, o colonialista só se preocupara com isso na metrópole, onde redistribuía o produto – custam divisas enquanto não podem ser produzidas localmente. E a produção local exige investimentos, formação, pesquisa, mais divisas.

Bem o sabe o Brasil, que, em outro nível, produz para elites e depende de tecnologia importada.

Recorre-se então à ajuda externa, ao conjunto de organismos bilaterais, multilaterais e não-governamentais que vivem de debruçar-se sobre a miséria dos povos.

As contradições deste apoio apareceram rapidamente. Inicialmente, buscou-se a ajuda de quem já tinha ajudado a luta: os países socialistas, a Suécia, alguns outros. A ONU, que tinha acolhido as denúncias contra o colonialismo português. Em suma, partia-se dos mais "confiáveis". À medida que iam apertando as necessidades de recursos, no entanto, foi-se buscar apoio, inclusive do inimigo anterior: Portugal, os Estados Unidos, e a Comunidade Européia, relativamente mais isenta.

Esta multiplicidade de fontes de ajuda dava uma ilusão: a de não depender de nenhuma delas em excesso. Assim quando a Alemanha Federal exigiu, para continuar a ajuda alimentar, a assinatura de uma cláusula sobre Berlim, o país pode tranqüilamente agradecer a ajuda e voltar-se para outro, evitando o comprometimento político solicitado.

A opção foi muito elogiada. Os aspectos negativos vieram a ser conhecidos com o tempo: o equipamento moderno do país tornou-se um mosaico indescritível de peças russas, inglesas, suecas, suíças, francesas, bem como de multinacionais instaladas no Brasil, na Coréia etc. Ora, hoje uma unidade moderna não é um produto completo: exige permanente

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assistência técnica, apoio logístico, atualização à medida que se transforma e tecnologia de produção. Só para assegurar o funcionamento dos automóveis de dezenas de marcas importadas pelos mais variados projetos, Peugeot, Citroën, Volvo, Lada, Land-Rover, Suzuki, Toyota etc., os custos tornam-se enormes, com o resultado global de que o funcionamento do equipamento moderno pode ser estimado em algo como 25% do total adquirido. Em outros termos, 75% do equipamento adquirido está parado, imobilizando esforços, desperdiçando divisas, desmoralizando quem sentiu a facilidade temporária de dispor de uma máquina e que deve voltar ao manual. Não é mais tranqüilo dizer ao chefe que a máquina que quebrou e esperar a peça que virá um dia? A Guiné-Bissau deve ter hoje um elenco completo de modelos de máquinas fotocopiadoras produzidas no mundo. Quantas funcionam, quantas têm a sua tinta especifica e o seu papel específico no mercado, sem falar das peças e dos técnicos especializados?

Falou-se, é claro, em estandardização: por que não decidir, como em Cabo Verde, admitir apenas algumas marcas para cada tipo de equipamento? A medida é evidente e racional e teve bastante apoio inicial. No entanto, no momento do financiamento, constata-se que, com a honrosa exceção da Suécia, todos os países que fornecem ajuda ou financiamentos exigem que os recursos sejam utilizados para movimentar as suas próprias fabricas, para dar empregos aos seus próprios trabalhadores. Em outros termos, créditos ou ajuda franceses devem ser utilizados devem ser utilizados para comprar produtos franceses, e assim por diante.

Bem o sabemos nós, que temos uma grande indústria de material ferroviário que esta com uma capacidade ociosa igual à média da Guiné-Bissau, da ordem de 75%, enquanto importamos o equipamento para a ferrovia do aço, porque se não fossem as encomendas não obteríamos o empréstimo. E quem não acompanhou as compras de navios no exterior, quando temos a tão propalada indústria de estaleiros navais nacionais?

Os nós do subdesenvolvimento estão bem amarrados. E o dinheiro, salvo algumas exceções, é vinculado. Se não, vem com taxas de juros elevadíssimas. Paga-se o preço, de uma maneira ou de outra. As entidades financeiras aplicam, neste domínio, a teoria das isovantagens: muda a modalidade, a vantagem se mantém. Juro mais baixo implica menos opção sobre a utilização do dinheiro e mais encomendas para o país que empresta. Juro mais caro implica mais liberdade, mais o retorno vem pelo serviço da dívida, e amanhã, frente à incapacidade de pagar, pelos novos contratos imposto.

É claro, o governo aprende. Os militantes do partido aprendem, pressionam para uma mudança de rumos. No entanto, após alguns anos de enxurrada de financiamentos externos, todos os organismos financiadores têm representação dentro do país, com profundos vínculos pessoais e políticos. Muitos quadros locais trabalham em projetos que dependem de financiamentos externos. A multinacionalização interioriza-se, ganha defensores locais, torna-se cada vez mais difícil mexer nas estruturas.

Será má fé, falta de determinação dos dirigentes? É pouco provável. Há, antes de tudo, uma prodigiosa máquina internacional cujas infra-estruturas são estreitamente monopolizadas e controladas pelos países do Norte, e que fazem com que a margem de manobra dos países pobres seja limitadíssima. Não é à toa que a situação econômica dos 31 países menos avançados vem se deteriorando sistematicamente, apesar da amplitude e complexidade das estruturas de apoio internacionais, bilaterais e não-governamentais. O pesado aparelho estatal, o aparelho produtivo, o sistema de financiamento internacional, estruturas das quais o novo poder tem que depender, contribuem para desviar o esforço do quadro militante, do quadro combatente, que tenta utilizar as ferramentas tortas que herdou

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em favor do povo. Estas ferramentas, no entanto, só se manejam para cima, para as elites, or mais que se tente voltá-las para baixo.

p Um bom exemplo deste torno implacável que deforma e desvia dos seus objetivos qualquer boa intenção local é o dos projetos de desenvolvimento. Com toda determinação, o governo fixa como sua prioridade o mundo rural. Hoje, após anos de esforços, menos de 10% dos investimentos vão para o mundo rural, apesar de a população rural constituir 85% da população total. Mais de 50 por cento dos investimentos concentram-se na cidade de Bissau.

Os projetos são elaboradas por agências situadas no exterior, às vezes na capital do país, em Bissau. Para um projeto de um milhão de dólares destinado ao desenvolvimento rural, por exemplo, cerca de 15% já são consumidos por taxas administrativas da agência de execução, seja ela a FAO ou outra qualquer. A agência de execução recrutará peritos para executar o projeto, já que os técnicos são raros no país. Estes técnicos custam atualmente algo da ordem de 7.000 dólares por mês. Antes de chegarem os técnicos, é claro, há missões sucessivas: missões de identificação de projetos, missões de estudo de factibilidade, de estudos de execução técnica. Durante o projeto há missões de acompanhamento de execução. É normal a metade dos recursos fornecidos ser consumida neste processo, voltando assim o dinheiro oferecido para os países ricos, sob a forma dos salários elevados dos técnicos.

Depois, vem o equipamento: os carros para o pessoal do projeto, o equipamento de campo, fotocopiadoras, máquinas de escrever, freqüentemente instalações de conforto mínimo – mínimo do ponto de vista Norte – que podem perfeitamente comer mais um quarto do financiamento.

Caso tudo se passe bem, teremos cerca de 25% dos fundos fornecidos que chegarão ao destinatário oficial, o camponês, sob forma de assistência técnica, de apoio moral, ou às vezes de insumos concretos.

Os efeitos negativos, evidentemente não são só materiais. Ao nível do quadro local, dispor de um carro constitui uma imensa ajuda para o trabalho cotidiano. Mas que distância social cria entre o administrador e o administrado? Além do mais, o projeto cria uma série de empregos temporários, limitados ao tempo de vigência do projeto, dois ou três anos. As pessoas que freqüentemente abandonam outras atividades produtivas para ganhar o salário mais elevado – porque temporário – do projeto, encontram-se, após dois ou três anos, no desemprego. Origina-se assim uma grande pressão sobre o orçamento público, pois os projetos têm força para transformar estes trabalhadores temporários em funcionários dos Ministérios, levando a uma hipertrofia dos órgãos estatais.

Mais grave ainda, no entanto, é este tipo de atomização do desenvolvimento que o projeto provoca. Projetos se acotovelam, projetos alemães, projetos do Banco Mundial, projetos de multinacionais, cada um buscando a sua lógica. Onde fica, entre estas lógicas, a lógica de desenvolvimento do país, das necessidades reais da população, das diretrizes políticas dos dirigentes?

Como pode o próprio receptor de alguns desses projetos, a população rural, ter a sua palavra a dizer quando estes se rompem em microssetores, projeto de melhoramento de cana, projeto de irrigação de arroz, projeto de sementes de algodão, sem que haja momento ou instância em que a população possa sentar e decidir o que é necessário à comunidade, e em conseqüência o que os projetos deverão fazer?

A região no existe, a comunidade não existe, passa a existir o projeto. Como manter a participação popular se a estrutura de apoio à população, o projeto de investimento e de

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modernização, aparece-lhe como coisa estranha, coisa de cima, do governo ou de uma entidade estrangeira?

Outro grande conjunto de dificuldades e de fontes de deformação de um processo lançado inicialmente como processo popular é o problema da tecnologia. A modernização busca-se, em princípio, imitando os países modernizados. Tratores para a agricultura, indústrias para a cidade, computadores para os escritórios. A própria idéia de uma modernização "a meias" nem sempre é bem recebida: se nos equipamos com métodos ultrapassados já atualmente nos países ricos, o que será desta tecnologia daqui a 10 ou 15 anos?

À indecisão local opõe-se a firme decisão dos vendedores internacionais de tecnologia, que não tem dúvida nenhuma de que qualquer país, qualquer região, qualquer unidade necessita dos produtos que são fabricados nos países desenvolvidos. Frente à hesitação, recorrem maciçamente à corrupção, apresentada tranqüilamente como uma comissão sobre as vendas.

Em muitos setores, por exemplo, é simplesmente necessário usar tecnologia de ponta. A pesca de exportação tem hoje uma tecnologia só, ou variações a partir de um certo nível de sofisticação. Ninguém vai equipar o país em redes telefônicas que não utilizem satélites, porque sai simplesmente caro demais, particularmente para uma população dispersa como é a população rural. Necessitam ser modernos e adaptados à evolução tecnológica internacional os serviços de manutenção, os portos, os estaleiros navais, os aeroportos e assim por diante.

Mesmo quando a tecnologia adaptada existe, no entanto, é indispensável que existam igualmente as estruturas de sua aplicação. A construção de um prédio moderno de 15 andares para um hotel de luxo, por exemplo, exige apenas um contato com o adido comercial de qualquer país ocidental e a assinatura do ministro para empréstimo: em um ano, o hotel está de pé, com camas, pratos e panelas. Fazer um projeto de autoconstrução, no entanto, exige imensas tramitações burocráticas, na medida em que nenhuma das empresas que se especializam em tecnologia apropriada tem as estruturas de intervenção internacional de que as grandes vendedoras de tecnologia moderna dispõem.

Em termos práticos, isso significa que freqüentemente um ministro, que necessita construir uma rede de postos de saúde, prefere assinar o contrato com uma grande firma internacional de engineering que importa tudo, desde a janela até o equipamento, do que buscar quadros dispostos a enfrentar as longas tarefas organizativas de autoconstrução, onde cada tarefa – a compra do tijolo, a autorização de construção, a compra de equipamento médico – constitui tarefa independente e imobilizadora do fator mais raro, a capacidade administrativa.

Por facilidade, por inércia, por pressões, por cansaço, o poder popular acaba gradualmente sendo empurrado para direções que nunca foram, subjetivamente, as suas. Discretamente, sem falar em política, apenas as palavras "eficiência" ou "crescimento" na boca, as multinacionais montam os seus pequenos microparaísos destinados a 5 ou 10% da população, quando muito, população que lhe interessa porque pode assumir, ao explorar o resto do país, um modo de vida "ocidental".

Frente ao mecanismo, um número demasiado grande de pessoas ergue os ombros impotentes e deixa andar.

Será esse o caso de Guiné-Bissau? Não me parece que tenha chegado a este ponto. Parece-me, isto sim, que a Guiné-Bissau está se debatendo furiosamente com o conjunto das forças adversas, das quais algumas foram aqui mencionadas.

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Quem vencerá este processo? Ninguém sabe. Séculos de opções absurdas do capitalismo, de opressão econômica e social, de guerras e de colonialismo, de crises e de desemprego autorizam-nos a ter esperanças mesmo quando um poder popular erra, repete erros e busca o seu caminho de maneira confusa.

Não ter a racionalidade do capitalismo, racionalidade que criou a própria miséria de onde estes países hoje querem se arrancar, já é uma grande vantagem.

O texto que segue é um documento não oficial, que serviu para debate sobre as orientações gerais do desenvolvimento, sobre como esta conoinha que é a Guiné-Bissau poderia sobreviver nas águas do capitalismo internacional, buscando o seu próprio caminho. Quem de nós não sabe que esta canoa pode ser engolida pelo oceano a qualquer momento? Mas quem não tem esperança de que a sua travessia tenha sucesso, e quem não se sente comovido pela tentativa?

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ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO

NA GUINÉ-BISSAU

Mais do que apresentar inovações, o presente texto visa apresentar de maneira simples e compreensível a concepção geral de desenvolvimento que amadureceu na Guiné-Bissau e suas possibilidades de materialização no decorrer do I Plano Nacional de Desenvolvimento 1983-1986.

O plano tem força de lei, e obriga os diversos organismos do estado a executa-lo. No entanto, o seu sucesso depende fundamentalmente da compreensão, por parte de todos os setores da sociedade, dos objetivos em torno dos quais se quer mobilizar as forças da nação. Tal como a luta, o Plano ganha força quando deixa de ser o documento de quem o promove para se tornar a arma do povo para o seu próprio desenvolvimento.

Isso implica que, para além da sua coerência técnica que o torna passível da execução, o Plano tem antes de tudo de obedecer aos objetivos que refletem os anseios mais profundos do povo e constituir o instrumento de unificação das forças sociais em torno dos objetivos assim fixados.

  1. 1. Evolução recente da economia

Já oito anos nos separam da independência. O Movimento Reajustador de 14 de Novembro surge, entre outros fatores, da compreensão cada vez mais generalizada dos desequilíbrios que se iam aprofundando na economia. Compreender as correções que se impões implica, antes de tudo, compreendermos estes desequilíbrios e o processo do seu aprofundamento. Para redefinir a linha, cabe-nos antes de tudo compreender os erros.

A política de investimentos

O investimento constitui, de certa forma, o tijolo com o qual se constrói uma economia. Trata-se de todos os recursos, de origem externa ou baseados em poupança interna, que são utilizados não para satisfazer as necessidades imediatas, mas para instalar máquinas, construir estradas, enfim, desenvolver a capacidade de produção.

Da política de investimento depende se haverá mais estradas ou mais caminhões, mais arroz para alimentação ou mais amendoim, mais casas em Bissau ou mais tratores na agricultura. Trata-se da escolha mais importante do desenvolvimento no país: onde encontrar os recursos?

A política de investimentos adotada caracterizou-se antes de tudo pela concentração dos recursos na capital. Assim, em casa 100 pesos1 de investimentos que se fazia no país, mais de 50 iam para Bissau, apesar de estarem aí apenas 14 por cento da população do país.

O quadro da distribuição regional do investimento em 1979 é o seguinte:

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Região

% do investimento

% da população

Bissau

54,8

14,1

Biombo

2,2

7,4

Cacheu

5,4

17,2

Oio

10,2

17,8

Bafata

9,0

15,1

Gafu

8,3

13,6

Quinara

1,7

4,6

Tombali

4,2

7,1

Bolama

4,2

3,3

  1. (1) Um peso vale aproximadamente 1/40 de dólar.

A canalização da maior parte dos recursos para Bissau é compreensível, pois ali se situam já os melhores quadros, há mais facilidades, há mais capacidade de pressão. Mas não se justifica, pois um dos desequilíbrios fundamentais herdados do colonialismo e que devem ser corrigidos é justamente o desequilíbrio entre a capital e o interior.

Assim, em vez de corrigir o desequilíbrio, acaba-se por agrava-lo, ficando as populações do interior mais desprovidas que nunca.

Esta deformação na distribuição regional dos recursos de investimento refletiu-se diretamente na principal base produtiva do país, a agricultura. Assim, o setor que ocupa 90% dos trabalhadores recebeu a seguinte proporção de investimento:

1978 - 6,1%

1979 - 11,0%

1980 - 15,0%

A proporção, mesmo sendo crescente, é baixíssima, e amplamente insuficiente.

É preciso notar que tal orientação encontrou quem a defendesse: o nosso país é agrícola, dizia-se, é preciso concentrar as forças no desenvolvimento industrial, que mais atraso conhece. Mas que adianta instalar uma fabrica se não há o produto para transformar, nem divisas para as matérias-primas e assistência técnica? Para se ter indústrias, é preciso desenvolver as sua base, e a base no país é a agricultura.

Mas os investimentos, quando concentrados em Bissau, ainda assim não refletiam, muitas vezes, as prioridades do desenvolvimento. É o caso da EGA, que, ao montar automóveis Citroën com peças importadas da França, criava uma fonte permanente de evasão de divisas. E como iria a Guiné-Bissau, que dá os primeiros passos no seu desenvolvimento, começar logo pelo luxo, pelo automóvel?

Outro exemplo é o da auto-estrada de Bissau-Bissalanca. A antiga estrada permitiria ainda sustentar o tráfego por muitos anos, e criava-se, com elevado dispêndio de divisas, uma estrada de luxo, enquanto no interior agricultores deixavam de escoar a sua produção por falta de transporte, dificultando inclusive a alimentação em Bissau.

Outros projetos eram mais adequados, mas sobredimensionados. Era o caso, evidentemente, do complexo agroindustrial de Cumeré. Hoje ali esta o monumento, a lembrar-nos que o desenvolvimento se faz passo a passo, cada passo preparando o passo seguinte. A concepção é certa, deve-se cada vez mais transformar localmente os produtos. Mas não se pode avançar para grandes unidades de transformação acelerada quando a

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produtividade agrícola ainda não progrediu. Comprou-se o equipamento mais moderno quando o agricultor, que alimenta este equipamento com o seu produto, ainda trabalha com arado rudimentar e quando os técnicos ainda não ganharam experiência de utilização de equipamento moderno em unidades menores. A indústria constata-se hoje, tanto pode dinamizar o desenvolvimento, como atrasá-lo. Os lucros podem ser grandes, e grandes também os prejuízos.

Outro problema-chave das opções de investimento está ligado à escolha das soluções tecnológicas. O problema hoje não é a aquisição de nova tecnologia, que existe no mundo, e sim da sua aplicação produtiva, de sua utilização real. O trator constitui um símbolo de modernização das atividades rurais. No entanto, que chances há de generalizar o uso dos tratores no campo, hoje? Nem o camponês está preparado para dominar e assimilar esta nova tecnologia – salto demasiado grande entre o arado que ora usa e a potência do trator – nem o país dispões das infra-estruturas – assistência técnica, peças, combustíveis etc. – que essa tecnologia exige. Gastou-se muito em equipamento sofisticado, que hoje se encontra em grande parte parado à espera de conserto ou de peças, em vez de generalizar a tecnologia simples que, sem grandes saltos, permite o avanço mais lento mas sem retrocessos do conjunto da capacidade produtiva.

O salto do setor moderno

O resultado da concentração dos investimentos em Bissau e em empreendimentos sobredimensionados, de tecnologia avançada, e freqüentemente desvinculados das necessidades básicas da população, foi a constituição de um setor moderno muito mais amplo do que a capacidade de geri-lo adequadamente, ou mesmo de financiar o seu funcionamento. Dispõe hoje o país de uma grande capacidade de transformação de óleos vegetais, mas não há técnicos para geri-la nem matéria-prima para alimenta-la adequadamente. De uma fábrica de montagem de automóveis, mas não há divisas para importar os seus componentes. De um liceu sofisticado, quando não há suficientes livros, giz, carteiras. Foi adquirido material de transformação de petróleo em eletricidade no valor de dezenas de milhões de dólares, mas não foram instaladas motobombas de irrigação, e não existe a possibilidade de pagar o funcionamento da infra-estrutura enérgica desse vulto, que só em petróleo exigiria cerca de 12 milhões de dólares por ano. Adquiriu-se uma fabrica de plásticos e uma unidade de produções de colchões, mas não há divisas para financiar a matéria-prima. Adquiriram-se vários barcos de pesca, mas não se criaram condições de pôr para funcionar unidades de manutenção como os estaleiros navais. Foram comprados muitíssimos carros e caminhões, dos quais 80% estão hoje parados, porque não existe suficiente estrutura de manutenção e de controle de sua utilização.

Tiram-se desses erros, muitos deles inevitáveis, lições que devem orientar o futuro. Cumeré é útil ao país, mas daqui a dez anos, quando existirem os engenheiros, administradores e uma agricultura um pouco mais forte. Não é um investimento inútil e sim prematuro: os 25 milhões de dólares que custa, investidos em aumento de produção agrícola hoje, tornariam Cumeré e outros projetos viáveis amanhã.

Frente aos imensos custos do equipamento moderno, tanto no ato da compra como para o seu funcionamento, torna-se fundamental fazer o investimento certo no momento certo e encadear os diversos investimentos no quadro de um plano rigorosamente estabelecido.

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Hoje o setor moderno da economia funciona a cerca de 25% da sua capacidade, mas os juros são pagos sobre os 100% do seu custo. Foi dado um salto. Este salto, vemo-lo hoje, foi maior do que as forças.

O peso de Bissau

À concentração dos investimentos e, na realidade, da maior parte dos esforços de desenvolvimentos, na cidade de Bissau reforçou um desequilíbrio característico de regiões subdesenvolvidas, o desequilíbrio cidade-campo.

Em toda a África o colonialismo desenvolveu as capitais portuárias, desleixando o interior do país. Isso porque lhe interessava escoar a produção para o mar, para o exterior. Em vez de capitais centrais, dinamizadoras de desenvolvimento, fizeram-se capitais portuárias, intermediárias entre os produtores de matérias-primas e o comprador estrangeiro.

A miséria e a exploração do campo, a ausência de infra-estruturas criaram o fenômeno de fuga para as cidades, muitas vezes dos melhores quadros camponeses, que afluem à cidade para resolver os seu problemas individuais, desesperados de poder influir sobre o desenvolvimento das suas próprias regiões rurais.

A orientação recente da política de investimentos, ao concentrar mais meios em Bissau em vez de levar o desenvolvimento ao interior, reforçou esta tendência. Bissau tem hoje 110 000 habitantes, e estima-se que em cada ano que passa tenha mais cinco mil, quando a totalidade do emprego industrial urbano é cerca de 3 000.

O resultado é a gradual multiplicação de jovens desorientados, desvinculados do mundo rural onde eram produtivos, e alimentados pela esperança de um emprego na área de serviços públicos ou de uma bolsa no exterior.

Assim, enquanto se criavam sonhos de uma urbanização moderna e luxuosa da cidade, multiplicavam-se os bairros de maneira desordenada, sem suportes elementares como água limpa, esgotos, iluminação, ruas, vida comunitária.

Adquiriram-se vários barcos de pesca, mas não se criaram condiçõespara funcionar unidades de manutenção como os estale iros navais

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Em vez de se tornar no instrumento mobilizador do conjunto do país, Bissau continuou em grande parte com seu papel de escoador do produto do esforço camponês, buscando ainda na ajuda estrangeira um nível de vida urbano que as suas capacidades produtivas próprias não permitiriam.

Nível artificial, como é artificial qualquer nível de vida que não se apóia solidamente no aumento da capacidade produtiva dos trabalhadores. E a base produtiva do país não são, evidentemente, e neste período do desenvolvimento, os poucos mais de 3000 operários cujas empresas mal funcionam, nem os comerciantes que vendem o produto dos outros, nem os funcionários públicos que constituem serviços de apoio: são os trabalhadores rurais, que asseguram as poucas divisas que entram, que asseguram a reprodução, com meios limitadíssimos, do arroz, do milho, do amendoim.

O setor moderno se desenvolveu, mas não desenvolveu a sua base produtiva. O resultado é que hoje encontra-se num impasse, pois os estômagos não se enchem com papéis, e as fábricas não se alimentam com ordens.

A base produtiva rural

A produção agrícola foi particularmente prejudicada nos últimos anos, pela falta de chuvas, ocasionando algumas safras praticamente desastrosas.

A própria vulnerabilidade e impotência frente a variações climáticas, no entanto, serviu para mostrar a fraqueza ou insuficiência da polícia agrícola.

Assim, constatou-se que duas medidas básicas na prevenção da crise alimentar – a criação de uma rede de estocagem que permite fazer reservas durante os melhores anos agrícolas, e sistemas de irrigação – pouco foram desenvolvidas.

As grandes redes de infra-estruturas nacionais, por outro lado, se concentraram em ligar as capitais regionais e não estas com os lugares de produção. Assim foram melhorados os principais eixos rodoviários do país, foi modernizado o eixo básico de telecomunicações, foram reforçadas as infra-estruturas de produção de energia, em Bafata, Gabu e outros centros, mas não chegaram nem a estrada, nem o telefone e nem a energia ao nível da vila, do produtor agrícola, onde o aumento da produção pode viabilizar efetivamente os investimentos.

É preciso notar igualmente que, neste período em que se gastaram mais de 300 milhões de dólares de financiamentos externos em carros, equipamentos elétricos sofisticados e outros, pouquíssimo se fez para fornecer ao agricultor, e generalizar, o uso de meios de produção simples e de rentabilidade imediata, como a enxada, a foice, o carrinho de mão, o pequeno equipamento de transformação e de tração animal: a motobomba, o adubo, a semente melhorada, os pesticidas e outros produtos de que o agricultor deve dispor para elevar gradualmente a sua produtividade.

É verdade que os meios de produção agrícola deve ser fornecidos de maneira organizada, com apoio técnico: mas é também seguro que o agricultor, de posse desses meios simples, saberá elevar melhor a produção nesta fase do que o trabalhador urbano o poderá fazer com o equipamento caro e sofisticado.

A própria indústria local se preocupou bastante em organizar a transformação e exportação do produto do agricultor, mas não se preocupou em produzir os bens para que o agricultor pudesse aumentar a sua produção.

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Enfim, a produção agrícola foi negativamente afetada por um fator-chave, a falta de abastecimento em bens de primeira necessidade.

A agricultura, como se sabe, não sofre apenas de fraca produtividade e fraca extensão das áreas cultivadas: sofre também da falta de estimulo para produzir além das suas necessidades.

São bem conhecidos os produtos que o agricultor procura: óleo, açúcar, têxteis, petróleo, pilhas, fósforos, bicicletas, ferramentas agrícolas e outros produtos de primeira necessidade. Que estímulo terá ele para aumentar a sua produção ou comercializa-la, se não puder receber em troca os produtos de que precisa?

A rede comercial do país foi concebida para escoar o amendoim, produto de exportação, no quadro dos interesses coloniais, e não para organizar o abastecimento equilibrado das populações. Pouco ou nada foi feito para modificar essa estrutura da rede comercial.

Essa deformação foi agravada pela política de importações, que se concentrou no abastecimento de minorias urbanas, importando freqüentemente bens de consumo privilegiado, enquanto o produtor não encontrava os bens que correspondem às suas necessidades.

Enfim, a política de distribuição dos produtos tendia a privilegiar os armazéns urbanos, facilitando o acesso às importações da população urbana, mas desestimulando o produtor rural que gera as divisas ou poupa importações.

O resultado a nível do agricultor foi duplo. Por um lado, na falta de contrapartida para o seu produto, na falta das infra-estruturas, apoio técnico e meios de produção necessários, manteve uma produção fraca ou estagnada.

Por outro lado, reforçou-se uma tendência particularmente grave de escoar o produto diretamente ao exterior, nos países vizinhos, para poder comprar com as divisas obtidas os bens necessários.

A acumulação destes fatores levou a uma situação grave tanto a nível do mundo rural como a nível da cidade. Com efeito, Bissau passou a enfrentar dificuldades alimentares crescentes, pois o mundo rural não tinha nem possibilidade nem interesse de abastecê-la.

Visando melhorar o abastecimento urbano, o governo passou a utilizar parcelas crescente da ajuda externa para comprara bens de consumo, ficando assim mais prejudicados o abastecimento e, conseqüentemente, a produção rural.

Criou-se assim um círculo vicioso de desintegração entre a cidade e o campo. Os vastos recursos externos fornecidos ao país durante a primeira fase pós-independência não serviram para desenvolver a base produtiva, senão marginalmente. Serviram para abastecer a cidade e para criar um setor moderno urbano cuja existência só se poderia justificar depois de um grande aumento da produção rural.

Frente ao agravamento da crise internacional e das dificuldades freqüentes para obter recursos externos, e na ausência de um aumento regular da produção interna, o país passou a enfrentar uma situação financeira cada vez mais difícil, cujos plenos efeitos se fazem sentir hoje.

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A situação financeira

Os recursos do país, tanto internos como externos, foram concentrados na cidade, sem levar a um aumento significativo da produção: nem no campo, que não teve acesso a recursos suficientes, nem na cidade, onde a aplicação destes recursos não foi produtiva.

O Estado pode, naturalmente, emitir moeda, mas provoca a sua desvalorização. A única forma de o Estado dispor de mais recursos para aplicar no desenvolvimento é haver um aumento de produção. Havendo mais produção, o governo pode levantar impostos e dispor de recursos reais.

Atualmente, o Estado dispõe de receitas que pouco aumentam, enquanto as despesas aumentam rapidamente. Para pagar os seus funcionários, vê-se obrigado a emitir moeda em quantidade crescente. Como a quantidade de produto no mercado não aumenta, os preços sobem e os aumentos salariais desaparecem, prejudicando todos os trabalhadores.

Hoje o Estado mal cobre a metade de seus gastos de funcionamento, com impostos diretos e indiretos, sem falar das grandes despesas de financiamento do desenvolvimento que são necessárias.

Assim, o financiamento externo, em vez de constituir o impulso inicial do desenvolvimento, constitui cada vez mais o eixo vital da economia, colocando o país numa situação difícil de dependência.

As exportações têm sido relativamente favorecidas pela evolução dos preços no mercado mundial, levando a uma entrada de divisas da ordem de 15 milhões de dólares por ano. Mas a capacidade interna de produção, única base sólida de desenvolvimento, não avançou suficientemente, e a queda nos preços internacionais pode levar a uma situação muito mais difícil.

Paralelamente, as importações têm crescido muito mais rapidamente, atingindo um volume anual da ordem de 70 milhões de dólares.

O resultado é que, só para financiar as importações, é necessário encontrar cerca de 50 milhões de dólares, por ano, de financiamento em divisas, além das necessidades das necessidades de funcionamento dos projetos de investimentos.

O aumento do preço do petróleo, que foi multiplicado por cinco nos últimos anos, agravou ainda este quadro, tornando-o realmente dramático.

Em termos internacionais, a crise vigente tende a tornar a situação cada vez mais difícil, com um visível recuo dos financiamentos do tipo "ajuda", e o reforço dos financiamentos comerciais, pelos quais é preciso pagar fortes juros, além de serem dificilmente renegociáveis.

À medida que a situação interna e externa foi-se tornando mais difícil, o governo viu-se forçado a recorrer a cada vez mais empréstimos, em condições cada vez mais desfavoráveis, levando o país à situação que hoje enfrenta, de uma dívida da ordem de 150 milhões de dólares, que exige pagamentos anuais que ultrapassam 10 milhões de dólares. Assim, o essencial das divisas ganhas com a exportação serve para pagar juros e reembolso das importações já consumidas, agravando a situação e fechando o círculo vicioso.

A ajuda externa recebida pela Guiné-Bissau a título de donativo encontra-se hesitante. Os organismos que fornecem a ajuda deste tipo orientam-se por critérios de utilidade real dos fundos fornecidos, em termos de melhoria das condições de vida e de produção das populações.

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O fato de grande parte da ajuda ter sido orientada para projetos não prioritários, que não melhoram as condições de vida das populações, prejudicou fortemente o acesso às fontes de financiamento. Por outro lado, os organismos que concedem fundos para o desenvolvimento preocupam-se particularmente coma aplicação produtiva destes, de maneira a que a ajuda de hoje permita a auto-suficiência de amanhã. Assim é que a FAO, por exemplo, recomenda que os resultados da venda da ajuda alimentar sejam aplicados em projetos de desenvolvimento da produção alimentar interna.

O resultado é que, enquanto aumentam as necessidades em financiamento externo, estes se tornam mais difíceis de obter, tanto na área privada comercial que vê os empréstimos ao país como um risco crescente, e endurece as condições, como na área pública, preocupada em ver o reflexo humanitário e produtivo das suas iniciativas.

Vemos assim como os problemas se encadeiam. A utilização inicial dos aportes externos em projetos de prestígio desvinculados da população produtiva do interior do país criou uma satisfação inicial na capital, mas esfriou o entusiasmo das massas produtivas rurais que sustentam a economia. Bissau, como capital, em vez de se colocar ao serviço da população que a alimenta, passou a viver ainda mais do financiamento externo, à medida que a produção rural e a sua comercialização ficaram prejudicadas.

Rompendo-se a unidade cidade-campo, desintegrou-se o processo de modernização e de dinamização rural, prejudicando o conjunto de iniciativas de desenvolvimento, inclusive os grandes esforços de constituição de infra-estruturas econômicas. Estas, que só podem ser economicamente viabilizadas através do aumento real da produção que tornam possível, ficaram com dificuldades inclusive de financiar os seus custos de manutenção e funcionamento.

O Estado viu assim os seus custos crescerem, enquanto o fraco aumento da produção e a sua fuga para o exterior em vendas diretas não permitiram o aumento das suas receitas.

Enfim, a ajuda e financiamentos externos retraíram-se parcialmente num clima de expectativa, aguardado a definição de uma política econômica de conjunto que permitisse a rearticulação e redinamização do processo de desenvolvimento. Este torna-se possível hoje, sem dúvida, mas os erros do passado tornam necessário um esforço particular de mobilização, organização e disciplina, capazes de dar confiança e entusiasmo ao conjunto dos que participam do processo.

2 – A estratégia

do desenvolvimento equilibrado

Uma estratégia de desenvolvimento claramente definida é fundamental para que o conjunto de esforços dos trabalhadores concorra de maneira harmoniosa e coerente para a construção do país.

A estratégia do desenvolvimento define-se antes de tudo pelo encadeamento correto das grandes opções econômicas. Vimos na análise voluntariamente crítica que fizemos que o país gastou grande parte dos seus recursos numa modernização que não desenvolveu suficientemente a capacidade produtiva. Hoje o país enfrenta os encargos administrativos e

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financeiros do equipamento adquirido, sem ter os benefícios de uma produção maior. Colocou-se a carroça diante dos bois, em vez de encadear de maneira planificada e organizada as iniciativas.

A agricultura por base

O ponto básico desta estratégia é que, mesmo se o objetivo é industrializar e modernizar o país, há que partir da base existente, que é fundamentalmente agrícola. Trabalham na lavoura cerca de 90% da população ativa. A maior parte dos outros está vinculada a serviços, sendo, portanto intermediários e funcionários que podem ajudar a produção a se desenvolver, mas que nunca a podem substituir.

Muitas ilusões houve nos países subdesenvolvidos, durante as últimas duas décadas, sobre o processo de industrialização acelerada. Onde se constituíram, as ilhas de industrialização subsistem hoje às custas do enorme esforço exportador do mundo agrícola ou de profunda dependência da ajuda e de empréstimos externos, constituindo enclaves luxuosas num mundo de miséria.

A agricultura, em vez de se desenvolver e acumular a capacidade de produção, destrói as suas próprias terras e reduz as suas possibilidades alimentares, ao se concentrar na produção para a exportação, para financiar em divisas os gastos de assistência técnica, energia, tecnologia, peças sobressalentes e custos financeiros do setor moderno urbano.

O resultado hoje é, no mundo subdesenvolvido e particularmente na África, uma situação alimentar cada vez mais dramática, e uma dívida externa esmagadora. Escapam parcialmente ao problema apenas os países que aceitaram financiar uma prosperidade temporária com a dilapidação dos seus recursos minerais.

As análises recentes sobre a industrialização do Terceiro Mundo constatam esta realidade simples: a industrialização sem uma sólida base agrícola está fadada ao fracasso.

Assim, voltamos ao ponto-chave: é preciso industrializar o país, mas partindo do que há, ou seja, de um país agrícola atrasado. E o problema coloca-se não em termos de criar um setor moderno ao lado do setor rural, e sim em termos de como organizar e equipar a base rural para que o conjunto da economia se modernize, criando espaço econômico para ampla base industrial de amanhã.

De pouco adianta instalar uma fábrica moderna se a sua matéria-prima é produzida com arados de madeira, se o seu abastecimento não pode ser regularizado por falta de irrigação, se a sua comercialização e financiamento dependem de inúmeros intermediários. É fácil instalar uma fábrica. O que é difícil é criar o tecido econômico de sua assimilação produtiva no país, processo que exige a modernização do conjunto de um setor da economia.

Passar de uma base nacional agrícola para uma base industrial exige, portanto, uma concentração inicial no desenvolvimento da economia existente - a agricultura -, a fim de criar o sustento da indústria de amanhã.

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Indústria como fator

de dinamização rural

Esta estratégia de desenvolvimento define a necessidade de articulação agricultura-indústria num desenvolvimento equilibrado em que a agricultura é a base e a indústria atua como dinamizadora de seu desenvolvimento.

A lógica que preside a esta orientação é simples: serão privilegiadas todas as iniciativas industriais que podem levar à dinamização da base agrícola.

Esta opção justifica-se tanto pelo lado do financiamento como pelo lado da comercialização. Com efeito, a produção industrial de instrumentos agrícolas, por exemplo, leva a um aumento de produção, e o aumento de produção permite pagar a fábrica, as matérias-primas, a assistência técnica, na medida em que uma parte do novo produto agrícola pode ser exportada e trazer divisas. É uma indústria que cria as bases do seu próprio financiamento.

Por outro lado, este tipo de indústria, ao produzir meios de produção simples e baratos para o groso da população, dispõe de um mercado interno para o escoamento do seu produto.

Como pode sobreviver, num país pequeno como este, uma indústria que ainda se dá ao luxo de produzir para uma minoria?

Ao produzir para a agricultura, este tipo de indústria aumenta a base produtiva do país e torna o agricultor capaz de comprar cada vez mais produtos, abrindo o estreito mercado interno, criando assim o vínculo permanente e a interdependência agricultura-indústria, um sustentando o outro, e assegurando ao país um desenvolvimento equilibrado.

A capacidade da política industrial mede-se não pelo ritmo de criação de fábricas – hoje a compra de uma fábrica pouco difere de uma compra em super-mercado, e o país se vê sob pressão constante das empresas multinacionais prontas para instalar qualquer unidade que for pedida – mas pelo longo esforço de preparação da implantação de cada unidade, de maneira que esta surja como o coroamento de um processo e não como início de uma desestabilização econômica.

Uma orientação básica é de se evitar o sobredimensionamento. A multiplicação gradual de pequenas unidades leva a um processo de organização de todos os setores da economia, enquanto um "salto" excessivo através da criação de grandes unidades pode levar a um isolamento destas, com prejuízos muito importantes para a economia. É natural que os vendedores de máquinas queiram vender o máximo e o maior possível, agitando sempre o argumento das economias de escala.

No entanto, na Guiné-Bissau é fundamental hoje a dinamização das economias externas, a generalização de efeitos organizativos, processos onde os "saltos" não existem. A instalação de uma unidade de porte exagerado leva à concentração dos melhores quadros, da capacidade administrativa, da prioridade na obtenção de divisas, dos meios de transporte, na unidade constituída, pois é fácil mostrar os gigantescos prejuízos que resultam de um mau funcionamento, de um dia de atraso na produção. Longe de criar empregos para desempregados, a unidade absorve gente capaz que já exercia tarefas importantes em outros setores, desorganizando-os. Enfim, como não se pode simultaneamente criar grandes unidades em todos os setores, o aparelho produtivo fica coxo, com um ritmo de produção enorme num setor e atrasos acumulados nos outros.

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Outra orientação básica é de se evitar a "ilha tecnológica". Todos sabemos que hoje criar um posto de trabalho industrial custa no mínimo 30.000 dólares. Para criar 1 000 empregos deve-se, pois investir, em média, cerca de 30 milhões de dólares: isto num país em que o aumento da população é de cerca de 15 000 pessoas por ano.

A indústria concebida em fábricas importadas e centralizadas não vai, portanto, contribuir decisivamente para a elevação da capacidade nacional de assimilação de tecnologia. Cria-se uma dualidade de progresso para uma minoria e atraso para a esmagadora maioria, com a constituição de uma ilha tecnológica isolada do país.

Um processo fundamental da criação de raízes industriais é a multiplicação de pequenas instalações em todos os pontos do país, de maneira a elevar o nível tecnológico geral e permitir amanhã um processo de industrialização mais dinâmico. Isto significa praticamente fazer um grande esforço de equipamento das vilas do interior em pequenas máquinas para descasque, moagem, britadeiras, pequenos motores polivalentes etc., cujo funcionamento já deu as suas provas em outras regiões do continente. Na realidade, o país está num nível em que é preciso reforçar o equipamento do mundo rural com instrumentos ainda mais simples, como enxadas, pás, carrinhos de mão, bombas de água.

O que se deve evitar é a ruptura em dois mundos, o da grande fábrica moderna, enquanto os camponeses trabalham com arado de madeira para alimenta-la.

A organização dessa base rural do desenvolvimento industrial deve constituir a primeira grande prioridade do desenvolvimento industrial. Trata-se da produção de bens de produção agrícolas, setor-chave de uma indústria que queira constituir as bases rurais do seu próprio desenvolvimento ulterior.

Com efeito, somente uma agricultura modernizada poderá fornecer o excedente necessário à indústria, e somente este excedente permitirá ao camponês ter dinheiro e interessar-se pela compra dos produtos industriais, reforçando o mercado interno destes.

Assim, o principal setor de indústria a ser desenvolvido é, em termos simples, o de produção de arados, pás, enxadas, carrinhos de mão, bicicletas, charretes, bombas, debulhadoras, instrumentos de moagem, material de irrigação, e enquanto não surge esta indústria, este material deverá ocupar posição importante nos programas de importações do país, assegurando-se o seu abastecimento ao agricultor no mais curto prazo possível.

Esta indústria e o equipamento importado em geral vão exigir o reforço de um outro setor importante da indústria, o da metal-mecânica, tronco comum da fabricação de pequeno equipamento metálico, de peças de reposição, de manutenção de motores e outros mecanismos. A metal-mecânica serve a todos os projetos industriais e a todos os projetos de equipamento. Fundição, prensas, tornos, fresas etc. devem permitir a fabricação de peças simples, de instrumentos, ferramentas, e assegurar que o equipamento importado não fique parado, com grandes prejuízos para o país, por falta de uma peça ou de um retoque.

Na medida em que se tiver desenvolvido o fabrico de bens de produção para a agricultura, fazendo assim surgir um excedente agrícola, e a capacidade de manter em funcionamento permanente do novo parque industrial com a criação do setor metal-mecânico, será possível reforçar o desenvolvimento de um setor industrial exportador.

Este baseia-se no país em três setores: pesca, madeira e indústria agroalimentar.

A pesca apresenta condições excepcionais. Trata-se da maior riqueza exportável a curto prazo, que poderá fazer triplicar ou quadruplicar as exportações com investimentos relativamente limitados.

A madeira, se bem que em quantidades menores do que foi inicialmente estimado, permite, com transformação adequada, uma exportação muito interessante para o país,

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sobretudo por não exigir a desestruturação de atividades agrícolas integradas. Exige, no entanto um amplo esforço de classificação das florestas, de proteção do equilíbrio ecológico, de assimilação de tecnologias de transformação, de compressão de custos de transporte, para ir-se aumentando o valor acrescentado local. Ao mesmo tempo que reforça a balança de pagamentos, esta indústria dará um importante impulso à indústria de construção, que hoje usa o bissilão, madeira caríssima no mercado internacional, mas que pode utilizar outras madeiras.

Na indústria agroalimentar é que se colocam os maiores problemas. O Senegal, que optou pela monocultura de amendoim, volta, após 40 anos de modernização e com 2,5 vezes mais população, à mesma produção de amendoim que em 1936: a monocultura não perdoa. E a limitação fundamental à indústria alimentar provém justamente da necessidade de se limitar a especialização agrícola, de assegurar o desenvolvimento integrado da agricultura. Assim, a agroindústria deve ser desenvolvida não com o objetivo de obter o máximo de divisas, e sim com o objetivo de dinamizar progressivamente a própria produção. E isto implica colocar a maior parte possível das etapas de transformação dos produtos nas mãos do próprio trabalhador rural, a fim de multiplicar pelo maior número possível de trabalhadores a assimilação de tecnologia moderna.

A Guiné-Bissau tem neste campo cinco possibilidades interessantes: a transformação do amendoim em óleo e subprodutos, a transformação do algodão, a produção de açúcar, de óleo de palma e da castanha de caju.

Um quarto setor de desenvolvimento industrial é o da substituição de importações. Aqui também as opções são relativamente simples, apesar de exigir a realização de estudos cuidadosos.

Um primeiro subsetor é a fileira técnica do algodão. A Guiné-Bissau realiza grandes gastos em divisas para a importação de tecidos. A produção de algodão, lançada em 1976, permite já o descaroçamento, em Bafata. É preciso agora realizar os investimentos que completem gradualmente a fileira de produção, com fiação, tecelagem, tinturaria, confecção. Assim, haverá uma auto-suficiência neste setor básico de primeiras necessidades da população, com matéria-prima própria e com tecnologia facilmente assimilável.

Outro setor é o da produção de utensílios domésticos. Uma fábrica de plásticos deverá suprir certas necessidades. Mas deve-se estudar com muito cuidado as unidades implantadas, para assegurar que correspondam efetivamente às necessidades, e que estas sejam bem avaliadas. Mais uma vez, uma indústria tanto pode ter grandes efeitos positivos como grandes efeitos negativos.

Outro é o da produção de alimentos para o mercado interno. O caso exemplar é o do açúcar, que pesa sobre a balança de pagamentos e que constitui um bem de primeira necessidade para a população. Mas entram neste rol igualmente a produção de geléias e compotas, de biscoitos, de conservas etc. Além da produção de bens alimentares de primeira necessidade, este setor economiza divisas.

Outro subsetor é o da produção de embalagens, como garrafas, caixas, sacos, papelão: as perspectivas são boas no país, tanto para o vidro como para certos tipo de cartão. Os plásticos,como se sabe, constituem uma importação disfarçada, pois o valor agregado local é reduzidíssimo.

Um quinto setor, enfim, é o da indústria de construção. A Guiné Bissau tem neste setor dificuldades particulares. Com efeito, o cimento e o ferro são importados, não há pedras, o asfalto atinge preços vertiginosos. Antes do lançamento de qualquer indústria neste campo, a Guiné Bissau defronta-se com um longo período de pesquisas dos materiais

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de construção existentes, e da experimentação dos materiais locais em diversas composições até identificar técnicas de construção e materiais que permitam fazer face aos enormes investimentos que este setor industrial exige em países novos.

Há evidentemente outros setores: eletrônica, química pesada, siderurgia etc. No fundamental, no entanto, de nada adianta lançar uma pequena unidade "nobre" quando é necessário importar os produtos semi-acabados, comprar as patentes, assegurar assistência técnica estrangeira e acabar por vender no exterior. A instalação de um ou dois elos da cadeia de um produto é interessante para os países industrializados, que transferem para países de mão-de-obra barata alguns elos do seu ciclo produtivo, subcontratando de certa forma serviços nacionais para uma produção cujo ciclo completo é controlado no exterior. Esta forma de industrialização gera dependência, e será preferível importar os produtos necessários, concentrando os esforços produtivos nos setores em que as condições específicas do país permitam controlar efetivamente o ciclo de produção, como no caso do algodão.

De modo geral, a indústria é constituída por processos caros, que exigem ritmos extremamente elevados de rotação. Tanto pode desequilibrar como dinamizar uma economia. O primeiro efeito atinge-se muito mais rápido que o segundo. A instalação de uma fábrica representa um grande salto. Mas nenhum setor exige tanto controle e planificação para se evitar que o salto seja dado para o lugar errado.

O abastecimento e os serviços de apoio

A importância dos serviços e da definição correta das suas funções foi outro ponto amplamente subestimado nas estratégias do desenvolvimento dos países subdesenvolvidos.

A complementaridade e o sustento mútuo dos processos de modernização da agricultura e da indústria não podem existir se não forem completamente organizados os fluxos entre os dois grandes setores produtivos da economia.

Antes de tudo, é fundamental assegurar o abastecimento correto das populações rurais em meios de produção e bens de consumo de primeira necessidade, de maneira a que o agricultor se sinta estimulado a produzir, e produzindo, em vender o produto, sem o que não se forma mercado interno para a indústria.

Isso implica a ampliação da rede de comercialização, mas, sobretudo o seu abastecimento em bens que sejam necessários à população. Dentro de alguns anos, estes bens poderão ser produzidos dentro do país. Nesta fase, no entanto, o objetivo exige o controle estrito da política de exportação, assegurando que cada unidade disponível de divisas seja utilizada para bens essenciais. Enfim, é necessário assegurar que a cobertura regional na distribuição deste bem seja completa e justa, evitando-se os privilégios ou subfornecimento de determinadas regiões.

Outro serviço fundamental é o dos transportes, sem o qual todos os esforços do agricultor ou das próprias empresas serão frustrados. Mas assegurar serviço de transporte significa, evidentemente, assegura-los da cidade até o produtor e entre as zonas produtoras, criando-se a teia de integração das atividades econômicas do país, e não os eixos de escoamento da fase colonial. De que adianta um grande eixo nacional se não for aberta a rede secundária de estradas até a vila, onde se dá o esforço produtivo?

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De grande importância igualmente é a constituição da rede de armazenagem. Se os silos nacionais e regionais são de constituição relativamente rápida, não se pode esquecer de que pouco adianta o esforço sem a rede correspondente a nível das vilas e de cada agricultor, forma tradicional de o mundo rural acumular o excedente e se garantir dos maus anos agrícolas.

O sistema de crédito constitui outro serviço básico que é indispensável assegurar ao agricultor, preso ao empréstimo usurário do comerciante que lhe concede adiantamentos sobre o produto.

A importância do desenvolvimento destas redes é hoje reconhecida, mas é preciso que se assegure o seu funcionamento a serviço da população produtiva, rompendo a situação tradicional em que o intermediário comerciante ou transportador monopoliza o excedente, transformando em acumulação comercial improdutiva o excedente que nas mãos do agricultor e do produtor industrial pode se transformar em reinvestimento e processo cumulativo de desenvolvimento da produção.

Esta orientação não é viável sem um controle efetivo das comunidades sobre os circuitos de serviços, sem a clara definição por parte do Estado do caráter complementar que os serviços devem ter frente ao objetivo estratégico de desenvolvimento da capacidade produtiva.

Enfim, uma rede de serviços ligados à agricultura assume papel particular numa economia que usa técnicas atrasadas: a rede de abastecimento em meios agrícolas de produção, com a rede de assistência técnica e de vulgarização que lhe corresponde. A falência das numerosas tentativas de modernização em outros países deve-se em grande parte à dificuldade de generalizar a "pequena" modernização, a nível de cada agricultor, processo mais lento e complexo que a compra de grandes fábricas modernas. A próxima estrutura das vilas e a força do Partido permite um enquadramento e organização da difusão que constituem um trunfo importante para o desenvolvimento.

Mas aqui tampouco se admite que a rede de apoio esteja a serviço do simples lucro comercial e organizada segundo objetivos imediatos de rentabilidade. Trata-se do melhor investimento que o país faz e deverá ser organizado em função das necessidades a médio prazo de desenvolvimento da produção agrícola.

O desenvolvimento regional integrado

Não há plano, nem desenvolvimento, sem a participação efetiva das populações. Ou seja, não basta integrarmos agricultura, industria e serviços num processo coerente: é fundamental que a população assuma o processo, e o sinta como seu, como resposta aos seus anseios, sem o que os programas estão fadados ao fracasso.

Não se pode mobilizar o país, a base rural, sem se descentralizar a gestão da economia, sem fazer a administração se voltar efetivamente para o interior do país.

De maneira geral, os inúmeros relatórios sobre desenvolvimento rural na região atestam os resultados irrisórios obtidos pelos projetos, quando não se assegura a participação efetiva da população interessada no financiamento, no esforço e no resultado.

A Guiné-Bissau dispõe nesse plano de uma importante vantagem, que é a existência das unidades comunitárias solidamente estruturadas, as tabancas, vilas rurais que em outros países foram seriamente afetadas pelo efeito desestruturador da monocultura de exportação.

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A importância da tabanca decorre em particular da própria pobreza no mundo rural, que torna difícil o financiamento dos esforços de modernização pelo camponês individual, que não tem excedente suficiente para comprar uma motobomba, equipamento de irrigação e outros equipamentos mais sofisticados.

A tabanca, ao juntar os seus recursos para realizar investimentos coletivos, pode abrir amplas possibilidades de modernização e desenvolvimento, além de criar as bases das futuras cooperativas e formas mais adiantadas de divisão social do trabalho.

Da mesma maneira que, ainda que se queira desenvolver a indústria, é necessário partir da base agrícola existente, também no caso da tabanca é preciso partir da forma atual da organização camponesa, para transforma-la gradualmente em cooperativas ou semicooperativas, ou outras formas mais produtivas de organização.

No desenvolvimento regional também houve ilusões sobre o "salto" tecnológico que seria possível dar para aumentar o nível de produção. Assim foram concebidos os projetos de arroz em plantação de 18 000 hectares, de açúcar com a plantação de 6 000 hectares e outros.

Na realidade, o próprio abandono destes projetos e o avanço gradual e sólido dos projetos mais modestos de Contuboel e de Bafatá ou Caboxanque, baseados na dinamização da agricultura popular existente, mostram a que ponto a modernização é um processo lento e progressivo, que exige a adesão dos homens e das comunidades e o domínio progressivo das técnicas.

A idéia de grandes plantações de monocultura intensiva poderá não ser errada em princípio – se bem que coloque grandes problemas em terras frágeis como as de Guiné – mas é, tal como a implantação de grandes empresas industriais, prematura. É preciso enfrentar o penoso trabalho organizativo e formativo de modernização generalizada a nível de cada agricultor, capacitando-o para fases mais elevadas.

Basear o desenvolvimento regional nas comunidades existentes, para faze-las evoluir, implica que a produção responda às necessidades do próprio trabalhador. Em outros termos, o desenvolvimento comunitário implica que se dê prioridade à agricultura alimentar, relativamente à agricultura de exportação, bem como que se assegure bom abastecimento em bens de primeira necessidade.

Mas implica igualmente uma mudança política importante que é da organização da participação efetiva das comunidades nas decisões sobre o próprio desenvolvimento.

Em termos concretos há cerca de 650 000 pessoas vivendo no interior, população esta dispersa em cerca de 3 600 vilas. Como mobilizar e organizar a participação ativa no processo de desenvolvimento de todas estas comunidades?

Neste plano há dois tipos de resposta: uma consiste na promoção do desenvolvimento setorial. Ou seja, faz-se, por exemplo, um projeto de plantação de tabaco, um projeto amendoim etc., e especializam-se diferentes organismos na promoção de um produto. Esse tipo de promoção da produção agrícola tem falhado regularmente na África por várias razões: enquanto para gerir uma fábrica de tecidos há uma concentração de capacidade administrativa, a gestão da produção de algodão em milhares de unidades rurais é muito mais complexa. Cada camponês decide a sua produção não relativamente a um só produto, como o operário de uma fábrica, mas relativamente a uma série de atividades paralelas, culturas em rodízio etc. E no caso de, para se ultrapassar estes problemas, centralizar-se a cultura do algodão ou outro produto numa só região, voltamos aos defeitos que resultam da monocultura.

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A outra alternativa, e que está sendo adotada por entidades determinadas a promover o mundo rural, e não apenas a extrair um produto de exportação, é a regionalização do desenvolvimento, através do desenvolvimento regional integrado.

Na base dessa estratégia está o raciocínio seguinte: de nada adianta fornecer adubos, se não se fornece simultaneamente a instrução correspondente sobre como utiliza-los. A instrução supõe que haja paralelamente um esforço de educação. Por outro lado, cursos de higiene, programas de saúde em geral estão pendentes do aprovisionamento em água, que depende de outros departamentos. E o aumento de produção que resulta de irrigação, utilização de adubos e outros tem interesse na medida em que se apresentam aos produtores possibilidades de comercialização e de trans porte, senão o esforço de aumento de produção é vão e no ano seguinte o agricultor não estará disposto a recomeçar. Em outras palavras, é necessário que o apoio chegue simultaneamente sob suas diversas formas, de maneira a que um tipo de intervenção sustente o outro, e que as diversas atividades de promoção de desenvolvimento estejam integradas umas com as outras.

Isto implica que se tome como ponto de partida uma região, por exemplo, e não um produto, que se descentralizem os serviços e que se programe a intervenção, vila por vila, de acordo com um programa integrado. Cabe à vila, que conhece as suas possibilidades e necessidades, formulá-las, e cabe aos organismos regionais de desenvolvimento satisfazer os pedidos formulados.

Na base do processo, está, portanto um esforço de mobilização das unidades básicas que constituem as vilas, de maneira a que lhes sejam fornecidos os instrumentos de promoção do seu desenvolvimento segundo as suas próprias iniciativas.

Esta estratégia não implica uma forma única de organização da produção rural. Na realidade, as soluções não se encontram na escolha de uma forma apenas de organização agrícola, nem na sua escrita definitiva, mas na sua continuação adequada. Unidades de produção diferentes respondem a necessidades diferentes, e as unidades podem ser mais ou menos adequadas em períodos diferentes do desenvolvimento das forças produtivas do país.

No fundamental, e nesta etapa do desenvolvimento, parecem impor-se as seguintes forças de organização da produção rural:

  1. - para responder às necessidades gerais de produção, é necessário partir da situação atual, ou seja, da produção familiar em torna das unidades sociais que constituem as vilas, e empreender esforços no sentido de dinamiza-las, reforçando gradualmente as atividades comunitárias e o equipamento coletivo. Assim, haveria uma evolução natural, sem rupturas, da situação atual para a formação, sobre a base da própria vila, de pré-cooperativas e mais tarde de cooperativa;
  2. - as fazendas estatais e grandes cooperativas teriam por objetivo fundamental introduzir novas técnicas e espécies, constituindo uma agricultura experimental de proa, onde se formariam quadros e buscariam soluções mais adequadas a introduzir na agricultura popular que constitui o motor real da economia rural em termos de produção;
  3. - em torno dos maiores centros urbanos serão promovidas a horticultura e fruticultura destinadas ao abastecimento urbano, em bases de pequena agricultura camponesa inicialmente, mas crescentemente na base de granjas;
  4. - em fase ulterior apenas, na medida em que tiver progredido bastante o nível de formação dos quadros, de prática adquirida em agricultura científica, poderá ser concebida uma agricultura mecanizada intensiva em todo o país.

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No momento, no entanto, a promoção do mundo rural depende fundamentalmente da mobilização das capacidades produtivas a nível popular. Nenhuma plantação ou granja de estado poderá substituir o aumento de produção e desenvolvimento que pode resultar de um gradual equipamento, formação e dinamização ao nível das estruturas existentes.

No conjunto, a promoção do desenvolvimento regional integrado implica uma sólida reorientação do conjunto das atividades do Estado e do Partido para o interior do país. De pouco adiantam discursos urbanos sobre o que deveria fazer o trabalhador rural. É fundamental trazer-lhe o apoio material e organizativo de que necessita.

O financiamento externo como complemento

O país parte de uma dependência estrutural muito grande relativamente ao financiamento externo, que hoje atinge até o domínio alimentar.

A utilização de financiamentos externos é necessária, e não representa mais, em termos políticos, do que uma justa retribuição pelos gigantescos danos e atrasos que o colonialismo ocidental gerou no país.

No entanto, este apoio deve servir para que a Guiné-Bissau se libere da dependência do exterior, e não para aprofunda-la.

Em termos simples isto implica que cada unidade de financiamento externo que chega deve servir para aumentar a capacidade de produção e de financiamento internos.

Um bom exemplo de financiamento externo desvirtuado constitui a unidade de montagem de automóveis. Para funcionar, exige comprar regulares dos elementos de montagem, representando mais encargos permanentes sobre a balança de pagamentos, enquanto o produto obtido, o automóvel, não aumenta a base produtiva do país, constituindo pelo contrário um bem de consumo durável que não corresponde ao nível atual de desenvolvimento.

Deve-se utilizar a dependência externa para romper esta dependência, ao reforçar as bases internas da economia.

Outro ponto importante do financiamento externo é o fato de ser geralmente vinculado à utilização para compras no país fornecedor do financiamento. É necessário entender o caráter dos financiamentos fornecidos: frente à crise internacional que se alastra, grandes bancos estão sempre prontos a financial compras de equipamento por parte dos países subdesenvolvidos, para escoar os estoque.

Assim, orientando o desenvolvimento segundo as facilidades de se obter financiamento externo, se estará comprando, como se tem feito, o que mais interessa vender aos países industrializados, e não o que mais interessa em cada etapa para o desenvolvimento do país, acumulando encargos internos e externos sem aumentar a contrapartida em aumento de produção.

A ajuda externa deve assim ser submetida às exigências da estratégia e do plano de desenvolvimento. Saber recusar financiamentos é virtude necessária de um país que deles precisa.

A Guiné-Bissau faz parte do grupo de países menos avançados (PMA), ou seja, é um dos 31 países do mundo que demonstram um atraso econômico particular. Em conseqüência, o tipo de financiamento obtido ou que pode ser reforçado é em geral humanitário e oficial, já que empresas e bancos particulares encontram relativamente

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menos interesse no país, salvo em alguns setores como a pesca, que dá lucros imediatos, ou venda de bens e equipamento.

A manutenção ou dinamização dos financiamentos externos da Guiné-Bissau depende, portanto, menos da sua aplicação em objetivos vistosos e imediatos e mais da sua aplicação no desenvolvimento real do nível de vida e das condições de trabalho da população. Em outros termos, a ajuda oficial em condições não comerciais que caracteriza o essencial dos financiamentos externos à Guiné-Bissau está interessada em ver efeitos positivos a nível de toda a população, em particular da parte mais pobre, tanto em termos de satisfação das necessidades mais simples e prementes como em termos de desenvolvimento da capacidade produtiva dos trabalhadores. Este tipo de financiamento espera ver nos resultados da sua concessão uma capacidade crescente de autofinanciamento.

Assim, a ajuda externa oficial é sensível a dois argumentos básicos: responder às necessidades básicas da população e aumentar a capacidade geral de produção no país a longo prazo, objetivos que coincidem com a estratégia de desenvolvimento adotada.

Uma terceira orientação básica que orienta o recurso ao financiamento externo é a diversificação: recorrer a muitas fontes significa não depender exageradamente de nenhuma, o que coincide com o princípio de não alinhamento. No entanto, é óbvio que o recurso a fontes oficiais e de países que não estão vinculados ao processo neocolonial de divisão internacional de trabalho, em particular aos países socialistas, apresenta maiores garantias de respeito ao modelo de desenvolvimento do país.

A ajuda externa é uma arma de dois gumes: tanto pode constituir a base da dinamização e independência econômica como servir de adiamento de problemas estruturais ao permitir um nível de vida urbano artificial. Considerando a escassez de recursos externos, cada unidade de divisas deve ser utilizada de maneira planificada e disciplinada para os objetivos estratégicos mais importantes do desenvolvimento.

A estratégia mostra o caminho. Para segui-lo, é preciso criar e reforçar os instrumentos da sua aplicação, e o principal instrumento de aplicação da estratégia é o Plano.

Um bom exemplo de financiamento externo desvirtuado constitui a unidade de montagem de

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3 – Desenvolvimento e plano

A estratégia de desenvolvimento ficará no papel senão for materializada em iniciativas concretas, em organização, em projetos, em produtos, em meios humanos e financeiros. Em outros termos, é necessário que a estratégia de desenvolvimento seja transformada em planos que definam as metas a atingir, os meios a mobilizar e os prazos de realização.

O Plano: pedra angular do desenvolvimento

O objetivo do desenvolvimento é o homem. No plano da economia, interessa a satisfação das suas necessidades materiais, mas também o respeito da sua dignidade, do seu papel de construtor da sua própria terra.

A Guiné-Bissau é uma economia pobre, e continuará a sê-lo por muitos anos. Não há saltos nem milagres possíveis, e o amanhã depende do esforço paciente e organizado, no dia-a-dia, de cada metro de terra agrícola recuperado, do caminhão consertado, de cada criança que aprende a ler, do operário que domina uma nova técnica.

O longo esforço de construção da economia exige um ambiente de democracia, paz, liberdade e compreensão. Este é incompatível com a multiplicação de privilégios, com a impaciência de quem quer desde já gozar os frutos que só existirão para todos amanhã, com a prepotência do funcionário que esquece que está a serviço do povo, com a leviandade de quem quer marcar a sua presença através de obras de prestígio ou prematura.

O desenvolvimento democrático exige um desenvolvimento participado, no qual o conjunto dos trabalhadores agrícolas, industriais e intelectuais sinta que participa não só no resultado, com justiça social, mas também na definição das opções.

Não há desenvolvimento democrático sem planificação. Somente esta permite que os representantes do povo possam efetivamente influir sobre a alocação dos recursos, e aprovar ou vetar e modificar iniciativas antes que sejam tomadas, antes do fato consumado. Somente o Plano, amplamente divulgado e discutido, pode tornar-se a plataforma de união nacional que indica o que o governo pretende fazer pelo país, e sim o programa em torno do qual toda a sociedade decide organizar e coordenar os seus esforços.

O Plano se materializa em realizações técnicas, em utilização cada vez mais racional de capacidade de trabalho, dos recursos naturais e do equipamento. Mas é, antes de tudo, o documento político fundamental em torno do qual se organiza a construção do país.

Ao elaborar o Plano, teve-se, portanto em mente um objetivo político: que possa ser criticado e modificado pelos representantes do povo, que cada trabalhador possa, através dele, sentir e entender a sua participação na construção do seu futuro, e que a justiça social na distribuição de frutos do esforço o torne instrumento de união nacional.

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Etapas da planificação na Guiné-Bissau

A organização do sistema nacional de planificação é a tarefa básica do Ministério da Coordenação Econômica e Plano. A planificação não existia no tempo do colonialismo, e a organização do sistema de planificação exigiu a superação das mesmas dificuldades que sofrem os Ministérios técnicos, da deficiência de quadros, da dificuldade de comunicações, da fraqueza das estruturas, naturais para um Estado recente.

A força do plano depende apenas em parte do trabalho e da organização do Ministério do Plano. O Plano tem força real quando todos os Ministérios, empresas, regiões organizam-se efetivamente em função de objetivos comuns e agem de maneira planificada.

Na Guiné-Bissau, ainda estão sendo formados os quadros, promovem-se os estudos científicos sobre os recursos, organizam-se os dados estatísticos, definem-se gradualmente as áreas de intervenção dos diversos departamentos do Estado.

Numa fase inicial, é natural uma fraqueza relativa do Plano. Os países subdesenvolvidos que recuperaram a independência levaram cinco, dez ou mais anos para organizar o seu primeiro Plano de desenvolvimento.

A demora prende-se não só à dificuldade de elaboração do documento do Plano, mas, sobretudo à lenta implantação tanto dos sistemas de informação necessários para um plano realista, como dos sistemas de execução que asseguram que o Plano levará a modificações concretas a nível da economia. E de pouco adianta redigir um plano antes de existirem as estruturas de sua aplicação.

No país, estas estruturas ainda estão em fase de constituição, e deverão reforçar-se em função da prática da execução do primeiro plano de desenvolvimento.

Após a independência, as primeiras iniciativas econômicas foram feitas sem plano, sob a pressão das necessidades mais prementes. Não era necessário um plano para se saber que era necessário formar quadros, abrir centros de saúde, organizar os Ministérios, comprar ônibus.

Com o tempo, no entanto, o volume e a importância das iniciativas foram aumentando, e é preciso constatar que a relativa fraqueza do Plano, ou a generalização insuficiente da consciência da sua necessidade levou a muitas iniciativas individuais ou isoladas em diversos níveis. A multiplicação de atividades desconexas levou a investimentos e esforços cujos desvios foram analisados nas páginas anteriores.

Em termos de progressão da implantação do sistema de planificação, o ponto de partida foi a elaboração da estratégia de desenvolvimento, que definiu as opções por um desenvolvimento equilibrado e voltado para as necessidades da população.

Em função da estratégia assim definida, passou-se a reforçar cada vez mais a avaliação dos projetos implantados ou por implantar no país. A partir de 1978, foram organizados os orçamentos de investimentos, levando todos os Ministérios a definir os seus programas para o ano, com listas de projetos e avaliação dos custos em pesos e em divisas.

Em 1979 foi realizado o recenseamento geral da população, que deu pela primeira vez a idéia precisa da população, dos recursos humanos do país, da sua distribuição geográfica, do número de vilas e da sua localização, além de outras informações.

Em 1980, foi elaborado o Programa de Desenvolvimento 1980-1981, amplo estudo de todos os setores da economia, que deu pela primeira vez uma visão global das iniciativas tomadas nos últimos anos e programadas para o biênio, deixando claros, inclusive, os desvios que estavam ocorrendo relativamente à estratégia definida.

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Em fins de 1980, o Movimento Reajustador de 14 de novembro veio trazer transformação profunda a nível político, transformação que levou, a nível da economia, à aprovação do Programa Provisório do Governo em julho de 1981 e à confirmação das principais orientações e do papel do Plano no I Congresso Extraordinário em novembro do mesmo ano.

Assim, ao entrar em 1982, o Ministério da Coordenação Econômica e Plano considerou que estavam reunidas as condições mínimas para lançar a preparação do I Plano Nacional de Desenvolvimento, a partir de 1983, por um período de quatro anos.

A organização do sistema de planificação

O Plano visa, em termos técnicos, organizar o desenvolvimento econômico e social do país de maneira que as atividades de cada setor reforcem as atividades dos outros, orientando os recursos segundo as necessidades de correção dos desequilíbrios e de maximização do crescimento da economia.

Ao Plano cabe coordenar o conjunto de atividades econômicas e sociais do país, com particular destaque para:

  1. - atividades produtivas:
      1. 􀂃 agricultura e pecuária
      2. 􀂃 indústria
      3. 􀂃 minas
      4. 􀂃 energia
      5. 􀂃 pesca
      6. 􀂃 florestas
      7. 􀂃 construção
  2. - serviços econômicos, com as respectivas infra-estruturas:
      1. 􀂃 comércio
      2. 􀂃 transportes
      3. 􀂃 telecomunicações
      4. 􀂃 águas
  3. - serviços sociais:
      1. 􀂃 saúde
      2. 􀂃 educação
      3. 􀂃 informação e cultura
  4. - controle da economia:
      1. 􀂃 plano
      2. 􀂃 finanças
      3. 􀂃 banco

O conjunto destas atividades deve tender para uma mesma direção, e permitir a associação efetiva dos trabalhadores na concepção e execução dos programas.

O Plano tem igualmente de assegurar um certo equilíbrio entre as iniciativas previstas e os meios – em pesos e em divisas – correspondentes, bem como o equilíbrio particularmente importante na Guiné-Bissau entre os projetos e empreendimentos e os quadros e trabalhadores especializados encarregados de executa-los.

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A planificação do conjunto destas iniciativas não se pode fazer sem que cada Ministério, cada região, cada empresa participem do esforço de planificação nacional.

Assim, a nível dos principais Ministérios técnicos foram criados gabinetes de estudos e planificação (GEP) encarregados de elaborar as estatísticas setoriais, os orçamentos setoriais de investimentos, os orçamentos cambiais e os planos setoriais de desenvolvimento.

A nível regional, o plano deve assegurar o equilíbrio de atribuição de recursos, organizando juntamente com as regiões os planos regionais de desenvolvimento, utilizando para este efeito os recém-criados Gabinetes Regionais de Planificação (GRP), que deverão desenvolver-se até assegurar a planificação e harmonização do desenvolvimento de cada região.

A planificação setorial, que apresenta os programas e projetos de cada Ministério para um período, deve ajustar-se com os programas regionais, pois é a este nível que se exige coordenação efetiva e resultados práticos. Os programas de saúde devem chegar à comunidade junto com os programas de águas rurais, a promoção agrícola deve coincidir com abastecimento em bens de produção e consumo.

Assim, a planificação tem por centro o Ministério da Coordenação Econômica e Plano, mas todas as instituições que colaboram no desenvolvimento devem participar tanto na elaboração como na execução do plano através do seu próprio esforço.

A nível das empresas, enfim, observa-se um grande atraso. As suas atividades são planificadas através dos Ministérios de tutela, com apoio da Direção Geral de Controle e Apoio às Empresas, do Ministério do Plano.

O conjunto deste sistema ainda está em processo de criação, com problemas de formação de quadros, de organização das rotinas de trabalho. O maior esforço por fazer situa-se a nível regional. Há 3 600 vilas dispersas pelo país, a esmagadora maioria dos trabalhadores está concentrada em áreas rurais, e o apoio às suas iniciativas depende ainda de algumas dezenas de quadros, amplamente insuficientes para realizar um trabalho efetivamente mobilizador a nível nacional.

Coerência técnica e mobilização política

O documento do plano tem um caráter simultaneamente técnico e político.

Técnico, porque deve assegurar os grandes equilíbrios que permitem o avanço da economia sem grandes pontos de estrangulamento. Se se quiser lançar um programa rural, devem-se assegurar as divisas para os meio de produção. Se se montar uma fábrica, tem-se de assegurar o abastecimento de matérias-primas.

Em outros termos, o desenvolvimento nos diversos setores da economia deve dar-se de maneira coerente. Os grandes pontos de estrangulamento que o país enfrenta, particularmente nas áreas de abastecimento, formação de quadros e balança de pagamento, devem-se em boa parte à falta de planificação ou ao seu caráter incipiente.

No caso do complexo agroindustrial de Cumerê, foi comprado o equipamento mas não se criaram as condições prévias do seu funcionamento. No caso dos carros, montaram-se autos mas não se desenvolveu a capacidade de financiamento das peças a montar.

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Quantos projetos foram lançados sem que fosse planificado o seu sustento após o fim do financiamento externo?

No centro da coerência do plano está o critério do resultado final. Uma fábrica é um processo acelerado que exige, para o seu funcionamento, que todos os elementos da produção – a mão-de-obra devidamente qualificada, a matéria-prima, as máquinas, a energia – estejam simultaneamente disponíveis nas quantidades necessárias. Basta que falte um elemento, por falha de uma máquina, para parar o conjunto, com sérios prejuízos para o país.

O desenvolvimento da produção rural tem exigências semelhantes: tem de haver água, sementes, adubos, pesticidas, instrumentos agrícolas etc., nas devidas quantidades e no momento certo, para o processo de produção poder se desenvolver e melhorar.

Ora, é claro que esta coerência só é possível com ampla participação do próprio trabalhador, seja ele agricultor, médico, operário ou professor. Nenhum governo é capaz de planificar todas as atividades, e na realidade o plano só adquire real coerência técnica ao assegurar a adesão política de quem o executa.

Assim, o plano adquire força e eficiência quando trabalhadores sérios em todos os departamentos da economia ajudam a prever as necessidades, a corrigir o próprio plano e a melhorá-lo, tornando este num instrumento de colaboração organizada do conjunto das forças da nação em torno dos objetivos fixados.

Dezena de planos têm sido feitos em países subdesenvolvidos. Dormem na sua maioria na paz das gavetas, com seus belos mapas, enquanto a economia evolui a esmo, segundo as pressões mais ou menos fortes de diversos grupos, segundo a facilidade de se obter financiamento no exterior.

A confiança no sistema de economia planificada adquire-se. É uma questão de consciência política, de reconhecimento de que cada um de nós, para melhorar de vida, deve ajudar todos os outros, a melhorar o nível geral do país, e não buscar privilégios momentâneos que reproduzem o atraso de todos.

Assim, é o caso do comerciante que não ajuda a levar melhores instrumentos de produção ao agricultor, porque prefere os lucros imediatos que lhe assegura o endividamento dele. Na realidade, bloqueia com esta prática o crescimento do produto global, e ao assegurar um nível de vida um pouco melhor para si, por explorar os outros, acaba por condenar a todos a um atraso permanente.

Em resumo, o Plano será bom ou mau, será bem ou mal aplicado, segundo se preencham ou não três condições básicas:

  1. - o Plano tem de seguir uma estratégia geral acertada que assegure tanto os interesses da população como o desenvolvimento acelerado das forças produtivas do país;
  2. - tem de ter coerência interna, fixando para cada setor da economia metas realistas e possíveis de serem atingidas e assegurando que existam os meios humanos, materiais e financeiros de sua execução;
  3. - tem de conseguir a solidarização da população em torno dos objetivos fixados, mobilizando-a no seu conjunto para esforço de construção nacional e para as etapas intermediárias fixadas por cada Plano.

Passaram-se oito anos desde a independência. É hora de ultrapassar as intervenções pontuais, as medidas de urgência, os projetos experimentais, e de se lançar a um vasto

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esforço de mobilização nacional em torno de um objetivo comum, em torno das metas do I Plano de Desenvolvimento Econômico e Social.

4 – O I Plano de Desenvolvimento

Econômico e Social

Os problemas do desenvolvimento são muitos, e já foi dito que na Guiné-Bissau tudo é prioritário. No entanto não se pode enfrentar tudo ao mesmo tempo, e em cada etapa do desenvolvimento deve-se concentrar nos objetivos que mais podem fazer avançar o conjunto da economia.

Os pontos de estrangulamento

Já vimos, na primeira parte deste trabalho, as dificuldades que resultaram da herança colonial e de certos desvios no desenvolvimento do país. Ambos levaram a pontos de estrangulamento que seria útil resumir aqui, pois as orientações do próximo plano quadrienal resultam de uma análise das contradições atuais.

1)A política de investimentos levou à multiplicação de projetos que, na sua maioria se concentram na área moderna da economia, mas sem capacidade de mobilizar efetivamente a capacidade produtiva popular, superdimensionados e exigindo soluções tecnológicas de difícil assimilação local. O resultado foi que boa parte dos projetos, em vez de serem dinamizadores das energias locais, transformaram-se em sustento artificial de um funcionalismo paralelo, quando não desapareciam inteiramente com o fim dos financiamentos externos.

2) A concentração em projetos de modernização excessiva levou a um sobreequipamento relativo, no sentido de se ter hoje um setor moderno que consumiu grandes recursos, mas que não se tem ainda capacidade de utilizar produtivamente, por serem prematuros.

3) O reverso da medalha foi a fraca dinamização das atividades rurais, que permaneceram estagnadas, na própria medida em que os recursos de investimento não foram utilizados na agricultura, senão em pequena parte.

4) A concentração dos recursos em Bissau reforçou o desequilíbrio cidade-campo que existia no tempo colonial, atraindo ainda mais habitantes rurais, particularmente jovens, e criando uma situação difícil na capital, obrigada a absorver crescente parcela da ajuda externa para uma cidade que cresceu sem que a base produtiva do país se tivesse desenvolvido.

5) As fontes de financiamento externo tiveram gradual tendência para a retração, na medida em que constavam que a ajuda era utilizada para tapar buracos imediatos em Bissau, em vez de servirem de instrumento de autonomia de amanhã, através do desenvolvimento da capacidade produtiva do país.

6) O próprio agricultor, na falta de abastecimento mínimo em meios de produção e bens de primeira necessidade, e frente à deterioração das redes de comunicações, de

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transporte, de comercialização e de assistência técnica, voltou-se mais para as suas próprias necessidades, vendendo freqüentemente o seu produto direta e clandestinamente nos países vizinhos, ou emigrando para poder comprar no exterior os produtos que lhe são necessários.

No conjunto, portanto, os diversos elementos ou fatores de dinamização da economia foram-se desintegrando, até se chegar a uma economia desconjuntada, em que Bissau vive para Bissau, o agricultor para si e a ajuda externa reconsidera os seus programas, já que não resultam em aumento de produção, obrigando o país a buscar em linhas de crédito obtidas em condições cada vez mais difíceis os meios para manter as condições de vida artificiais da capital.

Muito mais do que atingir simplesmente objetivos produtivos, o plano quadrienal deve, portanto lançar um movimento de rearticulação do processo de desenvolvimento econômico e social.

As orientações do I Plano

Da análise destes pontos de estrangulamento surgiram gradualmente as propostas de orientação que hoje norteiam as discussões em torno do I Plano, e que deve constituir de certa forma a ossatura que o sustenta. Estas orientações podem ser resumidas em dez pontos:

1) a tônica central do quadriênio será a da mobilização para o desenvolvimento, com particular atenção sobre as atividades da massa rural, que constitui a esmagadora maioria da população. De nada adiantam ordens, planos e orientações que não mobilizam quem efetivamente produz, e, neste sentido, o I Plano deverá fixar metas, ainda que modestas, em torno das quais o conjunto da população possa se organizar e se sentir participante;

2) a mobilização para o desenvolvimento implica um conjunto de iniciativas de ordem técnica e um esforço particular e coordenado ao nível dos órgãos de controle da economia e do Partido, como força mobilizadora do povo. Mas implica em particular a passagem de uma fase em que os órgãos do governo executavam o desenvolvimento para a fase em que o governo promove e orienta o desenvolvimento, assegurando às populações condições de vida e de trabalho cada vez melhores. Ao organizar a mobilização para o desenvolvimento será assim necessário difundir a todos os níveis a compreensão de que as condições melhores não virão do governo, e sim do próprio trabalhador, com apoio e orientação do governo. Dentro desta orientação, é mais importante, por exemplo, o governo assegurar que os agricultores disponham de centros de abastecimento em meios de produção onde passam vir aprovisionar-se, do que multiplicar empreendimentos modernos ao lado da economia rural existente. Como será preferível o governo fornecer aos comitês de bairro materiais de construção e assistência técnica para que possam construir melhor as suas próprias casas, do que lançar ambiciosos projetos de urbanização estatal, cujos custos ultrapassam as possibilidades. Buscar-se-á, assim, romper a espera estéril, por parte de certas parcelas da população, do que o Estado poderá fazer, e o papel do governo será de orientar, planificar, organizar, para que a população possa melhor construir o seu país;

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3) a mobilização para o desenvolvimento e o reforço do papel orientador e dinamizador do governo implicam por sua vez a transformação gradual dos projetos isolados em programas, de modo a permitir melhoro coordenação das iniciativas e a sua adequação às necessidades do mundo rural. Projetos isolados se fazem geralmente com amplos recursos externos, muita assistência técnica, levando à regressão e desmoralização quando o projeto termina, com efeitos produtivos limitados, e funcionários que buscam a contratação permanente como funcionários públicos. Interessa ao país fazer novos projetos, mas mais solidamente vinculados a efeitos estruturais permanentes, e, sobretudo a efeitos produtivos a longo prazo que permitam cobrir os gastos de investimento. Buscar-se-á, portanto, a identificação de necessidades básicas da população, criando-se em torno destas necessidades básicas programas amplos de dinamização, para os quais os projetos constituirão de certa maneira pontos de apoio. Pouco adiantam projetos agrícolas isolados sem amplo programa de formação de agricultores, de abastecimento em meios de produção, em bens de primeira necessidade. De que adianta um projeto de fábrica, mesmo bem concebido, quando não inserido num programa de manutenção, de aprovisionamento em matérias-primas e peças sobressalentes, de formação profissional, de complementaridade com as atividades agrícolas?

4) um quarto ponto de orientação visa a consolidação das grandes infra-estruturas nacionais e passagem gradual para a implantação de infra-estrutura a nível regional e local, para atingir o produtor local. Foi feito, nos últimos anos, um esforço importante de implantação de certos eixos básicos de infra-estruturas. Assim, abriram-se as comunicações com o Sul tanto por Bambadinca como pelo porto de Enxudê, abriu-se o eixo este-oeste do país ao ligar por asfalto Bissau a Pitche, foi melhorada a comunicação como o Norte do país com a aquisição de ferrys. As telecomunicações ligaram as capitais regionais ao eixo telefônico automático. A energia criou melhores condições de funcionamento em Bissau, no eixo Bambadinca-Bafatá-Gabu, e em vários centros do interior. No entanto, estes esforços serão inúteis se não se empreender agora uma segunda geração de infra-estruturas, ligando diretamente a vila e o agricultor ao eixo nacional de infra-estruturas. Com efeito, os grandes investimentos de infra-estrutura realizados só se viabilizam ao provocarem efeitos positivos junto ao produtor, a cada um dos milhares de pequenos agricultores do país. Assim, é fundamental concentrar-se agora nas pequenas estradas que ligam os eixos rodoviários mais importantes com as vilas, nos pequenos portos das zonas agrícolas, nas telecomunicações rurais, nas redes rurais de comercialização, de estocagem, de assistência técnica, de abastecimento. Só com a melhoria sentida diretamente a nível do agricultor pode-se esperar uma mudança real e um estímulo à produtividade do homem do campo;

5) no setor moderno, a orientação central é de se consolidar e pôr para funcionar o parque de equipamento já instalado, antes de se criar novas unidades. Muitas fábricas foram instaladas, compraram-se centrais elétricas, ônibus, aparelhos caros e delicados para todos os setores. Hoje, este equipamento funciona num nível aproximado de 20% da capacidade instalada. Em outros termos, em cada 10 ônibus funcionam 2, uma fábrica que pode produzir 100 toneladas produz 20. Estão parados por falta de peças, por uso indevido, pelas mais diversas razões, tratores, barcos, fotocopiadoras, centrais elétricas. A orientação para o setor moderno será de organizar as empresas internamente, mas também lançar um conjunto de programas destinados a todo o setor moderno: formação profissional, organização do abastecimento em matérias-primas e peças sobressalentes, racionalização dos controles financeiros, elevação da disciplina de trabalho, melhor vinculação do setor

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com as necessidades básicas do desenvolvimento. É fácil comprar equipamento; difícil é nfrentar todas as tarefas organizativas que o tornam útil e produtivo.

e É este trabalho lento e penoso que deve ser enfrentado agora, com toda responsabilidade que decorre dos elevados gastos que o setor provoca;

6) a integração das atividades modernas urbanas com o esforço na base produtiva rural do país exige a constituição de uma série de redes de apoio ao desenvolvimento rural, visando, conforme vimos, promover a agricultura popular e levar os camponeses a tomar em mãos o seu próprio desenvolvimento. Trata-se, antes de tudo, de enfrentar o problema das redes de abastecimento da população em bens de primeira necessidade e meios de produção agrícolas, rompendo o relativo isolamento que o mundo rural sofre desde a independência, e voltando a interessar o agricultor por uma produção mais elevada e uma comercialização maior do seu produto. Trata-se ainda de organizar os serviços de crédito agrícola, associado aos centros de abastecimento em meios de produção, para que o agricultor possa iniciar a sua acumulação mesmo se não tem os recursos iniciais para o investimento. É preciso igualmente assegurar os serviços de armazenagem a nível do agricultor, da vila e da região. As perdas devidas a más condições de estocagem do produto são elevadíssimas na África, além de desestimular o produtor por não poder estocar o excedente do produto. É igualmente fundamental assegurar os serviços regulares de transporte mais densos, assegurando-se ao agricultor tanto o abastecimento como o escoamento do produto agrícola, sendo necessário, em particular, dinamizar o pequeno transporte individual, como a charrete, a bicicleta, a canoa. Enfim, é preciso realçar entre as redes de serviços de apoio ao camponês a importância do apoio técnico efetivo, dos programas de vulgarização e de formação associados ao fornecimento de meios de produção. Assim, com o reforço da produção agrícola, poder-se-á chegar a uma rearticulação do conjunto da economia;

7) será necessário realçar, como orientação do Plano, o papel da formação de quadros. Tem sido desastroso o trabalho de formação de adultos e alfabetização, enquanto a formação de bolsistas no exterior, apesar de muito útil, responde a pequena parte apenas das necessidades. Não se dinamiza um país sem um amplo esforço educativo, e o interesse das populações exige que o sistema seja efetivamente adequado às necessidades sentidas, em particular na área de formação técnica média e de vulgarização agrícola. Deverá ser particularmente dinamizada, além do ensino formal, a parte dos programas reforçados de formação em todos os projetos e programas de desenvolvimento;

8) outra orientação importante do Plano é igualmente a adaptação do aparelho do Estado às exigências do desenvolvimento. Numa economia em que o governo é mero controlador político de um sistema econômico controlado por particulares,como era o caso no país, entende-se o papel relativamente passivo e burocrático do Estado. No entanto, numa sociedade onde o governo tem que gerir, planificar e dinamizar o conjunto de forças produtivas do país, as exigências têm de ser radicalmente mais elevadas, e os servidores públicos não podem comportar-se como meros funcionários vitalícios abrigados pelos seus privilégios. A racionalização e dinamização do aparelho estatal é, portanto uma tarefa primordial. O próximo Plano, na medida em que permite coordenar os trabalhos de diversos departamentos técnicos em torno dos grandes objetivos fixados, deverá constituir um elemento de dinamização desta transformação, rompendo o relativo isolamento entre departamentos através de uma tarefa comum: a execução do Plano e a resposta às necessidades da população;

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9) os fracos meios de que dispõe a economia não permitem o seu desperdício. Neste sentido é fundamental que se reforce o conjunto do sistema de controle da economia, visando tanto a correção dos desequilíbrios herdados como a gestão racional e aplicação rigorosa dos recursos nacionais. Isto implica o reforço político do Plano, mas também o reforço e dinamização de outros órgãos de controle da economia que são o Ministério das Finanças e o Banco Central. Este controle rigoroso é fundamental também para que haja um clima sadio no país e uma justiça econômica que assegure a cada um os frutos do seu trabalho;

10) enfim, o próprio Plano, o primeiro a ser elaborado no país, torna-se atualmente o elemento agregador e organizador dos esforços ao fixar claramente os objetivos a atingir no quadriênio, e ao determinar a distribuição setorial e regional das tarefas. Assim, o reforço aos organismos de controle da economia e a racionalização das atividades de gestão econômica do Estado no seu conjunto devem levar à capacidade de elaborar o Plano, de aplica-lo e de controlar a sua execução no decorrer dos próximos anos. Os instrumentos reforçados de controle e de planificação da economia constituirão, portanto as bases técnicas para a elaboração do I Plano e os instrumentos de sua aplicação. Nada pode substituir, no entanto, a adesão mais profunda e compreensão mais completa possível das orientações e dos objetivos do Plano por quem mais pode contribuir para o seu sucesso: o trabalhador.

Auto-suficiência alimentar, objetivo nacional estratégico

As orientações assim definidas obedecem a uma análise das dificuldades atravessadas, ao mesmo tempo que constituem um passo para a construção da sociedade justa e próspera que se deseja.

Estas orientações devem, no entanto, materializar-se em objetivos que o país se propõe atingir durante os próximos quatro anos, objetivos modestos mas concretos, capazes de assegurar um avanço seguro e organizado.

Visando assegurar a participação de todos no esforço de reconstrução e assegurar a correção dos grandes desequilíbrios que o país enfrenta, propõe-se a definição de um objetivo estratégico e nacional, a auto-suficiência alimentar, complementado por dois subobjetivos: a recuperação das condições de vida em Bissau e a consolidação do setor moderno.

As páginas que seguem concentram-se na explicação desses objetivos.

A proposta central é de se fixar a auto-suficiência alimentar como objetivo estratégico e nacional do I Plano, objetivo em torno do qual se deverá assegurar a convergência do conjunto de forças produtivas da nação. O objetivo é representado pela meta concreta de 150 000 toneladas de cereais, a ser atingida no final de 1986.

A proposta deste objetivo estratégico obedeceu a uma série de considerações, entre as quais cumpre destacar as seguintes:

  1. - o Plano deve ter um objetivo estratégico nacional claro e perceptível,em torno do qual se possa mobilizar a população para o desenvolvimento, dando ao plano um caráter amplo e democrático;

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  1. - o objetivo estratégico deve interessar o conjunto da população nos seus resultados, e mobilizar a ampla maioria na sua execução;
  2. - o objetivo de auto-suficiência alimentar constitui o ponto de partida de todos os outros objetivos, pois sem alimentação condigna para todos não se pode falar em saúde, educação ou qualquer outro programa e constitui neste sentido a prioridade política.
  3. - o objetivo de aumento de produção agrícola, ao mesmo tempo que constitui um objetivo claro e concreto para a população, é suficientemente amplo para assegurar que praticamente todos os departamentos técnicos do Estado se vejam mobilizados para a sua execução, reforçando a coordenação das atividades do governo;
  4. - o objetivo alimentar, respondendo às necessidades básicas do povo, é um objetivo que permite mobilizar as fontes de ajuda externa mais importantes para o país, e cuja participação tem sido desencorajada pelos desvios recentes;
  5. - o objetivo alimentar constitui hoje uma boa forma de melhorar a situação da balança de pagamentos, face ao déficit alimentar internacional que se acentua;
  6. - sobretudo, o objetivo de aumento da produção rural visando a auto-suficiência alimentar permite mobilizar os esforços e recursos do país para o grande esquecido do subdesenvolvimento,a população rural, permitindo rearticular o desenvolvimento da cidade e do campo num processo nacional e interdependente.

Assim, o I Plano deve levar à mobilização dos esforços de todas as parcelas da população e do governo em torno da necessidade básica primordial, a alimentação.

A Guiné-Bissau cultiva cerca de 400 000 hectares, quando pode cultivar mais de um milhão, recebe quantidade razoável de água, não sendo senão parcialmente afetada pela progressão do sahel. Não há razão para que o país não se possa abastecer completamente em cereais básicos, nem justificativa para que haja um só cidadão, uma só criança passando fome.

No entanto, passar de uma fase em que importam anualmente algumas dezenas de milhares de toneladas em cereais para uma fase de auto-suficiência implica que o nível de produção aumente regular e fortemente durante os próximos anos.

Apesar de ser um objetivo diretamente vinculado com a área de atuação do Ministério do Desenvolvimento Rural, a auto-suficiência alimentar exige a concorrência de esforços de todos os departamentos, que deverão adaptar os seus planos de atividades em função dos programas de apoio à luta pela auto-suficiência alimentar.

Em termos esquemáticos, podem se identificados oito programas principais de apoio ao objetivo estratégico do I Plano: produção agrícola; abastecimento da população; serviços de apoio; infra-estruturas econômicas; serviços sociais; política econômica; controle da economia; mobilização política.

Cada Ministério, cada região, cada comunidade deverá destacar claramente as atividades que poderão desenvolver durante os próximos quatro anos para apoiar estes programas, dando-lhes total prioridade sobre as outras. Em outros termos, cada entidade do Estado deverá estudar as suas formas de contribuir o mais diretamente possível para a promoção da auto-suficiência alimentar, e apresentar estas possibilidade sob a forma de programas e projetos prioritários.

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1)Na área da agricultura, coloca-se como problema-chave o da produção. Nesta fase do desenvolvimento, o aumento da produção deverá dar-se, fundamentalmente, através de um crescimento extensivo. Antes de tudo, é preciso aumentar a área cultivada, aproveitando melhor a terra disponível. Em seguida, é necessário aproveitar o trabalho do agricultor durante a fase seca do ano. Assim, o programa da agricultura para alcançar o objetivo principal do Plano pode se traduzir em iniciativas de várias áreas:

  1. - programas de recuperação de terras inundáveis, para arroz, a fim de aumentar a área cultivável, com programas paralelos de pequenas barragens e perímetros irrigados;
  2. - generalização da tração animal, que aumenta sensivelmente a capacidade de lavoura por trabalhador agrícola, ao mesmo tempo que associa melhor a pecuária à economia rural (transporte, leite, subprodutos, adubo orgânico, acumulação individual);
  3. - generalização do uso das sementes melhoradas, devendo gradualmente elevar o rendimento por hectare. As sementes melhoradas deverão ser utilizadas para todas as culturas até o fim do quadriênio;
  4. - melhoramento do nível sanitário do gado, principal objetivo da pecuária, ao mesmo tempo que se lançam os programas de utilização produtiva do gado;
  5. - desenvolvimento dos serviços de apoio e de vulgarização, assegurando a utilização produtiva das sementes e outros meios de produção fornecidos.

2) Um programa de importância absolutamente fundamental para o objetivo de auto-suficiência alimentar é o do abastecimento das populações. É preciso definir com clareza a mudança radical que se impõe tanto na orientação como na estrutura do sistema comercial do país.

Na orientação, porque se em outros tempos a exportação do excedente rural era essencial para a promoção do lucro colonial, favorecendo-se a metrópole e as minorias privilegiadas urbanas, hoje o comércio tem por função básica pôr a serviço do produtor rural os meios de produção e bens de primeira necessidade de que este necessita. Não se deve buscar o escoamento e a acumulação comercial, e sim, prioritariamente, o abastecimento e a acumulação produtiva a nível do agricultor. O comércio é o serviço público que deve servir à acumulação de quem produz, pois é da produção e não do comércio que vem o enriquecimento do país.

Mudança também na estrutura, porque numa situação de escassez como a da Guiné-Bissau, assegurar a liberdade comercial completa significa colocar nas mãos de intermediários o poder de repartição de bens de que a população mais necessita, levando naturalmente a abusos e desvios permanentes.

Impõe-se o rigoroso controle da política de importações, para que as poucas divisas disponíveis sejam utilizadas em bens essenciais, a reestruturação do sistema comercial para que os bens cheguem a todas as regiões do país e o controle das comunidades sobre a repartição comercial, assegurando a justiça social no acesso aos bens.

3) Além da organização do abastecimento, que destacamos pela sua importância, os serviços de apoio ao desenvolvimento rural deverão incluir, conforme vimos, a formação e reforço dos organismos regionais de promoção do desenvolvimento rural, além das redes de crédito, armazenamento, transporte e assistência técnica.

4) Atingir o objetivo estratégico fixado pelo I Plano implica igualmente um grande esforço de complementação das infra-estruturas nacionais com a segunda geração de investimentos voltados para as infra-estruturas locais. Particular atenção deverá ser dada aos seguintes aspectos:

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  1. - adensamento da rede comercial, para assegurar que as principais concentrações populacionais estejam cobertas e abastecidas;
  2. - reforço das infra-estruturas de transporte, com a construção de estradas de acesso agrícola, pequenos portos etc.;
  3. - reforço das telecomunicações, com ligação entre os centros regionais e as principais vilas, visando-se uma melhoria sensível da capacidade administrativa e as economias que a telefonia rural permite;
  4. - infra-estruturas de águas rurais, a serem coordenadas entre os departamentos técnicos interessados (desenvolvimento rural, saúde, recursos naturais, obras públicas);
  5. - infra-estruturas de produção local de energia, permitindo a instalação e funcionamento de motobombas, debulhadoras e outros pequenos equipamentos agrícolas;
  6. - infra-estruturas de apoio à produção popular, incluindo os marceneiros, ferreiros, tecelões, com particular destaque para a pesca artesanal, fundamental para o equilíbrio da dieta alimentar da população.

A constituição das infra-estruturas locais e regionais tradicionalmente gera emprego e permite ampla mobilização popular, na medida em que se trata de atividades simples, com investimentos limitados e que exigem muita mão-de-obra.

5) Os serviços sociais constituem igualmente um programa importante de atividades em torno do objetivo estratégico do plano. A saúde, em particular, constitui um direito essencial estreitamente associado à auto-suficiência alimentar. O melhoramento do nível de saúde pode beneficiar-se amplamente do reforço aos programas de águas rurais, na medida em que água, higiene e saúde são programas que avançam conjuntamente.

Por outro lado, a educação deverá reforçar o conjunto de atividades vinculadas ao objetivo de auto-suficiência alimentar, dinamizando em particular a formação profissional. Mas deverá igualmente definir com maior rigor a importância da formação no conjunto das atividades econômicas, levando ao reforço dos aspectos formativos de cada projeto, qualquer que seja o seu setor técnico, e associando-se gradualmente às atividades produtivas de todos os departamentos.

A aproximação dos currículos de ensino das necessidades concretas, do "aprender para desenvolver", deverá melhorar fortemente o interesse das próprias populações pela educação. E a motivação constitui um ponto-chave de qualquer programa.

6) Além das medidas que terão de ser tomadas em diversos campos sob a orientação dos respectivos Ministérios, como agricultura, obras públicas, recursos naturais, há uma série de medidas gerais de política econômica cuja aplicação é importante para o desenvolvimento e o objetivo de auto-suficiência alimentar. Trata-se em particular de:

  1. - política de preços
  2. - política salarial
  3. - política fiscal
  4. - política de emprego

Estes diversos elementos são instrumentos importantes para se assegurar, nomeadamente, a justiça social no desenvolvimento. Preços demasiadamente baixos para o produtor rural, por exemplo, significam o mesmo que uma redução salarial significa para um operário ou um funcionário público. Estimular o produtor implica assegurar-lhe bom preço para o produto para que o dinheiro tenha valor efetivo. A política salarial é igualmente importante

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para estimular o produtor assalariado, assegurando-se a vinculação entre o salário e o produto obtido, bem como uma política racional de promoção.

A política fiscal define a parte dos recursos que devem ir, através dos impostos e taxas, para o Estado, financiando assim as despesas do governo.

Enfim, a política do emprego deverá visar particularmente a utilização da mão-de-obra rural durante os meses da seca, promovendo trabalhos de infra-estruturas com participação popular.

No quadro da política econômica, será ainda necessário assegurar a participação crescente das populações beneficiadas no financiamento dos projetos de infra-estruturas, assegurando que estes tenham existência permanente: é o caso dos poços, estradas e outras infra-estruturas cuja criação e sobretudo manutenção devem ser assumidas pelas comunidades sob pena de regredirem após o fim dos projetos.

7) Os organismos de controle da economia, em particular os Ministérios do Plano e das Finanças, e o Banco Central, deverão organizar a orientação do conjunto das atividades segundo o objetivo estratégico de auto-suficiência alimentar, ajudando em particular na definição dos projetos e programas segundo as categorias de prioridade:

  1. - projetos e programas vinculados ao objetivo estratégico do I Plano (prioridade absoluta);
  2. - projetos e programas ligados aos subobjetivos do I Plano;
  3. - projetos de estruturação e organização interna (formação, construções etc.);
  4. - projetos de longo prazo(bauxita,petróleo etc.);
  5. - projetos secundários.

As finanças e o banco deverão assegurar os recursos necessários à realização dos objetivos do I Plano segundo as prioridades definidas.

8) Enfim, atingir o objetivo estratégico do I Plano exige um amplo esforço de mobilização, organização e enquadramento que somente serão possíveis na medida em que se conjuguem os esforços do Partido, das Forças Armadas, do Ministério de Informação e Cultura do aparelho de Estado em geral.

Com efeito, organizar a população em torno da rearticulação do processo do nosso desenvolvimento significa reforçar a coesão interna, e sobretudo organizar a participação de cada um nas tarefas-chave que se apresentam.

Em muitos países em desenvolvimento, os problemas econômicos e técnicos foram confiados a especialistas, enquanto o Partido era confinado em tarefas "políticas". O resultado foi desastroso, pois da mesma maneira que durante a fase de libertação a política tinha por tarefa fundamental organizar a luta, na fase da independência tem por tarefa fundamental organizar o desenvolvimento, pondo os técnicos a serviço dos objetivos definidos. Mobilizar o povo para o desenvolvimento torna-se assim o papel chave do Partido, assegurando, para tal, que os objetivos do desenvolvimento correspondam às necessidades mais prementes da população e que tanto os esforços como os resultados sejam repartidos com justiça.

As Forças Armadas, na fase atual, constituem um dos corpos mais solidamente organizados do país, permitindo reforçar sensivelmente o papel do Estado ao reforçar a organização das populações em torno dos trabalhos de infra-estruturas: programas de autoconstrução de habitações, de construção de estadas de acesso agrícola, ajuda no escoamento de produtos etc. A associação das Forças Armadas ao esforço de luta pelo

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objetivo principal do I Plano, a auto-suficiência alimentar, virá assim continuar a tradição das Forças Armadas de se manter sempre ao lado do povo para as grandes tarefas nacionais.

Ao Ministério de Informação e Cultura caberá a tarefa-chave de organizar a informação e divulgação em torno do Plano de Desenvolvimento Econômico e Social. Tarefa semelhante poderá ser desempenhada pelos educadores, divulgando os objetivos do I Plano e os problemas do desenvolvimento, reforçando a identificação particularmente das crianças e da juventude com as tarefas do momento.

Enfim, cada departamento do Estado, na capital, nas regiões, deverá contribuir para a organização da convergência de esforços, da colaboração e solidariedade que a execução do Plano implica.

Resumindo, o trabalho de organização das capacidades produtivas em torno do objetivo estratégico, a auto-suficiência alimentar, implica a participação de praticamente todos os departamentos, além da esmagadora maioria da população, ao exigir esforços nas áreas de produção agrícola, de abastecimento, de serviços econômicos de apoio, de infra-estruturas econômicas, de serviços sociais, de política econômica geral, de controle da economia e de mobilização política.

A tarefa é grande, e o objetivo constitui uma aspiração fundamental do povo: que nenhum cidadão do país se encontre subalimentado, que seja erradicada a principal marco do subdesenvolvimento, a fome. Objetivo simples mas complexo, se considerarmos as dezenas de países subdesenvolvidos que hoje padecem de subalimentação crônica. Dez milhões de crianças morrem de fome, ano por ano, no mundo.

Mas, além da grandeza do objetivo, foi atingida uma meta essencial para a continuidade do desenvolvimento acelerado: o aprendizado da organização efetiva do povo em torno da construção nacional, arma de longe a mais importante na luta pelos objetivos maiores da sociedade.

A associação das Forças Armadas ao esforço de luta pelo objetivo principal do I Plano – a Auto-suficiência alimentar – virá assim continuar a tradição das Forças Armadas de se manter sempre ao lado do povo para as grandes tarefas nacionais.

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Recuperar as condições de vida em Bissau

O primeiro subobjetivo é a recuperação das condições de vida na cidade de Bissau, ficando definidas como metas do quadriênio o ordenamento comunitário da cidade, o saneamento básico e a implantação de um cinturão verde hortifrutigranjeiro em torno da cidade.

A definição de um subobjetivo específico para a cidade de Bissau justifica-se pelo fato de o objetivo estratégico do Plano, centrado nas atividades rurais, não ser suficientemente mobilizador para a população urbana de Bissau, enquanto outras cidades do país, de caráter mais rural, não constituem realidade tão específica.

Bissau tem hoje mais de 100 000 habitantes, e as condições de vida têm-se degradado perigosamente, em termos das condições da mais elementar salubridade, do conforto dos habitantes. Torna-se indispensável lançar um amplo programa de saneamento básico, de arborização, de arruamento e outros projetos, no quadro de um programa geral de recuperação das condições de vida na cidade.

Foram longamente debatidos, nos últimos anos, programas ambiciosos de urbanização moderna, enquanto se iam degradando as condições de acesso à água limpa, o sistema de escoamento de esgotos, as ruas e calçadas, afetando inclusive o nível sanitário da população.

Será lançado um amplo programa, centrado nas grandes obras simples, baratas e de impacto imediato sobre as condições de vida, capazes de aumentar o emprego produtivo urbano, ao mesmo tempo que permitem mobilizar a população em torno de tarefas em que sua participação direta é possível, e cujos resultados positivos será a primeira a sentir.

É indispensável definir os bairros da cidade, definir e dinamizar os comitês de bairro, organizar a população em torno das principais tarefas, com ajuda e orientação do Comitê de Estado da cidade de Bissau e dos principais Ministérios intervenientes.

Não é necessário esperar grandes obras financiadas no exterior para fazer de Bissau uma cidade mais bonita, limpa e agradável, dentro das atuais condições. Visar-se-á em particular:

  1. - organizar o abastecimento de água de toda a cidade, reforçando os programas dos recursos naturais;
  2. - organizar o saneamento básico da cidade;
  3. - recuperar ruas e calçadas;
  4. - generalizar a arborização das ruas da cidade;
  5. - organizar a diversificação alimentar através da dinamização da produção de legumes, frutas e produtos granjeiros em torno da cidade;
  6. - organizar o abastecimento dos bairros, com particular atenção para o abastecimento alimentar básico, tanto de cereais como de peixe, frutas e legumes.

Em quatro anos, é possível mudar o rosto da cidade, fazer dela um lugar de vida mais agradável e seguro.

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Consolidação do setor de empresas,

O segundo subobjetivo do I Plano de Desenvolvimento Econômico e Social é fixado para o setor moderno, em particular o das empresas industriais, que deverão organizar, racionalizar e planificar o setor, de maneira a se atingir a meta concreta de 60% de utilização média da capacidade instalada.

Esse subobjetivo obedece á orientação geral para o setor, vista acima, que define a necessidade de recuperar, consolidar e racionalizar o parque existente, assegurando a utilização produtiva do que há antes de se criarem novas unidades.

Apesar da participação relativamente mais fraca deste setor em termos de mão-de-obra, constitui a maior imobilização e o maior sorvedouro de divisas do país, sendo a sua recuperação uma tarefa de responsabilidade nacional a cargo do conjunto dos seus trabalhadores e Ministérios de tutela.

O subobjetivo atinge um conjunto de medidas, entre as quase podem ser destacadas as seguintes:

  1. - medidas interna, a nível de cada empresa: formação, organização, administração, contabilidade, disciplina, reforço das atividades orientadoras do Partido e do sindicato;
  2. - medidas externas a nível de todo o setor: formação profissional, criação de programas de importação de peças sobressalentes, de assistência técnica de manutenção, elaboração de normas salariais e de promoção, dinamização geral e promoção da planificação empresarial.

Uma comissão nacional de recuperação de empresas deverá, junto com o Ministério do Plano, assegurar a execução do 2º subobjetivo e das tarefas parciais que este implica.

Temos assim definidos a estratégia do desenvolvimento, baseada no desenvolvimento equilibrado e na interdependência entre agricultura, indústria e serviços; as orientações do plano, baseadas na prioridade do setor rural e na consolidação do setor moderno; e os objetivos concretos do I Plano, voltados para um objetivo estratégico, o da auto-suficiência alimentar, e para dois subobjetivos importantes, o da recuperação das condições de vida na cidade de Bissau e consolidação do parque empresarial existente.

Cada um destes objetivos deverá ser estudado pelos departamentos do Estádio, Ministérios, empresas, comitês da região, buscando cada um a sua forma de contribuir para os objetivos, através de amplas discussões, até se chegar a um nível de consenso que permita fazer convergir os esforços de todos para os objetivos fixados.

5 – Os meios para a execução

do I Plano

Para executar o Plano, necessita-se os meios correspondentes. Estes são os meios financeiros, naturalmente, mas são também os meios humanos, os quadros, a capacidade administrativa e mobilizadora para que os próprios meios financeiros sejam bem aplicados.

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Os meios financeiros

e a balança de pagamentos

O problema dos meios financeiros para a execução do plano implica na realidade dois tipos de problemas, já que o país faz gastos em moeda local e em divisas.

O Estado dispõe de poucos meios e o que arrecada não é suficiente para pagar sequer os salários dos funcionários públicos, sem falar nos gastos de investimento. O resultado é que o Estado se tem visto obrigado a emitir pesos para cobrir os seus gastos. Como a produção disponível não aumenta, mais moeda na praça significa uma moeda mais desvalorizada e preços que sobem rapidamente, atingindo tanto a capacidade de compra dos assalariados como a dos camponeses que vendem a preços fixados oficialmente. A desorganização econômica que resulta deste processo é evidente, com tensões crescentes para se aumentar os preços e os salários.

A solução neste campo é fundamentalmente simples, e coincide com o objetivo estratégico do Plano: aumentar a base produtiva do país. Com efeito, não há nenhuma manipulação monetária ou fiscal que permita substituir a base fundamental da moeda: o de haver produto correspondente. A desvalorização da moeda sentida em particular nas zonas de fronteira comprova este fato: sem produto em quantidade como contrapartida, a moeda é apenas papel. O problema dos recursos em pesos para o desenvolvimento transforma-se portanto numa orientação simples: os pesos serão disponíveis prioritariamente para toda atividade que resulte em aumento real da produção, ou seja, toda atividade vinculada com a busca da auto-suficiência alimentar e os subobjetivos do I Plano.

Problema bem maior é o das divisas, que não se emitem. A balança de pagamentos é e continuará a ser um dos pontos fracos. Dezenas de países subdesenvolvidos estão hoje reduzidos a uma situação de insolvência, e não há soluções milagrosas a esperar.

No entanto, é fundamental dinamizar solidamente dois eixos de exportação que podem aumentar fortemente as disponibilidades em divisas: a pesca e a madeira. A agricultura continuará a suprir divisas mas sem poder aumentar fortemente a sua participação a curto prazo, sob pena de comprometer o esforço de acumulação rural e a prioridade alimentar, que constituem o principal objetivo do próximo Plano.

No conjunto, os países que orientaram o seu desenvolvimento em função principalmente do problema da balança de pagamentos conseguiram melhorar as disponibilidades de divisas no curto prazo, mas provocaram uma desorganização da economia interna que acabou agravando a própria situação da sua balança de pagamentos a médio prazo. Em outros termos, assegurar a disponibilidade de divisas não se faz orientando o país para as exportações: pelo contrário, as exportações promovem-se ao organizar a economia em função das necessidades internas.

Assim, as orientações e objetivos definidos no presente documento e em textos oficiais parecem-nos assegurar melhor perspectiva em termos de balança de pagamentos, já que lança as bases das soluções a médio prazo.

Com efeito, devemos considerar os argumentos seguintes:

  1. - o setor alimentar constituirá, a médio prazo, área importantíssima de exportações a nível mundial, e promoção da auto-suficiência alimentar prevista

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  1. pelo objetivo estratégico do plano economizará divisas ao reduzir importações alimentares;
  2. - a política de mobilização rural, e em particular de abastecimento interno às populações, constituirá uma forma privilegiada de recuperar milhões de dólares perdidos com a exportação clandestina e emigração sazonal;
  3. - a orientação dada para o setor moderno, de racionalizar e consolidar o parque existente, sustará a enorme sangria de divisas que os investimentos modernos exagerados têm provocado, sem contrapartida em produtos;
  4. - a orientação da economia para as necessidades básicas da população recuperará muito do prestigio do país junto às fontes de financiamento que são as mais importantes para nós, ou seja, as que fornecem ajuda bilateral e multilateral em condições particularmente favoráveis;
  5. - a orientação para a racionalização das importações e financiamentos por programas permitirá reduzir sensivelmente os enormes desperdícios que se têm verificado nesta área;
  6. - a própria orientação do desenvolvimento, baseada na busca de um nível mais elevado de produção rural, reduzirá sensivelmente perdas como as dos projetos de Cumerê, auto-estrada e outros projetos que custaram e custam milhões de dólares.

Assim, na impossibilidade de encontrar soluções milagrosas e a curto prazo para este problema que é estrutural, buscar-se-á equilibrar a situação herdada e reforçar as medidas de base, expressas nos objetivos do I Plano, que permitirão desenvolver a base produtiva interna, reduzir a dependência externa e sair do ciclo da busca de financiamentos em condições cada vez mais onerosas.

Os meios humanos

Mais grave e complexo que o problema financeiro é o problema dos meios humanos do desenvolvimento, dos quadros, da mão-de-obra especializada, da generalização de determinados conhecimentos técnicos.

Durante os primeiros anos da independência, o problema foi grave a ponto de tornar extremamente difícil qualquer iniciativa mais ampla por parte do Estado. Hoje, com a volta dos primeiros bolsistas, com um mínimo de formação nas áreas de economia, direito, secretariado, saúde, já se pode pensar em dinamizar o próprio processo de formação de quadros. Quem não se lembra do grande projeto de escola de formação de professores, financiado e parado: é simples financiar o equipamento, mas quem formará os professores?

A experiência de outros países indica que se trata da área que mais lentamente avança, mas também da área que mais frutos traz a longo prazo.

Enquanto se dinamizam os programas de formação de quadros, deve-se, no entanto organizar os programas de desenvolvimento em função dos quadros que existem. Não adianta importar um trator quando não há mecânicos suficientes, mas pode-se perfeitamente generalizar a tração animal com os ferreiros do país, assegurando a sua manutenção.

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É igualmente contraproducente concentrar os poucos quadros formados para realizar um empreendimento avançado: melhor estará o quadro dando assessoria aos próprios agricultores, multiplicando os seus conhecimentos, formando quadros que formarão outros.

Em outros termos, além de dinamizar a formação profissional, deve-se melhorar a política de utilização de quadros.

E frente ao problema da utilização de quadros encontramo-nos com um problema-chave das estruturas do desenvolvimento: a fraqueza das estruturas de enquadramento no interior do país. Um grande esforço deverá ser feito nesse sentido, para que cada região tenha o seu organismo de promoção do desenvolvimento, permitindo uma utilização racional dos melhores quadros rurais que, mesmo com pouco nível de formação técnica, dispõe de uma grande capacidade de organização e mobilização, sobejamente demonstrada no tempo da luta.

Assim, é preciso voltar-se para o problema das estruturas de enquadramento do desenvolvimento, ponto-chave tanto para a formação como para a utilização correta dos quadros.

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CONCLUSÃO

É grande a tarefa com que se defronta a Guiné –Bissau. Durante os próximos quatro anos, sem resolver todos os problemas do país, o governo enfrentará a principal; chegar a erradicar a fome, etapa-chave e ponto de partida para objetivos ulteriores. Simultaneamente, desenvolver um grande esforço para recuperar as condições de vida da capital e recuperar as condições de funcionamento do setor moderno.

Pela primeira vez desde a independência, lançar-se-ia um esforço geral e organizado em torno de um objetivo nacional, capaz de mobilizar toda a população.

E é este o caminho, pois a reconstrução, mais ainda do que a luta, exige a coesão do povo em torno dos objetivos escolhidos. O sucesso representará vantagens para todos e depende do esforço de cada um, agricultor ou operário, funcionário público ou comerciante, homem ou mulher, velho ou criança.

A luta foi longa, e o povo foi capaz de vencê-la. O desenvolvimento levou a desvios, e é preciso corrigi-los. A construção de uma economia e de uma sociedade próspera e livre foi conseguida por outros povos, e aqui também existem as capacidades necessárias e a vontade de vencer as dificuldades. Nisto estava o sentido da luta, e hoje o sentido do trabalho: deixar aos filhos um país melhor.

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POST SCRIPTUM

Aí estão soluções propostas, análises das dificuldades. Como poderá reagir a elas o economista, o técnico brasileiro? Achará ridículas dificuldades medidas em milhões de dólares, quando as nossas se medem em bilhões, objetivos fixados em fábricas específica e não em grandes setores industriais?

Ou pensará que a Guiné-Bissau, filha de um movimento de luta popular pela independência, definirá rapidamente o seu programa de ação, este ou outro, e avançará de punho erguido na direção do crescimento e da independência econômicos?

Neste mês de março, o sol da manhã esconde-se atrás de uma névoa seca. Junto dos cajueiros carregados, rolinhas como as nossas, mas africanas, ciscam o chão. Os gigantescos poilões erguem os seus braços nus, à espera do novo ciclo verde que breve recomeçará. As suas sementes inundam a cidade, baixando graciosamente nos seus pára-quedas de algodão, a minúscula semente protegida no centro.

A realidade, de certa forma, tem o seu ritmo.

Apressados, somente as centenas de conselheiros, assistentes técnicos e vendedores internacionais, impacientes de ocidentalização, impacientes de reprodução, por cada país, do caminho trilhado por outros.

A importância deste pequeno país surge, sem dúvida, das suas próprias características. Um pedaço da parte mais pobre da humanidade tenta erguer-se por si mesma. E esta parte mais pobre são 80 por cento do Brasil, da Índia, e de tantos outros países subdesenvolvidos, formando os cerca de dois bilhões de habitantes pobre do sistema Norte-Sul em que o capitalismo se trancou.

Esta importância não escapa à vista das grandes instituições internacionais. Neste momento em que escrevemos, uma sólida missão do FMI terminou seus trabalhos na Guiné-Bissau, afinando o seu leque de propostas – com a proposta central, como sempre – de desvalorizar a moeda: o país exportará mais, a custo menor, para os países desenvolvidos, deteriorando mais ainda os já absurdos termos de troca. O Banco Mundial entregou há pouco os três volumes de estudo econômico da Guiné-Bissau, base para programas futuros. A missão Saraiva Guerreiro, com programas de vendas das multinacionais do Brasil na pasta, acaba de passar.

No centro destas atividades, a compreensão de que três quartos do mundo capitalista são compostos de uma realidade próxima da Guiné-Bissau. Hoje em dia, com o profundo entrosamento econômico internacional, nem os países ocidentais industrializados, nem os semi-industrializados como Brasil e México, nem os países pobres deixam de ser elos de um mesmo processo, onde já não há soluções para uns sem soluções para os outros.

O legado romântico do movimento de libertação, de nomes mágicos como o de Amílcar Cabral, tende a levar-nos a pensar no país como num oásis de racionalidade econômica e política. A própria corrupção que se constata tende a levar-nos a pensar em experiências puras, limpas, honestas.

Na Guiné-Bissau, dezenas de embaixadas trabalham dia e noite numa luta surda por cada centímetro quadrado de espaço político, as multinacionais esbanjam milhões em esforços de corrupção, representantes arrogantes impõem as condições que vinculam a "ajuda". Nenhum país é uma ilha, e muito menos a Guiné-Bissau. Os seus dirigentes descobrem lentamente – e talvez tarde demais -, a intensidade deste combate desigual.

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Combate desigual e ambíguo, porque os protagonistas deste jogo querem todos que o país se desenvolva, progrida: o Brasil, para poder vender o produto das suas multinacionais, os países do Norte, para estender o seu modelo, os americanos, para conter os bolcheviques pretos que imaginam atrás de cada árvore, e para vender a sua tecnologia. Nas ante-salas ministeriais, dezenas de representantes se acotovelam, esperando a sua hora de apresentar num papel as suas soluções para o país.

A ambigüidade do próprio país e das suas decisões não é alheia à luta sem tréguas que nele desenvolvem forças maiores, e bem o sabem os seus dirigentes que já não procuram os eu próprio caminho, e sim o compromisso viável.

E a problemática que acaba centralizando os esforços e os debates passa, mais uma vez, longe da enorme massa camponesa que toda manhã se espalha pelos campos para fertilizar a terra.

Muito financista brasileiro, menos informado, olha com comiseração para um país que solicita ridículos 200 milhões de dólares à comunidade financeira internacional. Mas a diferença estará na quantidade?

Entre as piruetas financeiras do Brasil, do México e da Argentina, e os dramas apresentados por representantes africanos e asiáticos, desponta uma realidade comum, de economias monstruosamente deformadas e desadaptadas, excrescências desastradas do potente movimento modernizador do ocidente industrializado, frutos de um grande erro histórico, o de que o cobertor que serve para as economias ricas e industrializadas do Norte serve para todos, de que o caminho pode ser o mesmo.

A busca das estratégias alternativas de desenvolvimento toma assim um relevo particular: as alternativas podem ser mais ou menos realistas ou aplicáveis, mas a busca é de todos nós.

A problemática da crise pode ser vista como fato conjuntural, dando lugar à busca do elemento que "atrapalha" o funcionamento de uma máquina capitalista que funcionou durante trinta anos com raro dinamismo. Estuda-se assim o eterno grupo de elementos-chave: o nível dos salários, as taxas de investimentos, de juros e de câmbio, o nível das exportações e da demanda interna.

Já não é, no entanto, com medidas monetárias, com desvalorizações, com regulamentações, que se resolverá o problema dos desequilíbrios estruturais acumulados durante a fase pós 1945.

A problemática geral não resulta do fato de haver uma ampla maioria de países que ainda não se desenvolveram, e sim do fato do desenvolvimento destes países se ter dado de maneira deformada. E a busca da reorientação econômica que permita definir novos caminhos de um desenvolvimento equilibrado é problemática central para todos.

Por detrás das imensas dificuldades que enfrenta a Guiné-Bissau para imprimir uma racionalização diferente ao seu desenvolvimento está, portanto, esta outra questão-chave: que espaço há para alternativas de modelo de desenvolvimento dentro do contexto internacional vigente, dentro da chamada "ordem econômica internacional" criada a partir de Bretton Woods e hoje totalmente ultrapassada?

A Guiné-Bissau busca sem dúvida um outro desenvolvimento, mais justo, baseado no mercado interno, adequado às suas necessidades reais. Mas o conjunto dos meios financeiros e materiais deste desenvolvimento vêm de uma máquina internacional rodada para promover a extraversão econômica, a implantação de multinacionais, a monocultura de exportação.

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Entre a sua forma de vinculação internacional e as suas opções internas, a Guiné-Bissau encontra cada vez menos espaço. O financiamento externo, a tecnologia importada, aparecem como soluções mais fáceis e mais rápidas para o desenvolvimento. Nem os financiamentos, no entanto, nem a tecnologia são neutros. Com os meios, vêm os fins. E estes fins importados raramente coincidem com os objetivos da população.

INDICAÇÕES DE LEITURA

Apesar do país ser pequeno, a sua importância política, como enclave progressista e de expressão portuguesa num mundo de influência colonial francesa, levou à produção de numerosos estudos. Os textos mais importantes são evidentemente, os do próprio Amílcar Cabral, podendo ser utilizada a excelente seleção feita pelo angolano Mário de Andrade Amílcar Cabral – Obra escolhida, em dois volumes, sendo o primeiro "A Arma da teoria" e o segundo "A prática revolucionária" editados pela Seara Nova em 1978. Basil Davidson escreveu uma as melhores histórias do processo de libertação da Guiné-Bissau, no seu A Libertação da Guiné, editado pela Livraria Sá da Costa em Lisboa, 1979. Para quem queira ter uma visão mais ampla, inclusive bibliografia, da região oeste africano, há o livro de Catherine Coquery Vidrovitch e H. Moniot, A África negra de 1800 a nossos dias, editado em espanhol pela Labor, Barcelona, 1976. Para quem se interessar pelo conjunto dos cinco países africanos de expressão portuguesa, há o excelente livro de Armando Castro, O sistema colonial português em África, Editorial Caminho, Lisboa, 1980. Mais recentes e específicos, o Cartas à Guiné-Bissau, de Paulo Freire, editado pela Paz e Terra em 1978, e o livro Diário da Libertação, de Licínio Azevedo e Maria da Paz Rodrigues, Editora Versus, com prefácio de Florestan Fernandes, 1977. Enfim, há o nosso Geografia da Guiné-Bissau, texto que debate essencialmente os dados da economia e as estratégias alternativas de desenvolvimento, editado pelo Ministério do Plano em Bissau, 1980. Qualquer estudo mais aprofundado da Guiné-Bissau terá de partir, no entanto de uma bibliografia abrangente preparada por Carlos Lopes, com cerca de 1 000 títulos, incluindo obras e artigos posteriores a 1960: este trabalho está em fase de edição, podendo ser obtidas cópias junto ao Centro de Informação Amílcar Cabral, Secretaria de Estado do Plano, Bissau, Guiné-Bissau.

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