Cumplicidade conspirativa

 

 

Por: Fernando Casimiro (Didinho)

26.11.2005

Nota introdutória

Preocupa-me o rumo dos acontecimentos na Guiné-Bissau.

Preocupa-me cada vez mais, a caminhada para a reimplantação (consciente) da ditadura no país, que, acelerada e objectivamente, está a alastrar os seus tentáculos no sentido do posicionamento e consolidação dos seus ideais e das suas estruturas.

Reimplantação consciente, porquanto a interpretação teórica quer dos ideais da democracia, quer da caracterização de uma ditadura, estar ao alcance de uma análise básica e realista por parte dos guineenses que, ao ficarem indiferentes ao evoluir da situação, estão uma vez mais, a ser cúmplices dos atropelos e desgovernos do país e, portanto, submissos ao sistema.

O país habituou-se à estratégia da argumentação dos números do analfabetismo para sustentar uma diversidade de lacunas que continuam a entravar, no geral, a mudança de mentalidades e, consequentemente, de comportamento, dos guineenses.

A falta de uma formação de base, particularmente quanto ao conceito de cidadania é, naturalmente, uma das causas que tem atrofiado a caminhada da Guiné-Bissau rumo à meta da paz, da estabilidade e do desenvolvimento.

A cultura da cidadania deve ser semeada e cuidada para depois se poder fazer a respectiva colheita. Esta cultura, deve ser incutida quer ao camponês da aldeia mais remota e que provavelmente pode ser um analfabeto, quer a um Professor Doutor que comodamente se encontre a residir na capital, convencido de que a sua formação académica específica lhe atesta igualmente a formação referente à área da cidadania, dispensando-o da sua aprendizagem.

A cultura da cidadania orienta-nos para 2 princípios essenciais (pontos de partida) numa multiplicidade de situações e em função da nossa própria representação e participação como cidadãos de um país que devemos orgulhar de ser nosso: o princípio dos direitos e o princípio dos deveres.

É urgente promover e debater o espírito de cidadania, avaliar as interpretações dos pressupostos dos direitos e dos deveres do cidadão, como forma de se alicerçar as estruturas do país numa perspectiva de equidade na  participação e responsabilização dos guineenses para a construção do país que os viu nascer.

 

 

"A Constituição da República da Guiné-Bissau foi aprovada e adoptada como Lei fundamental (16. 05.1984) pela Assembleia Nacional Popular, agindo como intérprete fiel da vontade do povo e no exercício das responsabilidades que lhe cabem como órgão máximo da soberania."

 

A morosidade na avaliação, decisão e oficialização pelo Supremo Tribunal de Justiça do pedido de impugnação entregue pelo PAIGC  e referente à nomeação de Aristides Gomes, por Nino Vieira, como novo Primeiro Ministro da Guiné-Bissau, fomenta a cumplicidade conspirativa deste órgão de soberania nos bastidores do jogo do poder.

Nenhum assunto pode ser mais importante para o país do que a definição e clarificação de conflitos entre os órgãos de soberania definidos pela Constituição da República.

Com base nisso, e porque a competência na matéria judicial recai sobre o Supremo Tribunal de Justiça, a crise político-institucional provocada pela decisão de Nino Vieira, presidente da República da Guiné-Bissau (o que não significa ser presidente de todos os guineenses) em demitir o governo legítimo saído das fileiras do PAIGC e chefiado por Carlos Gomes Jr. deveria ser tomado em conta como a urgência das urgências pelo STJ.

O país esteve 13 dias sem governo, numa atitude de ajuste de contas, de vingança pessoal de Nino Vieira contra Carlos Gomes Jr.

Uma atitude que paralisou e prejudicou o país, como que se de um património pessoal de Nino Vieira se tratasse.

Há quem diga que a nossa Constituição não é clara em muitos pontos. Concordo, mas, é a Constituição que temos sobre a mesa e é com ela que temos que trabalhar.

 As leis podem suscitar uma infinidade de interpretações, na medida em que: conforme os interesses, assim o oportunismo e, portanto, o aproveitamento das interpretações.

No entanto, face aos argumentos de Nino Vieira para demitir o governo de Carlos Gomes Jr. a situação não é tão dúbia quanto se está a fomentar, nitidamente no sentido de manipular consciências e legitimar uma ilegalidade.

Vejamos o que diz a Constituição da República:

ARTIGO 69°

 

1 -       Compete ainda ao Presidente da República:

 

a)      Dissolver a Assembleia Nacional Popular, em caso de grave crise política, ouvidos o Presidente da Assembleia Nacional Popular e os partidos políticos nela representados e observados os limites impostos pela Constituição;

 

b)      Demitir o Governo, nos termos do nº 2 do artigo 104° da Constituição

 

ARTIGO 104°

 

1 -       Acarreta a demissão do Governo:

 

a)      O início de nova legislatura:

 

b)      A não aprovação pela segunda vez consecutiva do Programa do Governo;

 

c)      A aceitação pelo Presidente da República do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro;

 

d)      A aprovação de uma moção, de censura ou não aprovação de uma moção de confiança por maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções;

 

e)      A morte ou impossibilidade física prolongada do Primeiro-Ministro.

 

2 -       O Presidente da República pode demitir o Governo em caso de grave crise política que ponha em causa o normal funcionamento das instituições da República, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos políticos com assento parlamentar

 

 

 De forma bem explícita relaciona-se a demissão do governo pelo Presidente da República, com a dissolução da própria Assembleia Nacional Popular, em caso de grave crise política.

Não podemos nos esquecer de que a Assembleia Nacional Popular é fruto das eleições legislativas e, é com base nos resultados obtidos pelos Partidos nessas eleições que se distribuem os lugares aos deputados da Nação.

Se os argumentos do Presidente fossem consistentes ao ponto de se legitimar a demissão do governo, obviamente que a Assembleia Nacional Popular teria que ser dissolvida, ficando em funcionamento a sua Comissão Permanente, com competências específicas designadas para esta eventualidade, isto para além do próprio governo demitido, que passaria a governo de gestão até à realização de novas eleições e tomada de posse do governo saído dessas eleições.

O país não estava a viver nenhuma grave crise política a não ser as fomentadas pelo desejo de vingança de Nino Vieira.

Houve demissão de um governo legítimo, houve um vazio de governação durante 13 dias, houve uma usurpação de poderes por parte de Nino Vieira com a agravante da demonstração de uma atitude de força através de ordens expressas às Forças Armadas do país para reforço e garantia da sua decisão inconstitucional.

Demitiu-se um governo e a Assembleia Nacional Popular continuou em funcionamento, tendo inclusivamente na sua Presidência um militante do PAIGC, Partido com maior número de assentos na Assembleia.

De referir igualmente que o Presidente da Assembleia Nacional Popular é a segunda figura na hierarquia do Estado.

Numa perspectiva de congregação de esforços e de vontades em defesa dos interesses da Nação, o Presidente da República na qualidade de elemento conciliador, deveria ouvir os restantes Órgãos de Soberania antes de se decidir pela demissão do governo, até porque, O ARTIGO 85º  da Constituição nas competências da Assembleia Nacional Popular e na alínea o) refere o seguinte:

Compete à Assembleia Nacional Popular:

o)      Zelar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os actos do Governo e da Administração

Portanto, a haver grave crise política, essa crise seria detectada no funcionamento da própria Assembleia Nacional Popular e feita chegar ao Presidente da República que, usando do seu papel conciliador, deveria, em primeiro lugar, tentar arranjar soluções consensuais a bem do país e nunca o inverso, como aconteceu.

Posto isto, e porque quanto mais tempo se ficar a aguardar pela decisão do STJ, a consumação de uma inconstitucionalidade dará corpo a alterações do programa de governação até então conduzidos pelo governo demitido, e com resultados positivos, por programas de recurso de um governo nomeado de forma inconstitucional e, portanto, sem consentimento do povo guineense.

Ao Supremo Tribunal de Justiça, exige-se uma actuação célere e imparcial sobre o pedido de impugnação feito pelo Partido vencedor das eleições legislativas de 2004.

À Assembleia Nacional Popular, exige-se o zelo pelo cumprimento da Constituição.

Ao povo guineense, requer-se o uso do seu direito de cidadania.

A bem do país, pela legalidade, contra a impunidade.

Democracia sim. Ditadura não!

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