A Revitalização do Poder Tradicional

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Etnográfica, Vol. IV (1), 2000, pp. 37-59
A REVITALIZAÇÃO
DO PODER TRADICIONAL
E OS REGULADOS
MANJACO DA GUINÉ-
-BISSAU
1
Na Guiné-Bissau, após a destituição dos régulos
e dos regulados em nome da construção do
estado-nação, no período que se seguiu à
independência, estes voltaram a ser invocados
nos anos 90 enquanto as cerimónias de
entronização se sucediam por todo o país.
Actualmente o fenómeno da revitalização do
poder tradicional é comum a numerosos países
africanos, em particular na África Ocidental.
Contra muitas das expectativas dos observadores
da realidade africana, sobretudo no período que
sucedeu de imediato às independências e à
criação dos novos estados africanos nos anos 50 e
60, os chefes tradicionais não desapareceram.
Pelo contrário, tornaram-se figuras proeminentes
em contextos muito diversos. Neste texto é
abordado o fenómeno da revitalização dos
regulados guineenses, partindo de um caso
específico, o dos régulos manjaco do sector de
Caió, região de Cacheu, procurando inseri-lo no
contexto mais vasto de renovação do poder
tradicional na África Ocidental.
E
m Abril de 1987 Paulino Gomes, Director dos Correios Nacionais da
Guiné-Bissau e membro do Partido Africano para a Independência da Guiné
e Cabo-Verde (PAIGC),
2
foi entronizado como soberano de Caió em Belabate,
sector de Caió, região de Cacheu, República da Guiné-Bissau. Esta cerimónia,
que consistiu na primeira entronização realizada após a independência do
país em 1974, foi objecto de invulgares manifestações de apoio popular e de
uma importante cobertura mediática
3
, apesar de ser encarada com suspeita
e mesmo desagrado pelas autoridades governamentais e pelo sector
intelectual do país. Contudo, em breve o carácter inusitado que a realização
desta cerimónia pareceu assumir veio a alterar-se. Instigado por pressões
internas e externas
4
, que tiveram como consequência directa a instituição do
Clara Carvalho
1
Este artigo baseou-se numa investigação efectuada na Guiné-Bissau, em diferentes estadias realizadas entre 1992 e
1997, financiada pelo ISCTE, pela JNICT e pela Fundação Calouste Gulbenkian, instituições a quem expresso a minha
gratidão. Para a elaboração deste texto agradeço em particular o apoio de António Míel, Ocante Adjibane, Paulino
Gomes, Pedro Mango e Pocam Caiek, meus interlocutores no terreno, e as indicações bibliográficas de Fernando
Florêncio e João Leal.
2
O PAIGC liderou a guerra pela independência (1963-1974) e foi, de 1974 a 1991, data da institucionalização do
multipartidarismo, o partido único da Guiné-Bissau. Nas primeiras eleições legislativas e presidenciais, realizadas em
1994, o PAIGC manteve a primazia que viria a perder nas eleições de 1999.
3
Todo o processo foi difundido pela rádio e pelos jornais, uma vez que a televisão só se implantou nesse país em
1990.
4
Segundo Peter Karibe Mendy, para a instituição do multipartidarismo concorreram três factores determinantes: “a
erosão institucional e a instabilidade política; a crise económica; e a pressão dos doadores num contexto de um clima
internacional favorável” (Mendy 1996: 14). A recusa do Banco Mundial em manter a ajuda económica ao país se não
fosse iniciado um processo de democratização política, à semelhança da pressão exercida na mesma altura sobre
numerosos outros estados africanos (Chabal 1996: 44), revelou-se decisiva.
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multipartidarismo votada na Assembleia Nacional Popular em Maio de 1991,
o governo passou a aceitar novas formas de associação política e a sua livre
expressão, sob a forma de partidos ou outras. Uma das consequências desta
fase de “transição política” (Cardoso 1996: 138) foi a creditação dos régulos,
designação local dos herdeiros dos pequenos reinos pré-coloniais que havia
sido vulgarizada durante o período colonial para referir qualquer detentor
do poder tradicional.
5
Esta política de abertura conduziu à realização de
numerosas entronizações um pouco por todo o país ao longo da década de
90, embora fosse encarada como uma manobra de busca de apoio junto das
populações locais e de instigação de movimentos de identidade étnica – que
se procuravam combater desde a independência
6
– tanto pelos partidos da
oposição como dentro do PAIGC, e ainda por representantes de sectores
intelectuais bissaenses. Ressalve-se que o fenómeno de revitalização dos
regulados não teve uma repartição uniforme pelo país: entre as populações
islamizadas, que representam cerca de um terço da população nacional, a
esfera de influência dos régulos foi substituída pela das autoridades
religiosas
7
, enquanto no restante meio rural os detentores de cargos de
numerosos regulados de origem pré-colonial e mesmo colonial voltaram
timidamente a manifestar-se.
O ressurgimento da instituição dos chefados é actualmente um fenó-
meno alargado em África, possuindo “novas funções” e obedecendo a lógicas
que devem ser entendidas contextualmente. A partir da década de 80
tem-se vindo a assistir a um significativo movimento de recuperação de
chefados e reinos de origem pré-colonial, colonial ou mesmo pós-colonial.
Neste texto serão abordados alguns dos aspectos relacionados com a
revitalização do poder tradicional na Guiné-Bissau. Partindo da inserção
deste fenómeno no contexto mais vasto da África Ocidental, procurarei
5
Embora as primeiras utilizações do termo régulo pretendessem minorar a figura dos soberanos locais, cujos reinos
raramente ultrapassavam os dois ou três milhares de pessoas, actualmente trata-se de um termo desprovido das
conotações pejorativas originais. A referência a régulos ou reis, enquanto manifestações de poder local no interior de
uma estrutura política estatal sentida como hegemónica, não é pacífica e exige uma definição prévia. Pela designação
de poder local não se refere, ao longo deste texto, uma estrutura administrativa, segundo uma definição normativo-
jurídica aplicada ao conjunto de um território e inserida na lógica de organização do estado, mas sim estruturas
orgânicas consolidadas historicamente baseadas em práticas consuetudinárias. Trata-se, pois, de práticas de gestão
colectiva enraizadas nos hábitos locais segundo regras autónomas em relação ao estado (colonial ou independente).
Os atributos deste poder local podem incluir, além de responsabilidades na administração territorial, as que se
relacionam com o arbítrio sobre questões de ordem social e divisão fundiária, incluindo funções judiciais, como veremos
posteriormente. Por questões essencialmente de ordem estilística é, por vezes, utilizado o termo poder tradicional para
referir os órgão incluídos no poder local, ou seja, os chefados e regulados organizados segundo regras costumeiras.
Esta nomenclatura pode induzir em algumas confusões, uma vez que não se entende estas formas de poder como
“tradicionais” mas como aquelas que se autolegitimam recorrendo à noção de tradição, cujos limites e manipulação
foram abordados em Clara Carvalho 1999.
6
A independência da Guiné-Bissau foi declarada unilateralmemte em 1973 e reconhecida por Portugal, a potência
colonizadora, em 1974.
7
Eduardo Costa Dias, comunicação oral, 1999.
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relacioná-lo com outros aspectos da revitalização da tradição. Finalmente serão
analisadas as actuações dos soberanos locais na Guiné-Bissau enquanto
experimentações políticas, ilustradas pelo estudo das actuações de alguns dos
régulos do sector de Caió.
Chefes e soberanos na África Ocidental contemporânea
Em todo o continente africano e, em particular, na África Ocidental, o fim
dos regimes coloniais caracterizou-se como uma época de contestação do
poder tradicional, a que se seguiu, paradoxalmente, o reavivar da instituição
em numerosos contextos. Esta contestação apontava para a associação inte-
resseira entre os representantes do poder local e as diferentes administrações
coloniais as quais procuravam, por seu intermédio, obter o controlo da
população. Convém lembrar que, embora o estabelecimento de uma hege-
monia europeia se baseasse na supremacia de meios técnicos militares, os
recursos humanos utilizados foram muito limitados, pelo que a adminis-
tração exógena só pôde impor-se recorrendo a alianças perversas com as
populações locais. Como interlocutores e intermediários procuraram-se as
personalidades que mais se aproximavam da administração colonial, com as
quais o diálogo era possível e que fossem, em simultâneo, representantes do
poder tradicional. Em alguns casos as autoridades tradicionais foram cons-
trangidas a colaborar, noutros a procura de elementos que apoiassem, ou se
enquadrassem no novo sistema dominante, conduziu à designação de novos
titulares, independentemente da sua legitimação pelo direito costumeiro. Em
todas as situações valorizou-se a lealdade à administração colonial, a
capacidade administrativa e de comunicação com a potência colonizadora
dos candidatos, relativamente à sua legitimidade no quadro de um sistema
político local desconhecido e/ou ignorado (Barnes 1996: 25).
A política de reenquadramento dos antigos chefes tradicionais, da
indigitação de novos titulares e da criação de chefados, bem como da sua
integração no sistema administrativo colonial que, inclusive, transformou os
chefes em seus assalariados, foi seguida pelas diversas potências coloniza-
doras da África Ocidental (Crowder 1964). Uma das consequências desta
política administrativa consistiu na minoração da figura dos pequenos chefes
locais face à valorização dos chefes principais
8
e, sobretudo, na transfor-
mação dos dignatários locais em funcionários do estado. Neste aspecto, as
administrações francesa e britânica diferiram menos do que deixam supor
os termos de “administração directa” e “administração indirecta” habitual-
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Para a administração colonial britânica, que estabelecia uma ordem hierárquica precisa para os representantes do
poder autóctone, esta figura corresponde aos paramount chiefs.
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mente aplicados, respectivamente, à primeira e segunda formas de controlo
(Barnes 1996, Piault 1987, Suret-Canale 1980). O papel de intermediários
representado pelos chefes durante o período colonial, mesmo que destituídos
de poder, veio a revelar-se determinante para o seu afastamento nos novos
estados independentes.
No contexto da nova ordem mundial criada após a 2.ª Guerra
Mundial preparam-se os processos de independência dos países africanos,
que viriam a concretizar-se nos anos 50 e 60 (constituindo o caso português
uma excepção). Na África Ocidental uma das consequências das reformas
administrativas então empreendidas consistiu na substituição dos chefes
locais por funcionários administrativos, habitualmente recrutados entre os
membros da elite escolarizada nacional e inseridos numa nova lógica de
estado (Bayart 1989, Suret-Canale 1980).
Esta tendência acentuou-se após a independência, quando os novos
países procuraram criar estados-nação que ultrapassassem as divisões locais.
Os exemplos sucederam-se por toda a África Ocidental: na Guiné-Conacri,
depois de um período de manipulação dos chefes tradicionais pela adminis-
tração colonial, que tivera uma influência directa na indigitação e empos-
samento de muitos deles e lhes atribuíra, inclusive, uma remuneração oficial
(desde 1934), a instituição foi definitivamente abolida em 1957 e considerada
“ineficaz” (Suret-Canale 1980: 210-212); na Nigéria, nos anos que se seguiram
à independência, foram retiradas as prerrogativas dos chefes tradicionais
(Barnes 1996: 27), fenómeno que Jean-François Bayart considerou esten-
der-se a todos os novos estados africanos (Bayart 1989: 215). Todavia, decor-
ridas quatro décadas sobre os processos de independência, e contrariando
as expectativas desse período, tem-se vindo a assistir à renovação de
chefados de origem pré-colonial, colonial ou mesmo à criação de novos
chefados em numerosos países da África Ocidental.
Para van Rouveroy van Nieuwaal, que tem vindo a dedicar-se ao
estudo das autoridades tradicionais na África Ocidental, nomeadamente no
Togo e no Gana (van Dijk e van Nieuwaal 1999; van Nieuwaal 1999), estas
representam uma ligação única entre o estado e a sociedade civil. Os chefes
possuem uma dupla base de poder, por um lado o que lhes advém do seu
envolvimento em projectos de desenvolvimento ou de implantação de
políticas estatais e, por outro, o que decorre da sua legitimação num
enquadramento sociocultural local (o direito costumeiro). O autor valoriza o
papel de intermediários entre os interesses do estado e os da população que
os chefes assumem, reconhecendo a ambiguidade da sua posição face ao
estado, uma vez que a sua actuação é controlada pela legislação e meios
estatais, conquanto o estado procure obter alguma da sua legitimação através
dos chefes. Reiteradamente, van Rouveroy van Nieuwaal tem vindo a referir
o papel de funcionários estatais que os chefes assumem em alguns contextos
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africanos, considerando que estes representam uma tentativa de criar novas
formas de governo face à inaplicabilidade dos modelos democráticos
(van Nieuwaal e Ray 1996). No entanto, os seus textos não desenvolvem a
problemática da legitimação local dos chefes e autoridades tradicionais e a
sua explicação sobre o processo de revitalização da tradição, enquanto
um meio de suplantar as deficiências do regime democrático, é limitada. As
características dos processos endógenos de legitimação das chefaturas no
contexto actual são reveladas de forma mais explícita noutros trabalhos sobre
os contextos ganiano e nigeriano.
Sandra Barnes apresenta uma nova perspectiva ao considerar que, na
Nigéria e nos Camarões, a vitalidade da instituição se prende com o prestígio
a ela associado, independentemente de se tratar de uma chefatura de origem
pré-colonial, colonial, ou mesmo pós-colonial (Barnes 1986 e 1996: 20). Em-
bora destituídos de poder político no quadro da nova organização admi-
nistrativa, os chefes titulares possuem um património simbólico derivado tanto
do prestígio do seu estatuto como dos rituais pelos quais são responsáveis,
e/ou dos quais são sujeitos, o qual é utilizado para aumentar o seu poder
efectivo,
9
tornando-se os representantes das aspirações da população local,
bem como os principais intermediários entre estas e o aparelho político
nacional. Estes cargos são, em consequência, alvo de uma feroz concorrência
expressa na selecção dos candidatos, privilegiando-se os que detêm poder
e prestígio no quadro do aparelho estatal. A escolha é sancionada a poste-
riori em termos de direitos de sucessão, pelo que os conflitos potenciais em
torno dos candidatos se traduzem habitualmente no questionamento da sua
legitimidade genealógica. O mesmo acontece no Gana, onde se encontram
chefados de origens e dimensões variadas, desde os que foram instituídos
pela administração britânica no início deste século (noroeste do território)
aos herdeiros dos grandes reinos Akan do sul, dos quais os Asante são um
exemplo. Entre os primeiros, Carola Lentz caracteriza a selecção dos candi-
datos como privilegiando aqueles que pertencem em simultâneo a famílias
com direitos de sucessão e às elites locais no período da instituição dos
chefados, ou ainda às elites nacionais na actualidade (Lentz 1997). Por seu
turno Nana Bemprong, debruçando-se sobre os Asante, identifica uma
preocupação semelhante que tem levado as famílias “reais” a investir na
9
Num estudo de caso sobre o desenvolvimento da instituição da chefatura em meio urbano (Lagos, Nigéria), Sandra
Barnes refere: “In pragmatic terms, politicians wished to secure the support of chiefs in political campaigns. Each title-
holder was the centre of a political arena consisting of kinsmen, clients, friends, and followers, and therefore each
presided over a natural and organised constituency from which politicians could seek votes and other forms of po-
litical backing. Politicians also saw personal benefits in the institution of chieftaincy. Titles gave legitimacy to politi-
cal action, security of tenure, access to the centre, and, last but not least, honour and renow. Titles were not simply
hollow markers of status, but resources which could be used profitably in the quest for political power and advance-
ment” (Barnes 1986: 98).
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educação formal dos seus herdeiros e a procurar conduzi-los a uma posição
destacada na vida nacional, a qual se revela determinante na corrida à
sucessão. Seja nos pequenos chefados instituídos pela administração colo-
nial ou entre os herdeiros dos grandes reinos pré-coloniais, a escolha dos
candidatos baseia-se nos mesmos parâmetros, privilegiando-se os que detêm
uma posição proeminente no interior do aparelho político e social nacional,
sendo esta escolha posteriormente legitimada em termos genealógicos. No
caso dos Camarões, Bayart reconhece serem os chefados de origem
pré-colonial a deterem maiores capacidades integrativas, embora considere
que nas instituições criadas na época colonial ou mesmo pós-
colonial “l’invention de la tradition qui s’y poursuit revêt des
propriétés coagulantes” (Bayart
1989: 217).
Nos contextos invocados a instituição da chefatura, ou de outras
formas de poder local, foi mantida apesar da manipulação exercida pelas
autoridades coloniais, da destituição do poder político dos seus dignatários
reconhecidos oficialmente, e do seu reduzido património económico, graças
ao capital simbólico de que continuam a usufruir, tanto junto da população
local como do estado nacional. A sua posição permite-lhes servirem de
intermediários junto do estado ou de outras organizações, sendo legitimada
pela referência a valores ditos tradicionais embora considerando, com Sandra
Barnes, que “the process of establishing chiefs was not an attempt to recre-
ate the past, but to use past forms for present purposes” (Barnes 1986: 125).
A revitalização da tradição
Nos exemplos referidos a renovação dos chefados e reinos na África Oci-
dental contemporânea foi um meio de criar novos referentes políticos,
junto de populações com identidades em transição (Werbner 1996), legitimados
pela invocação da tradição. Neste sentido, essa renovação pode ser entendida
como um movimento de revitalização da tradição, com características comuns
ao que foi analisado para a Europa (após a revolução industrial) por Eric
Hobsbawm, que o designa por invenção da tradição e define nos seguintes
termos:
“Invented tradition” is taken to mean a set of practices, normally governed
by overtly or tacitly accepted rules and of a ritual or symbolic nature, which
seek to inculcate certain values and norms of behaviour by repetition, which
automatically implies continuity with the past (Hobsbawm 1994 [1983]: 1).
Tanto as contribuições para The Invention of Tradition, editado por Hobsbawm
e Ranger em 1983, como a obra de Benedict Anderson, Imagined Communi-
ties (1991 [1983]), introduziram a ideia de que muitas manifestações culturais
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actuais fazem derivar a sua autoridade de uma ligação-sucessão imaginária
com o passado, tendo relacionado estes actos com a problemática do
nacionalismo e da afirmação de uma identidade étnica. Partindo de uma
perspectiva diferente, Terence Ranger e, posteriormente, Michael Adas,
debruçaram-se sobre o problema da evocação da tradição como um meio de
legitimar formas administrativas coloniais (Adas 1995, Pels 1997, Ranger 1994
e 1996). Note-se que, no texto original de Hobsbawm e Ranger, a revitalização
da tradição implicava o abandono de uma prática ritual ou cerimonial e a sua
recuperação num novo contexto de significado, geralmente inserida em
projectos “modernistas” de controlo e submissão, distinguindo os autores entre
as tradições “inventadas” e as “originais”. Esta posição foi criticada por
autores como Richard Handler e Jocelyn Linnekin, os quais consideraram
serem todas as tradições inventadas e implicarem uma descontinuidade cul-
tural com o passado (Handler 1984, citado por Briggs 1996: 460), valorizando
a sua utilização como meio de afirmação dos grupos locais ou das elites
nacionais.
10
Contudo, tanto Hobsbawm e Ranger como os seus seguidores e
críticos estão de acordo que as criações culturais que se autolegitimam
invocando a tradição são, antes de mais, meios de afirmação política. Benedict
Anderson, por seu turno, levantou um novo problema ao enfatizar a necessi-
dade de se estudarem os processos que conduzem as populações a aceitarem
as novas tradições (Anderson 1991 [1983]). Esta perspectiva conduziu
posteriormente Terence Ranger a falar de tradições imaginadas, referindo-se aos
processos endógenos que conduzem um grupo ou sociedade a aceitar/criar
uma determinada tradição, e não mais aos processos exteriores de imposição
de um novo costume pelo poder colonial (Ranger 1993).
A invocação da tradição como meio de legitimar novas formas de poder
coloca-nos perante o problema da afirmação de poder local e da sua aceitação.
Apenas neste sentido podem ser compreendidos os fenómenos de renovação
dos regulados guineenses, inseridos no fenómeno mais global da revitalização
do poder tradicional na África Ocidental. A análise aqui proposta parte de um
estudo de caso, o de uma reunião política em Pecixe, uma ilha integrada no
sector de Caió, região de Cacheu, na Guiné-Bissau, onde três dos mais
carismáticos régulos locais, identificados como manjaco, ensaiaram práticas
discursivas de poder. Tratou-se de um momento privilegiado para questionar
tanto o que van Nieuwaal designou por o papel de intermediários dos chefes
tradicionais (van Nieuwaal e Ray 1996, van Nieuwaal 1999), como as práticas
metadiscursivas dos actores principais de um processo de reinvenção da
tradição, objecto de estudo de Charles Briggs (Briggs 1996).
10
Diferentes perspectivas têm surgido sobre esta problemática, algumas das quais enunciadas desde as obras
fundadoras de 1983; para uma resenha, ver Charles Briggs 1996: 436 e 460.
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Régulos e reinos entre os manjaco
Como “manjaco” identificam-se actualmente a maioria dos habitantes
11
da
região de Cacheu, a norte de Bissau. Esta designação étnica comum esconde
as múltiplas divergências entre populações que falam os diversos dialectos
da língua manjak
12
e, no período pré-colonial, se organizavam em pequenos
reinos e chefados com uma dimensão variável de dois mil a cinco mil habi-
tantes, conjunturalmente reunidos em congregações militares de reacção aos
intuitos de conquista ou controlo dos circuitos comerciais locais por parte
dos europeus e dos portugueses em particular. Após as campanhas militares
de conquista lideradas pelo major Teixeira Pinto entre 1912 e 1915, que
conduziram à derrota da última congregação de chefes locais em torno do
soberano de Bassarel em 1914, a administração colonial procurou impor-se
recorrendo aos régulos locais ou, na maioria dos casos, colocando neste cargo
pessoas da sua confiança, nomeadamente os intérpretes, com o objectivo de
controlo da população (recolecção de impostos, recrutamento forçado de
mão-de-obra para os trabalhos colectivos, etc.) (Newitt 1981).
No período que se seguiu à independência, o destino dos régulos
manjaco foi diverso: um foi executado publicamente em 1975, sendo acusado
de colaboração com a administração colonial contra os interesses da popula-
ção (Canchungo); outros foram relegados para um papel sem relevância
(Bassarel, Blequisse, Calequisse); noutros casos ainda o regulado encontrava-
se abandonado em consequência da divergência de interesses entre a
população e o poder colonial (Caió). Com a nova abertura do governo às
práticas políticas locais, em 1992 dois régulos assumiram cargos adminis-
trativos principais (como presidentes de sector em Caió e Canchungo), outros
continuaram no seu cargo, muitas vezes mantendo o low-profile que lhes
permitira atravessar o período pós-independência fazendo esquecer as suas
ligações ao regime deposto, enquanto noutros casos foram realizadas as
cerimónias de empossamento adiadas desde há décadas.
O exemplo das populações que falam o dialecto manjak protocotier e
habitam no eixo Canchungo-Caió, incluindo o sector insular constituído
pelas ilhas de Jeta e Pecixe, é particularmente elucidativo destes múltiplos
percursos.
13
Na actualidade os soberanos locais procuram um espaço de
11
Segundo o Recenseamento de 1979, oitenta e duas mil pessoas identificam-se como manjaco.
12
A língua manjak actualmente falada apresenta-se como um conjunto de variantes dialectais (incluindo o mancanha
e o pepel) cujos falantes nem sempre se compreendem. Manjaco, pepel e mancanha habitam a zona litoral
compreendida entre os rios Cacheu e Geba e integram o grupo linguístico Bak, um subgrupo das línguas
oeste-atlânticas senegalo-guineenses (Doneux 1975: 5), no qual se incluem igualmente os balanta, djola e banhum.
13
Durante o período de 1992-1993 foi-me possível seguir aqui três processos de entronização (bem como a descrição
de um quarto processo, confirmada em Crowley 1990) e as actuações de seis régulos. Contudo, devo notar que o
suporte inequívoco que os soberanos dos diversos reinos locais encontram junto das respectivas populações não é
seguido pelos seus congéneres do eixo Canchungo-Calequisse, onde o seu papel é discutido por significativos sectores
da população (Gable 1990 e 1995; Eric Gable, comunicação oral, 1999).
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expressão e ensaiam, em conjunto com as populações, as possibilidades
permitidas pelo seu papel no interior de conjunturas diversificadas. Com
efeito, não existe uma forma única de revitalizar o regulado, mas estratégias
diversas que reflectem tanto as diferentes condições locais como os percursos
históricos colectivos e individuais. Procurarei analisar estes diferentes
processos partindo da observação de um encontro realizado em Pecixe no
quadro da pré-campanha eleitoral, onde participaram os dois régulos desta
ilha e o seu homólogo de Caió, este último enquanto presidente de sector,
cargo que assumiu no quadro da política nacional de promoção das figuras
do poder local referida anteriormente. Tanto a ocasião política, como o
carácter excepcional dessa reunião, concorreram para que ela fosse parti-
cularmente investida pelos seus participantes, transformando-se num
momento preferencial para se ouvirem os discursos polifónicos que expres-
sam diferentes interpretações e interesses. Por outro lado, um olhar sobre o
percurso biográfico dos principais personagens envolvidos permite entender
a autoridade de que estes se revestiam, e perceber a variedade de formas
de actuação e de interpretação do poder.
A reunião em Pecixe
Em Julho de 1993 realizou-se em Injante, Pecixe, uma reunião destinada a
organizar a construção de um edifício para albergar o televisor oferecido pelo
Presidente da República da Guiné-Bissau, Nino Vieira, no decorrer de uma
visita à ilha. O encontro foi promovido por Paulino Gomes, régulo em Caió
e presidente desse sector, que se deslocara a Pecixe acompanhado pelo
deputado à Assembleia Nacional por Caió o qual, mantendo as mesmas
funções desde a independência, é localmente designado por deputado. À som-
bra dos mangueiros, frente à casa de arquitectura colonial actual morada do
presidente da secção de Pecixe, sentaram-se o secretário da secção,
representando a administração local, Ocante Adjibane, régulo de Indafe, e
Pocam Caiék, que ainda nesse ano viria a realizar o ritual de entronização e
assumiria o cargo de régulo de Pintampil. Assistiram ainda os notáveis
locais, os representantes dos jovens, as mulheres nos seus melhores vestidos
e os curiosos.
Paulino Gomes iniciou a reunião insistindo na necessidade de
responsabilizar cada localidade pelas suas necessidades, participando no
esforço colectivo do país independente que a todos beneficiaria, ultrapassado
o “tempo dos maus tratos” da administração colonial. Alertou para a
sedução fácil dos representantes dos diversos partidos que passavam pela
ilha em pré-campanha eleitoral. Falou da responsabilidade dos manjaco
sobre o seu chão (crioulo: território), do respeito pelos mais velhos, referiu
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a emigração na zona e os que ficam para cuidar dos bens comuns e dos
altares ancestrais, relembrando finalmente o interesse colectivo na existência
de um monitor de televisão e apelando em particular às mulheres, dona di
chão (crioulo: num contexto de transmissão matrilinear designa as
transmissoras dos direitos sobre os bens dos grupos de unifiliação). Seguiu-
se-lhe o deputado, o qual relembrou a necessidade da união da população,
antes de os interessados discursarem por sua vez. Ocante Adjibane referiu
as dificuldades com que se defrontava quando pretendia reunir a população
para realizar trabalhos colectivos, mesmo que estes beneficiassem
directamente os participantes. Por seu turno Pocam Caiék discursou sobre
o ritual de entronização que iria brevemente efectuar, referindo os elementos
que lhe faltava reunir e os custos das cerimónias anuais da responsabilidade
dos régulos. António Míel, chefe da povoação com o mesmo nome, falou da
especificidade cultural de Pecixe, das suas casas de kakanda (manjak:
linhagens residenciais), herdadas no interior da matrilinhagem, por oposição
aos bens transmitidos aos filhos, das dificuldades em atrair para os trabalhos
agrícolas os jovens que migram em massa para Bissau. O representante da
juventude confirmou o desejo do seu grupo etário em “colaborar com as
estruturas de régulo e as estruturas de comité”, embora fosse necessária uma
maior cooperação da parte dos mais velhos.
No decorrer deste encontro
14
, cada interveniente falou em nome de
um interesse de grupo, pelo que o conjunto se apresentou como uma poli-
fonia expressiva. A reunião foi encarada como um espaço de apresentação
e representação desses interesses, tendo a retórica dos vários intervenientes
assumido as características do discurso político, e não do diálogo simples.
A maioria das intervenções seguiu um modelo formalizado e inseriu-se na
local level politics of language, onde o acto de discursar é encarado como uma
arte performativa (Parkin 1984: 347). Recorreu-se a metáforas significativas,
como as que pontuavam o discurso de Paulino Gomes ao invocar a história
recente da Guiné-Bissau, o fim da colonização europeia e o poder económico
dos seus habitantes. A sua intervenção procurou, por outro lado, reiterar a
14
A análise de encontros formais como espaços de negociação política inspira-se nos estudos sobre a relação entre
ritual e performance. O ritual, pelas suas próprias características de performance cultural, é um campo privilegiado
para se recriarem e ensaiarem novos significantes políticos. Estas características são comuns aos “rituais seculares”
ou cerimónias, os quais, segundo Sally F. Moore e Barbara Myerhoff, compreendem os encontros caracterizados pela
sua forma convencionalizada e estilizada – instalações, julgamentos, graduações e outras assembleias formais –
colocando as autoras a questão da proximidade entre os ritos “religiosos” e os “seculares” (Moore e Myerhoff 1977).
O enriquecimento mútuo permitido pela interligação dos estudos de ritual e performance, e pela “secularização” da
análise do ritual, estende-se assim ao entendimento dos espaços de afirmação de interesses políticos, permitindo um
novo olhar sobre as cerimónias e actos formais públicos em que são expressas as motivações de grupos sociais diversos.
Numerosos encontros formais podem ser encarados como espaços sociais onde são ritualizados os actos de poder,
enquanto os rituais de empossamento, anteriormente referidos, se apresentam como actos negociados em que diferentes
forças e grupos expressam os seus interesses relacionais. Para um desenvolvimento desta perspectiva de análise ver
também Kelly e Kaplan 1990, e Comaroff e Comaroff 1993.
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interligação entre as estruturas organizativas locais e os interesses do estado,
apresentando-se ele próprio como um mediador. Outros intervenientes
afirmaram o seu papel e posição, como Pocam Caiék que, segundo um
código cultural local, explicou a necessidade urgente de aceitar o seu lugar
como régulo. Por seu turno António Míel apresentou alguns dos principais
problemas com que se deparam as estruturas de poder tradicionais: a
desconfiança dos mais velhos, que detêm o prestígio da idade num sistema
fortemente gerontocrático, em relação às iniciativas da administração estatal;
a perda de poder deste mesmo grupo, ligado a uma economia camponesa
da qual os jovens desertam, preferindo a vida urbana; a defesa de uma
estrutura social tradicional, baseada na transmissão de cargos no interior das
kakanda (manjak: linhagens residenciais). O seu discurso, em conjunto com o
de Pocam Caiék, representou a defesa de valores tradicionais, ameaçados
pelo êxodo rural e pela intervenção estatal. Estes factores adversos obrigam
a uma auto-reflexão dos detentores do poder nas estruturas tradicionais e a
uma nova consciência da sua identidade.
A reunião política em Pecixe pode ser entendida como um espaço em
que os participantes representavam grupos e papéis pré-definidos e ensaia-
vam formas de expressão do poder.
15
Os vários discursos expostos no
decorrer desta reunião, enquanto acto político, foram, além da sua justifi-
cação imediata, a necessidade de acabar a construção de um edifício público:
as diferentes intervenções coincidiram na delimitação da capacidade de
controlar os homens e os seus actos, uma das características do poder
político. Esta reunião teve a particularidade de juntar pessoas que represen-
tavam interpretações e vivências diversas do poder a nível local. Unia-os o
facto de participarem nessas estruturas de poder e caracterizavam-nos
percursos históricos bem definidos. Um breve olhar sobre as suas biografias
permite, por um lado, entendê-los como sujeitos expressivos da história
recente e, por outro, perceber como a história se pensa através dos indivíduos.
Percursos biográficos
16
Ocante Adjibane
Ocante Adjibane, na voz pausada e grave que a debilidade geral lhe impõe,
falou como um homem habituado a ser o interlocutor principal entre a
15
A heterogeneidade dos referentes dos discursos proferidos neste contexto é também um exemplo da opacidade do
discurso político em geral, sobre cujas características se debruçaram numerosos autores: ver Georges Balandier 1985,
Maurice Bloch 1975 e David Parkin 1984.
16
São aqui descritos brevemente os percursos biográficos destes personagens e não as suas histórias de vida (para uma
caracterização ver Juan Pujadas 1992). Importa salientar que os dados e verbalizações expostos foram obtidos no
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população e os membros da administração. Nascido em Injante, Pecixe, em
1932, cedo foi escolhido como o representante da sua kakanda (manjak:
linhagem residencial), eleição determinada pelas suas qualidades de diálogo
e educação formal: “tinha escola um bocado” e falava crioulo. A sua entro-
nização decorreu em 1955: “Na altura em que comecei a ser régulo, as coisas
eram diferentes. O uso era mais forte do que a lei [colonial]. Era o uso que
mandava. Era o régulo que mandava. Casava com quem quisesse, e nessa
altura tinha-me casado com 33 mulheres”. Em 1962, juntamente com outros
régulos da região, foi aprisionado em Canchungo, acusado de apoiar a
oposição ao regime: “A administração dizia-me para ter cuidado, e que se
alguém entrasse, para eu mandar amarrar e chamar o chefe do posto. Mas
eu fiz o contrário, e pus-me do lado do PAIGC. Porque disseram-me: ‘Tu és
régulo. Se libertarmos o país, assim, assim, assim, tens mais possibilidades’.
Deixei o lado português. Por isso, vieram apanhar-me e bater-me. Vieram
de noite. Alguns queriam matar-me: levaram-me até à praia, de noite, para
me bater e para me matar. Alguns disseram, não o matamos, levamo-lo ao
capitão. Obrigaram-me a confessar e eu disse a verdade, que tinha protegido
algumas pessoas do PAIGC, que os tinha ajudado a fugir (...) e levaram-me
preso para o quartel. Mas com a ajuda de Deus disse a verdade. Amarraram-
-me os pés e as mãos, penduraram-me de cabeça para baixo e bateram-me.
Não podíamos nem pôr a mão na cara. Fiquei assim até ao dia seguinte
quando veio o governador. Tiraram algumas pessoas para as matar”. Ao fim
de três meses foi enviado para Bissau onde ficou até 1971, em regime de
prisão domiciliária, tendo-se convertido ao protestantismo:
17
“Em 1966, em
Bissau, antes de voltar a Pecixe, transformei-me em protestante, e assim
fiquei até hoje. Tentei ser crente até hoje. Naquela altura as pessoas não
gostavam daquela religião. As pessoas não estavam habituadas à vida de
crença. Mas eu vi que dentro da crença há uma realidade”. Entretanto, a
administração local nomeou um régulo da sua confiança como substituto, o
qual não foi, todavia, reconhecido pela população. Ocante Adjibane acabou
por ser reconduzido no seu cargo pelo governador da Guiné Portuguesa da
contexto de entrevistas abertas (conduzidas em crioulo, a língua franca nacional, à excepção do régulo Paulino Gomes,
com quem sempre dialoguei em português), tendo sido posteriormente sumariadas e seleccionadas frases dos
entrevistados. Embora me inspirasse no método biográfico e procurasse a variedade interpretativa permitida pela
abertura ao discurso directo, as exigências retóricas traduzem-se neste caso pela continuação da escrita autoritativa
que condiciona o presente texto.
17
Inseridos na Worldwide Envagelization Crusade, de origem inglesa, os missionários protestantes chegaram à Guiné
em 1939, só se tendo instalado a partir de 1940. Em 1980 tinham fundado a Igreja Evangélica da Guiné-Bissau e
possuíam um total de 30 centros em Bissau, nos Bijagós, em Catió, Bissorã, Biombo e Bolama. A sua acção, contudo,
foi limitada em relação à evangelização católica, calculando-se que o número de aderentes, nessa data, se situasse entre
1500 e 2000 (Rema 1982: 902-903). Em 1996 Ocante Adjibane procurava implantar o culto em Pecixe, tendo edificado
um espaço próprio ao lado de sua casa, onde se reunia aos domingos com dois outros representantes desta igreja na
ilha. A sua conversão implicou a total recusa em participar nas cerimónias locais, facto de que muitos dos seus
conterrâneos se queixam.
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época: “Foi o general Spínola que me colocou e disse-me que era para eu
tomar conta do meu trabalho. O Spínola disse-me: ‘nós é que te fizemos
chorar, agora somos nós que te limpamos o rosto’”. No entanto, a realidade
com que se deparou já não era a mesma: “A prisão mudou tudo. Fiz uma
casa em Bissau. E quando voltei fiz aqui uma casa de zinco, e antes não
podia, o uso não permitia [as casas dos régulos são cobertas de colmo]. Hoje
em dia tudo é diferente. Eu dou-me bem com o povo. Não vou dizer mentira
ao povo. Não sei se o povo quer que tudo volte a ser como no tempo dos
antigos. Hoje em dia só estou dentro da realidade. A ordem dos régulos pode
não ser igual à do PAIGC. Se o povo quiser que a ordem volte a ser como
era dantes, ele está de acordo, mas não vou dizer mentira entre eles [por
causa do PAIGC]. Porque quando alguém me perguntar alguma coisa, eu
vou ter que responder. É uma realidade. Hoje em dia estamos bem, graças
a Deus. Acabou a exploração do homem pelo homem, não quero guerra com
o partido, há pessoas que nessa guerra foram batidas [maltratadas]. Por
causa da guerra, muitas pessoas foram batidas. Mas até agora eu sou do
partido. (...) No ano de 1982 fizeram uma discussão sobre os régulos. Dizem
que as pessoas começavam a queixar-se do régulo. Mas eu sou régulo desde
ontem [há bastante tempo]. O régulo já existia. Não é questão de alguém sair
daqui e vir reinar. A maioria das pessoas não fala sobre estas coisas [não se
envolve nestes problemas]. Até quando o Nino cá esteve, havia um homem
que disse ao Nino que tínhamos falta de régulo. E o Nino disse: ‘Vocês não
têm régulo? Este não é o Ocante? É o vosso régulo. Ou se afastaram dele,
ou não se aproximaram dele’. E disse: ‘O régulo de confiança é ele. O vosso
régulo de ontem até hoje. É ele o vosso régulo de Pecixe’”.
Pocam Caiék
Pocam Caiék nasceu em Pessangue (Pecixe) em 1937, tendo sido sempre
considerado um dos potenciais herdeiros dessa casa. Embora na sua
juventude trabalhasse como marinheiro em Bissau, regressou para constituir
família na ilha; quando herdou a casa titular de Pessangue, em 1974, foi
chamado a desempenhar cargos na administração local do estado indepen-
dente: “Quando o partido entrou foi quando eu entrei em Pessangue.
Comecei por ser conselheiro e depois presidente de comité [de tabanca
(crioulo) ou comunidade local, um dos cargos administrativos de base]”. Este
homem sério sucedeu a um candidato que não chegou a realizar a cerimónia
de entronização porque “o partido tinha entrado, e veio dizer que o terreno
já não era comprado, e ele disse que se o terreno já não era comprado, ele
já não tinha vaca para poder vir na reinança, e ficou lá na Cacante. Sabes,
para vir para a reinança é caro. A reinança é comprada na mão de Lembra
[um ritualista], com pano, com porco, para começar a fazer a cerimónia. Por
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isso, se não tiveres vacas, não podes vir para aqui. Por isso que esse homem
não tinha maneira de vir para aqui. E o povo disse para eu me levantar e
vir para aqui”. E acrescenta: “O povo é que me chamou, o povo, porque
dizem que eu pego na minha cabeça com duas mãos, quer dizer que não
conto mentiras. Se fizeres mangaçon (crioulo: troça), eu torno-a para ti, mas
se não fizeres mangaçon nós não temos nada; se bateres no teu companheiro,
trazem-te aqui e eu digo para te açoitaram até eu dizer ‘pára!’”. Durante
nove anos desempenhou as funções rituais de régulo, organizando os rituais
de propiciação das chuvas e fornecendo os animais a serem sacrificados, mas
recusou ser entronizado, justificando-se com as despesas que tinha de fazer.
Em 1992 um acidente num arrozal foi interpretado como o sinal inequívoco
de que não só os antepassados o aprovavam como sucessor, como estavam
insatisfeitos com a demora excessiva na realização da cerimónia de entro-
nização. Esta veio a concretizar-se em Novembro de 1993, e o régulo de
Pintampil descrevia posteriormente, nos seguintes termos, as suas funções:
“Não houve nunca um problema! As pessoas vêm cá todas falar mantenha
(crioulo: saudar). Quando se chega ou quando se parte tem de se vir falar
mantenha. As pessoas dizem ‘vou a casa do meu “avô”, vou a casa do régulo’.
E eu sento-me aqui todos os dias. Só saio para ir ao lugar de trabalho: se
alguém vier dizem-lhe ‘ele foi ao lugar de trabalho’ e enviam um menino a
chamar-me”.
Paulino Gomes
A história de Paulino Gomes é exemplar de uma nova forma de encarar o
regulado. Nascido em Tumambu, Caió, em 1946, teve uma formação esco-
lar: “Tive a sorte de se ter dado a expansão do ensino missionário e entrei
em 1955 para o ensino católico em Tubebe e assim cheguei à 4.ª classe. Foi
difícil pois não tinha pais e para os meus tios era assim um criado. Naquele
tempo ninguém via que chegaria a ser alguém mais tarde. (...) Depois fui
para Bissau e fiz o curso nocturno, assim consegui fazer o 5.º ano, e depois
fiz um curso médio dos correios em 1967, e já era funcionário dos correios,
trabalhava de manhã e fazia o curso à noite”. Em 1966 começou a colaborar
com o PAIGC, embora reconheça que a sua militância era “só espiritual, era
muito perigoso sobretudo para nós os africanos que estávamos cercados pelo
policiamento português e isso dava-nos uma grande insegurança, por muito
pouco éramos descobertos e já se sabia para onde íamos”; entretanto fez um
curso superior dos correios que lhe permitiu ocupar funções de chefia no
interior do país. Com a independência tornou-se militante activo do partido
no poder; por outro lado, a sua carreira profissional continuou a evoluir,
chegando a director dos correios em 1985. Apesar de possuir uma boa
situação em Bissau, foi sensível ao apelo dos seus familiares para que
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assumisse o cargo de régulo de Caió. Encontrava-se na linha de sucessão mas
não era um elemento sénior da sua kakanda (manjak: linhagem residencial);
contudo, “os meus tios (crioulo: os seniores da matrilinhagem) chamaram-
-me e deram-me razões que eu aceitei, e vim; o que acontecia é que depois
da independência a política é outra, e havia pessoas que não pertenciam ao
direito tradicional mas começavam a mandar, e os meus tios não percebem
bem o crioulo e viram as coisas a andarem mal. Aqui eram os mais velhos
que vinham para cá, mas a situação política exigia que fosse alguém capaz
de falar com o governo e de conhecer o uso tradicional e por isso é que me
escolheram para vir para cá”. A sua escolha não foi pacífica, na opinião do
próprio, porque “depois da independência houve muitas pessoas que corre-
ram para o PAIGC à procura de uma posição social. Houve muita gente que
até apoiava o governo colonial e que depois correu para o PAIGC, e para
conquistar uma posição social opunham-se aos régulos e diziam [junto dos
quadros partidários] ‘o régulo faz isto, o régulo faz aquilo’, para criar uma
má imagem em relação ao régulo. Essas pessoas queriam ficar com tudo o
que é de jagra (crioulo; manjak: bassassa: matrilinhagem reinante)”. Denun-
ciado junto do governo, acusado de liderar um plano de oposição, foi encar-
cerado em Cacheu. Formou-se um numeroso grupo de apoiantes que se
dirigiu a Bissau para pedir a sua libertação e exigir que a cerimónia se reali-
zasse, tendo sido encarregue de averiguar o assunto uma comissão encabe-
çada pelo presidente da Assembleia Nacional. Paulino Gomes foi finalmente
liberto e obteve autorização para realizar a cerimónia de tomada de posse,
que se efectuou em Abril de 1987. O seu encarceramento e a movimentação
subsequente, bem como o ritual de entronização, foram largamente media-
tizados, tendo-se tornado uma figura emblemática da exigência popular de
uma maior abertura política do governo. Durante cinco anos, o novo régulo
acumulou esse cargo com o de director dos correios, permanecendo durante
a semana em Bissau e regressando aos fins-de-semana para ocupar o seu
cargo, procurando conjugar a tradição que o legitimava com as inovações
que considerava imporem-se. Em 1992 o governo pediu-lhe que ocupasse o
cargo de presidente do sector de Caió: “Os responsáveis políticos a nível da
região vieram ver como as coisas estavam, e os problemas que se iam
levantar com a abertura política [estava constitucionalmente instaurado o
multipartidarismo e o país preparava-se para o seu primeiro processo eleito-
ral], e viram que era preciso uma pessoa com influência para acalmar isso,
e por isso chamaram-me. O presidente da região mandou-me chamar, de
certeza depois de ter sido contactado pelos responsáveis políticos que viram
que eu era uma pessoa com bastante influência a nível local e quiseram que
eu viesse normalizar a situação”. Apesar das dificuldades com que se
deparava, o régulo/presidente de sector procurava conjugar as duas
actividades: “Vou para lá das 8 às 14.30 e sou empregado do governo, e
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desde que estou aqui resolvo os problemas tradicionais. As pessoas
procuram-me onde eu estiver, mas eu digo que uns problemas são para aqui,
e os outros para lá. São coisas que não são incompatíveis, embora haja quem
diga que sim. (...) O problema é que agora eu posso pôr as coisas no seu
lugar e se for uma pessoa estranha não consegue; quem lá vai mal percebe
o crioulo, e quem lá está não percebe as línguas daqui. Sendo assim como é
que vai fazer justiça? É isso que conduz a muitas interpretações erradas e
todo o mundo aproveita, e quem tem dinheiro e sabe falar pode enganar
todos. Isso comigo não resulta: a língua manjaca falo melhor do que eles, o
crioulo não espero por ninguém, e certas pessoas sentem-se ameaçadas por
isso e preferiam que eu não estivesse aqui. Houve aqui grandes confusões,
e as pessoas sabem que eu não deixo que voltem a acontecer”.
Os percursos biográficos destes homens são expressivos da diversidade
de figuras ligadas às chefaturas tradicionais. Por outro lado, permitem
perceber as pressões sociais e políticas que sempre pesaram sobre estes
personagens. O decano dos participantes nesta reunião, Ocante Adjibane, foi
escolhido entre os membros da sua kakanda (manjak: linhagem residencial), nos
anos 50, por ser quem melhor poderia dialogar com a administração colonial.
Exercendo o difícil papel de mediador, numa altura em que os movimentos
de libertação procuravam o apoio dos régulos (Fernandes 1993; Jao 1996: 125),
foi preso pela administração no quadro de uma operação que se estendeu a
toda a região de Cacheu. O régulo que o substituiu foi nomeado pelas
autoridades, mas nunca chegou a ser reconhecido junto da população,
correspondendo à figura tantas vezes caricaturada do chefe manietado pelo
poder colonial. A adesão de Ocante Adjibane à Igreja Evangélica é significativa
do seu doloroso percurso individual: a sua conversão implicou, por um lado,
a recusa das suas convicções de origem que marcaram toda a sua vivência
anterior; mas, por outro lado, opôs-se ao culto oficial do catolicismo praticado
pelo poder vigente. Foi reintegrado no quadro da política de sedução das
populações locais, intitulada “Por Uma Guiné Melhor”, liderada pelo general
Spínola no fim do período colonial (Cardoso 1996: 148). O seu estatuto de
sobrevivente granjeou-lhe a simpatia do poder pós-colonial, caso único na
região no período que se seguiu à independência. Manteve-se desde então
como um régulo respeitado, apesar de a sua relação com a população ser
dificultada pelo facto de não assumir as suas responsabilidades rituais. Em
vários regimes este homem arcou com a responsabilidade de ser o elemento
mediador entre poderes e interesses muitas vezes divergentes, os da população
local e os da administração externa.
O percurso de Pocam Caiék é comum a muitos homens da ilha,
comportando um período de migração/emigração, seguido da evolução na
hierarquia de cargos local. Bem integrado na sua comunidade, Pocam Caiék
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assumiu em simultâneo a herança da matrilinhagem residencial de Pessan-
gue e o cargo de presidente do comité de tabanca (crioulo: comunidade local),
no interior do novo sistema administrativo. A reconversão dos chefes
tradicionais, desde que não ocupassem cargos visíveis como o regulado, em
responsáveis de órgãos de administração local, foi recorrente na Guiné-
Bissau como em todo o continente. O tempo que levou a aceitar o seu lugar
como régulo foi comum a todos os regulados do país, os quais foram
abandonados à medida que os seus titulares morriam para serem de
imediato reavivados no quadro da nova abertura política instituída a partir
de 1991.
Paulino Gomes, por seu turno, tem o perfil dos chefes tradicionais
“modernos”, de que se encontram actualmente numerosos exemplos em toda
a África Ocidental. Como foi referido, em diversos chefados e reinos tradi-
cionais desta região têm vindo a ser preferidos como sucessores aos cargos
dirigentes os indivíduos com maior poder no interior das novas hierarquias
nacionais, independentemente da sua legitimidade genealógica (Barnes 1996,
Brempong 1997, Lentz 1997). A escolha deste homem educado, com uma
vivência urbana, ocupando uma posição de direcção e influência junto do
governo central, parece representar uma reactualização das preocupações
que trinta anos antes tinham conduzido à nomeação de Ocante Adjibane.
Contudo, o seu caso atingiu uma projecção que o erigiu em ícone nacional,
representando a vontade de uma mudança da política governamental na sua
relação com o poder local. A sua posição foi confirmada em 1992, quando
foi requisitado para presidente do comité de estado do sector de Caió, no
quadro de uma política de aproximação às populações locais expressa pela
nomeação de naturais da zona para os principais cargos administrativos. Esta
preocupação governamental correspondeu também ao reconhecimento da
heterogeneidade sociocultural do estado guineense, anteriormente negada
por se opor ao modelo da nação una que se procurava construir.
No seu conjunto, estas biografias mostram que, pela sua riqueza, os
percursos individuais não podem reduzir-se a dicotomias simples. As vivên-
cias de Ocante Adjibane e Paulino Gomes são exemplificativas das diversas
tensões e manipulações elaboradas em contexto colonial e mesmo pós-colo-
nial. A indigitação de Paulino Gomes como régulo, por sua vez, representa
uma vontade activa de revitalização do espaço político do regulado, de
recriação de um órgão que dê efectivo poder, em simultâneo, às populações
que o apoiam.
A renovação dos regulados
Em todo o sector de Caió (compreendendo os regulados de Caió-Belabate e
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Cajegute no continente, Indafe e Pintampil na ilha de Pecixe, Quessete,
Pidjate e Príet na ilha de Jeta) o abandono dos regulados e, consequen-
temente, das cerimónias dependentes dos régulos, foi considerado respon-
sável por distúrbios de diferentes naturezas. Por um lado, apontavam-se
problemas de ordem social, geralmente decorrentes do incremento dos
movimentos migratórios internos ou externos e da alteração de um sistema
de valores que põe em causa a hierarquia gerontocrática tradicional. Noutros
casos referiam-se as alterações naturais, como as mudanças meteorológicas
com graves consequências para a agricultura, que eram atribuídas (entre
outras causas) ao abandono dos rituais de propiciação por que os régulos
são responsáveis. A realização dos rituais de entronização em três regulados
abandonados foi justificada como um meio de ultrapassar estes problemas.
Apenas o régulo de Caió assumiu a vertente política da sua entronização.
As duas justificações para a revitalização dos regulados, conquanto dife-
rentes, apontando uma para a necessidade de se efectivarem as cerimónias
por que os régulos são responsáveis e a outra para o seu papel de repre-
sentantes de um grupo social, convergem numa mesma utilização do
conceito de tradição, erigido em justificação ideológica do renascimento do
regulado. Encontramo-nos perante uma evocação e legitimação equivalente
à que defendem numerosas comunidades noutros contextos, que procuram
nos costumes muitas vezes recriados ou (re)inventados a justificação
ideológica para actos que se constituem em símbolos de identidades locais.
Tal como nesses casos, a revitalização dos regulados não pode ser entendida
como o retomar de uma tradição “adormecida”. Foram, pelo contrário, actos
políticos conscientes, de populações que pretendiam reafirmar a sua
identidade local e o seu poder.
Abner Cohen foi um dos primeiros antropólogos a chamar a atenção
para o facto de o poder político se expressar em diferentes formas de inte-
racção social que não se limitam aos actos dos seus detentores oficiais. Este
autor debruçou-se sobre as masquerade politics (Cohen 1993) ou formas de
vivência cultural, religiosa ou outra que funcionam como meios de expressão
e confirmação da vontade de grupos informais.
18
Alargando esta perspectiva
à noção de etnicidade, considerou que o agrupamento étnico é primordial-
mente informal e não reconhecido, actuando em determinadas ocasiões como
um grupo político que evoca os “costumes tradicionais” como meio de legiti-
mação e de identificação (Cohen 1996: 84). Cohen sugeriu que a acção
simbólica sob a forma de ritual surge, nestas situações, como um meio de
18
Os trabalhos de Abner Cohen sobre as formas de cultural performance (Parkin 1996) abriram novos campos aos estudos
das identidades étnicas e políticas, explorando a relação dialéctica entre criação simbólica e afirmação política. No
entanto, a sua teoria deixa em aberto a questão da selecção dos símbolos culturais que funcionam como aglutinadores
políticos, sobre a qual se debruça David Laitin (Laitin 1986; ver em particular o capítulo 1, “The Two Faces of Cul-
ture”).
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reforçar a solidariedade de grupos com identidades sociais problemáticas
(em construção ou fragilizadas). Esta perspectiva foi complementada
por Jeremy Boissevain, o qual considerou que “this passive, defensive dimen-
sion of ritual does not reflect its aggressive, instrumental use to threaten
others, to establish a presence, to create political interest groups” (Boissevain
1992: 11-12).
Neste sentido, numerosas representações podem ser encaradas como
um idioma através do qual os grupos informais expressam a sua identidade
ou interesses comuns. Tanto os rituais de entronização como a própria figura
do régulo funcionam claramente como as masquerade politics de Cohen. A sua
visibilidade é essencial para que estes actuem como um meio de atribuir
poder às populações locais e de significar a sua autonomia e independência
face ao modelo hegemónico estatal. Por outro lado, os régulos continuam a
actuar como mediadores face a esse mesmo poder estatal. A sua eficácia é
tanto maior quanto maior for o capital simbólico que acumulam pelo pres-
tígio do cargo e dos rituais que realizam. Mas a sua actuação não se limita
aos actos rituais, antes inclui a participação em numerosos momentos
formais, onde se negociam posições e se procuram novos espaços de
afirmação da identidade colectiva. Conforme foi referido, a utilização dos
rituais e cerimónias de representação do poder como meios de afirmação da
identidade local, subsumida na defesa do poder tradicional, é comum a
numerosos contextos da África Ocidental. Possuindo sobretudo um capital
simbólico, os novos representantes do poder tradicional jogam com a
mediatização da sua figura e poder para poderem servir de intermediários
face ao estado. Neste sentido, tanto a projecção pessoal dos que são empos-
sados como a mediatização desses eventos são essenciais, o que conduziu
Sandra Barnes a concluir, no seu estudo sobre os chefados da Nigéria:
The rituals communicate the fact that high value is placed not simply on this
institution but very importantly on the attainments of the actors involved
and what they represent. The pessimists who predicted chiefs would be
relegated to ritual roles were correct in the sense that cerimonial duties are
a critical aspect of office-holding; they were thoroughly incorrect, however,
in their ability to comprehend the informal political uses to which ritual
could be put and the many meanings and agendas attached to their perfor-
mance (Barnes 1996: 32).
As cerimónias de poder são performances complexas, recriadas a cada
actualização e particularmente marcadas pelo contexto da sua realização.
A revitalização dos regulados na Guiné-Bissau não pode ser entendida como
um elemento independente do seu enquadramento histórico. Ao manterem
as autoridades tradicionais, os grupos locais definem os seus representantes
e interlocutores preferenciais com o estado. Contudo, as actualizações dos
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régulos e dos regulados não são equivalentes entre si, antes exprimem
diferentes estratégias comunitárias e variados percursos individuais.
A biografia de cada régulo retrata um caso particular, resultado de diversas
sensibilidades e capacidades individuais, oportunidades e conjunturas, mas
é igualmente um elemento expressivo da forma como a história se pensa
através dos indivíduos. Ameaçadas pelo êxodo cultural e presencial das
camadas mais jovens, pelo ostracismo e desvalorização a que foram votadas
pelas administrações colonial e pós-colonial, estas populações reavivam de
forma criativa rituais por vezes ignorados há dezenas de anos, como um
meio de afirmação da sua identidade local e de ganho de poder efectivo
através da sua representação simbólica. É neste sentido que podemos
entender não só a revitalização dos regulados no contexto estudado, como
as diferentes afirmações que pontuaram na reunião de Injante supracitada.
Pocam Caiék e António Míel referiam, um pouco a contra-corrente, as difi-
culdades e a necessidade de manter a estrutura das kakanda (manjak: linha-
gens residenciais) ou de realizar os rituais tradicionais. Ao discursarem no
contexto cerimonial que este encontro representou estavam a afirmar esses
princípios, a consolidá-los simbolicamente, num acto informal que foi
investido como um meio de atingir fins políticos. A “cerimónia secular”
abordada, para além de criar um contexto de diálogo – ou da sua ilusão –
com o poder central, assumiu um papel integrativo das diferentes identi-
dades locais. Encontro formal transformado em local de afirmação e nego-
ciação identitárias, foi também exemplificativo da proximidade entre o ritual
e outros espaços de criatividade delimitada e investida pelo seu carácter
cerimonial e público.
Post-scriptum: o etnógrafo face ao seu papel
Fazer etnografia em contextos de afirmação identitária coloca-nos automa-
ticamente no quadro das estratégias locais de poder. Esta investigação
decorreu junto de pessoas que controlavam circuitos de poder locais e que
pretendiam, como foi referido, a publicitação de muitos dos seus actos rituais
e cerimoniais. A negociação do meu lugar de etnógrafa comportou alguns
equívocos – uma vez que os únicos circuitos a que tinha acesso se limitavam
a um reduzido sector intelectual de Bissau ou a um meio académico exógeno –
e baseou-se na realização de registos videográficos ou escritos que foram
sendo entregues aos régulos com quem trabalhei, o que foi essencial para obter
o seu apoio e como forma de me atribuir um papel em todas as cerimónias
observadas.
Por outro lado, trabalhar sobre actos de afirmação de interesses polí-
ticos legitimados pela evocação da tradição, não deixa de colocar alguns
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problemas ao etnógrafo. Como nota Charles Briggs, num artigo sobre as
reacções locais aos trabalhos académicos sobre a invenção da tradição no
contexto da América do Sul, estes revelam ser dos exemplos mais explícitos
dos problemas que se levantam à utilização de discursos académicos fora
do seu contexto de elaboração. O autor adianta:
If it is accepted that all traditions are “invented” – meaning that they reflect
the contexts and interests that inform their construction in the present more
than the accuracy with which they represent historical events – discourses
of tradition will be less useful to subaltern communities in defending land
claims and the like (Briggs 1996: 463).
Tal como nos casos invocados por Briggs, a diferença entre o meu discurso,
ao falar de actos de reinvenção da tradição, e o dos meus interlocutores, que
procuravam legitimar a sua actuação, é portadora de uma contradição
incontornável. Resta-me a certeza que ela faz parte da ambiguidade da nossa
relação que foi, em todos os momentos, consciente para ambas as partes.
B
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THE REVITALISATION OF TRADITIONAL
POWER AND THE MANJACO CHIEFS OF
GUINEA-BISSAU
In Guinea-Bissau, after being disempowered and
dismantled, in the name of the constitution of the
nation-state, chiefs and chiefdoms were re-invoked
in the 90s as crownings took place all over the
country. At present, the phenomenon of the
revitalisation of traditional bases of power is common
in various African nations, most notably those of
West Africa. Against the expectations of most
observers of African affairs, traditional chiefs did not
disappear, especially in the period immediately
following independence and the creation of new
African states in the 50s and 60s. To the contrary,
chiefs became prominent figures in diverse contexts.
This article treats the phenomenon of the
revitalisation of the chiefdoms of Guinea-Bissau
using a specific case: that of the Manjaco chiefs of
the sector of Caió, region of Cacheu, and seeks to
place this case within the larger context of the
renovation of traditional power bases in West Africa.
Clara Carvalho
Departamento de Antropologia do ISCTE
Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE)
clara.carvalho@iscte.pt
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