A GUINÉ-BISSAU NO CONTEXTO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Roberto Pontes,

Professor da UFC e Presidente do

Instituto Afrobrasiluso de Pesquisa e Estudos Literários inserir

A Guiné-Bissau situa-se na Costa Ocidental da África, estendendo-se pelo litoral, desde o Cabo Roxo até à ponta de Cagete. Faz fronteira, ao Norte, com o Senegal, ao Este e Sudeste com a República da Guiné e ao Sul e Oeste com o Oceano Atlântico. Além do território continental, o país incorpora em torno de 40 ilhas que formam o arquipélago dos Bijagós, cuja separação do continente é feita pelos canais de Geba, Pedro Álvares, Bolama e Canhabaque. Sua superfície total é de 36.125 km2, maior um pouco do que o Estado brasileiro de Alagoas.

A superfície continental consiste numa parte costeira semipantanosa e numa zona planáltica pouco elevada. Numerosos rios, dos quais o Cachéu, o Mansôa e o Gêba são os mais importantes, percorrem o território e são as melhores vias de acesso ao interior. O clima é tropical e a temperatura média é de 200 C.

Os portugueses chegaram ao território da Guiné-Bissau no século XV. A primeira povoação portuguesa foi Cachéu, fundada em 1588, mas sujeita administrativamente ao arquipélago de Cabo Verde. Após a Restauração, foi retomado o povoamento, tendo-se construído as povoações de Farim e Zinguichor. A ocupação portuguesa iniciou-se a partir da foz dos rios Casamansa, Cacheu, Geba e Buda. Nos finais do século XVIII foi edificada a fortaleza de Bissau, numa altura em que os ingleses começaram a imiscuir-se nos tradicionais interesses portugueses na área. Foi necessária uma arbitragem internacional, dirimida a favor de Portugal, para encerrar a questão.

A chegada dos colonizadores europeus ao território africano criou um sério problema lingüístico entre inúmeros outros. Isso porque, logo após as primeiras incursões das caravelas portuguesas, outras nações se lançaram na conquista da África: França, Inglaterra, Holanda e Espanha. Assim começou também a disputa entre os próprios colonizadores sobre que fatia do bolo africano lhes caberia.

Para desfazer dúvidas, Bismarck convocou a célebre Conferência de Berlim (1884- 1885), em que quatorze potências colonialistas (inclusive os Estados Unidos da América) dividiram a África entre si. A grande ironia é que não havia nenhum africano presente à conferencia.", observa Hildo Honório do Couto. 1

A população da Guiné-Bissau está estimada hoje em torno de 1,5 milhão de habitantes, distribuídos pelas seguintes etnias: balantas 30%, fulanis 20%, maniacas 14%, mandingas 13%, papéis 7%, outros 16%, dados relativos a 1996. O idioma oficial da Guiné-Bissau é o Português, mas as línguas mais faladas em todo o território são o Crioulo, o Balanta e o Macanha (línguas locais). Quanto à religião, as crenças tradicionais (rituais mágicos e o animismo) predominam com 45,2%, o islamismo tem um índice de preferência de 39%, o cristianismo de 13,2% (católicos 11,6% e outros de dupla filiação 2,2%), enquanto os sem religião e os ateus representam 1,6% da população.

 

Grande parte da massa populacional se localiza no interior do país. A população urbana representa 24% do total dos habitantes. O crescimento demográfico se dá a uma taxa de 2,4% ao ano. A taxa de fecundidade é de 5,99 filhos por mulher, em média. A expectativa de vida masculina é de 44 anos e a feminina de 46,9. No que diz respeito ao analfabetismo, o índice é de 63,2%.

O país abriga diversos grupos étnicos, dos quais se destacam os Balantas (27%), os Fulas (22%), os Mandingas (12%) os Nianjancos (11%) e os Papéis (10%). Antes da Independência, a população de origem não africana era, na sua maioria, constituída por funcionários públicos e comerciantes portugueses, sírios e libaneses.

A Constituição da República da Guiné-Bissau foi aprovada em 16 de maio de 1984 e revista em maio de 1991. O poder legislativo é exercido pela Assembléia Nacional Popular e o poder executivo é exercido pelo Presidente da República.

Após estas considerações iniciais, geográficas, estatísticas e históricas cabe não perdermos de vista que estamos reunidos aqui para comemorar o dia da Independência da Guiné-Bissau, proclamada pelo PAIGC (partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) nas colinas de Medina do Boé, a 24 de setembro de 1973. Faz-se necessário desde logo observar que este acontecimento histórico não ocorreu por concessão dos colonialistas portugueses nem pela via das gestões diplomáticas, tendo ocorrido o reconhecimento da Guiné-Bissau independente, pelo Estado português, apenas a 10 de setembro de 1974.

A Independência da Guiné-Bissau deve ser compreendida no quadro geral do estabelecimento dos contatos dos nacionalistas africanos com as massas populacionais, no princípio dos anos sessenta do século XX, que resultou numa ampla luta armada na África sobretudo contra o colonialismo e o imperialismo europeu.

Especificamente nos países dominados por Portugal, os povos das colônias haviam tentado a reivindicação pelos meios democráticos, mas a Colônia, indiferente às proposituras nacionalistas, levou as lideranças à conclusão de que a solução pacífica era impossível. Restou, portanto, aos países sob jugo português, a alternativa da luta armada e a organização de movimentos de libertação nacional, os quais tiveram inicialmente duas tarefas: 1ª) explicar e convencer as populações de que era indispensável a luta armada como único meio de vencer o colonialismo; 2ª) formar quadros tanto para o enfrentamento quanto para a administração das regiões libertadas, pois o sistema educacional português confiado a religiosos preparava pouquíssimos quadros, insuficientes à perspectiva de reconstrução de um país.

Em 1956 foi fundado em Angola o M.P.L.A. (Movimento Popular de Libertação de Angola), produto da fusão de várias organizações clandestinas em atividade desde 1953. A luta armada começa em Angola a quatro de fevereiro de 1961, com um assalto à prisão política de Luanda. A resposta de Portugal, alguns dias após, foi a aniquilação de 17 aldeias onde pereceram 5.000 pessoas bombardeadas na baixa do Cassange, entre Luanda e Malange, por napalm (a mesma substância incendiária utilizada pelos americanos do Norte contra os vietcongs na Guerra do Vietnam). Outra reação de Portugal, desta feita, ao estabelecimento da Frente do Norte, distritos de Luanda, Cuanza-Norte, Zaire e Uíje, foi uma ação militar em que, de agosto a setembro de 1961 morreram 50.000 pessoas e 300.000 fugiram de Angola. Fazemos menção a tais fatos a fim de dar idéia da truculência portuguesa e da ação heróica dos nacionalistas angolanos. Além do mais, tais fatos têm correlação com o que virá a suceder na Guiné-Bissau.

Nesse violento clima de guerra, dois anos depois da insurreição em Angola, tem início a campanha armada na Guiné-Bissau. Fundado em 1956, o P.A.I.G.C. (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) nos primeiros seis anos de atividade cuidou de preparar a população para o confronto com os portugueses. Estes, a fim de impedir a luta de libertação, passaram a reprimir fortemente as ações do P.A.I.G.C. por meio da política secreta portuguesa, a P.I.D.E. Ante o recrudescimento da intervenção da P.I.D.E., logo o partido resolveu transferir e intensificar seus movimentos nas áreas rurais.

Em fevereiro de 1963 dá-se o assalto ao quartel de Tite, operação que assinala o início da resistência armada guineense. O avanço das ações táticas foi tão positivo que já no ano seguinte o congresso do P.A.I.G.C. aconteceu numa zona libertada ao sul da Guiné- Bissau.

A evolução da luta de Independência na Guiné-Bissau se deu com regularidade e intensificação constantes. Aos poucos foram formadas tropas regulares e no ano de 1967 a população recebeu dos revolucionários nacionalistas, armas, com a finalidade de tomar intransponível o território às forças portuguesas.

Em 1968 batalhões do P.A.I.G.C. atacaram e ocuparam o aeroporto da capital e já no ano seguinte tomaram a posição portuguesa no Medina do Boé, obtendo a libertação total de Boé. A conseqüência imediata deste feito foi a derrota da frente portuguesa no Leste e o começo da ofensiva ao Oeste, isto é, a libertação de todo o território da Guiné- Bissau, mantendo-se os portugueses apenas em algumas cidades fortificadas.

Em 1970, com a notória supremacia do P.A.I.G.C., que controlava quase todo o país, os portugueses resistiam, mesmo sabendo que a luta de libertação alcançara um estágio muito avançado. A propósito, escreve Eduardo de Sousa Ferreira 2: "Segundo um relatório ‘confidencial’ do Estado-Maior português de 1910, ‘nas Províncias Ultramarinas a população africana tende cada vez mais para a subversão, principalmente quando esta demonstra probabilidades de êxito ou quando as condições geográficas dificultam ou impedem a manobra das nossas tropas. A população nativa, vivendo na periferia dos grandes centros urbanos, não mais em tribos, demonstra, por sua vez, também uma grande receptividade para a propaganda inimiga... A situação psicológica, tanto na Metrópole como no Ultramar, encontra-se bastante tensa". 3

Este relatório é muito significativo porque nos dá conta da tensão instaurada do lado português, tanto da Metrópole quanto da colônia. E os fatos se desdobrarão, como hoje sabemos, no sentido da proclamação da Independência da Guiné-Bissau em 24 de setembro de 1973, e ainda em direção à queda da ditadura em Portugal, a 25 de abril de 1974.

"O desespero dos colonialistas portugueses culminou em fins de 1972 - prossegue Eduardo de Sousa Ferreira __ao [Amílcar] Cabral dar a conhecer que nos próximos meses o P.A.I.G.C. proclamaria a independência da Guiné-Bissau".4

A mensagem de Ano Novo de Amílcar Cabral a seu povo, nos alvores de 1973, dizia: "No decorrer deste ano, logo que seja possível e oportuno, convocaremos na Guiné uma Assembléia Nacional Popular para que seja cumprida esta sua primeira missão histórica: a proclamação do nosso Estado, a criação de um Executivo para este Estado e a promulgação da Constituição - a primeira Constituição da nossa história. Esta será a base para uma existência activa da nossa nação africana".5

Os políticos e generais portugueses sabiam muito bem que Amílcar Cabral tinha consigo uma teoria da libertação a qual lhe conferia notável clareza de propósito. Compreendiam igualmente que os outros líderes em Angola e Moçambique adotavam a mesma lógica teórica e que a luta se dava em bloco, como deixa entrever o comandante- em-chefe de Moçambique, general Kaúlza de Arriaga. Em seu livro Lições de Estratégia de Altos Comandos, escreveu aquele militar: "Naturalmente, quando as nossas tropas morrem na Guiné e nós lá despendemos grandes quantias de dinheiro, não levo essas perdas em consideração e não despendemos essas grandes quantias apenas para a defesa da Guiné. Se fosse assim, consideraria isso inaceitável, e mais: um homem que morre na Guiné está, indiretamente, também a defender Angola e Moçambique".6

A lógica exposta é a do estrategista, é certo. Por isso, onde lemos "defesas da Guiné", compreenda-se "manutenção da Guiné"; mas a última parte da transcrição feita podia aplicar-se perfeitamente à lógica dos combatentes em luta pela libertação do garrote colonialista.

Pressentindo que o império colonial lhe escapava por entre os dedos, conhecidos os métodos bárbaros de colonização intentados nos países que detinha na África, sabido que a Portugal não importava o número de mortos no confronto em qualquer de suas colônias conquanto que continuasse a alimentar sua economia dependente dos produtos e do consumo africanos os colonialistas portugueses tentaram uma última jogada. Induziram Inocente Camil, membro do P.A.I.G.C. a trair e assassinar Amílcar Cabral, convencendo-o de que libertariam a Guiné-Bissau caso o P.AI.G.C. fosse desarticulado com a perda de sua liderança máxima. E mais: que Camil assim se tornaria um herói de seu povo.

Perpetrado o assassinato, Portugal imediatamente tomou a iniciativa de declarar-se inocente. Uma fonte autorizada do governo português disse em Lisboa: "Não é nosso feitio favorecer o assassinato de inimigos políticos para resolver os nossos problemas". 7

Mas basta lançarmos olhos pelas páginas da História e veremos que em 1965 o líder da oposição à ditadura salazarista portuguesa, General Humberto Delgado, foi morto na Espanha pela P.I.D.E. Eduardo Mondlane, outro importantíssimo quadro da revolução nacionalista em Moçambique e líder inconteste da FRELIMO - Frente de Libertação de Moçambique, foi assassinado em operação planejada pela polícia secreta portuguesa.

Após a morte de Amílcar Cabral, cerca de cinqüenta presos para investigação confessaram agir contra os interesses da Guiné-Bissau sob as ordens e a soldo dos portugueses. Portugal tentou paralisar desse modo a ação política do P.A.I.G.C. em 1973, pois sabia muito bem o que aconteceria nos países africanos de Língua Portuguesa. Por isso mesmo considerava aquele ano "decisivo para a eliminação de todos os movimentos de libertação".8

Mas a luta, apesar do trágico desaparecimento de Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane, continuou, e a independência da Guiné-Bissau e de Moçambique aconteceu juntamente com a de Angola, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe porque ninguém, nenhuma força obscura é capaz de mudar o curso da História dos povos.

Retomemos algumas observações a propósito da conseqüência das invasões européias e da divisão da África ante a cupidez colonialista. Tudo ocorreu à revelia do domínio das etnias locais e o grave resultado logo notado foi "o surgimento de países com fronteiras artificialmente delimitadas. No caso específico da Guiné-Bissau, houve pelo menos mais uma conferência internacional, ou seja, entre Portugal e França (1886), pela qual a região chamada de Casamansa 9 passou para o domínio francês, integrando a parte sul do território do Senegal. Praticamente todos os países africanos de hoje são multiétnicos e multilíngües, embora em grande parte também os europeus o sejam. O que é pior é que o domínio da maioria das etnias vai além das fronteiras de cada país. O fato é que na Guiné-bissau, com seus 36.125 km2 (pouco maior que Sergipe), são faladas mais de quinze línguas nativas africanas. Entre as que contam com um número maior de falantes estão o Fula, o Mandinga, o Manjaco e o Balanta. Com exceção da última, todas elas são mais faladas em outros países da região do que na Guiné-Bissau". 10

Diante desse complexo quadro lingüístico esboçado por Hildo Honório do Couto, passemos agora à leitura de um trecho antológico do intelectual, do político, do poeta Amílcar Cabral a propósito da importância da Língua Portuguesa para os guineenses, que muito bem conhecia a situação lingüística de seu país. As palavras a seguir fazem parte de uma exposição daquele líder aos quadros do P.A.I.G.C., de modo que temos uma didática justificativa da opção pela Língua Portuguesa em tom de doutrinação, mas revestida de valor lingüístico inegável. Dizia aquele revolucionário: "Temos que ter um sentido real da nossa cultura. O Português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua, não é prova de mais nada, senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, é um instrumento, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo" . Assim como o homem inventou o rádio para falar à distância, sem falar com a língua, só com sinais, o homem através do tempo do seu desenvolvimento, começou a falar. Desenvolveu as cordas vocais, etc., até falar. E como a língua depende do ambiente em que se vive, cada povo criou a sua própria língua. Se repararmos, por exemplo, na gente que vive perto do mar, a sua língua tem muita coisa relacionada com o mar, quem vive no mato, a sua língua tem muita coisa relacionada com as florestas. Um povo que vive no mato, por exemplo, não sabe dizer bote, não conhece o bote, não vive no mar. Por exemplo, na língua de certos povos da Europa, as coisas do mar, da navegação, dizem-se como em Português, porque os portugueses viviam junto do mar. Tudo isso tem a sua razão de ser. A língua é um instrumento que o homem criou através do trabalho, da luta, para comunicar com os outros. E isso lhe deu uma grande força nova, porque ninguém mais ficou fechado consigo mesmo, passaram a comunicar uns com os outros, homens com homens, sociedades com sociedades, povo com povo, país com país, continente com continente. Que maravilha’ Foi o primeiro meio de comunicação natural que houve, a língua. Mas o mundo avançou muito, nós não avançamos muito, tanto como o mundo, a nossa língua ficou ao nível daquele mundo a que chegamos que nós vivemos, enquanto o tuga, embora colonialista, vivendo na Europa, a sua língua avançou bastante mais do que a nossa, podendo exprimir verdades concretas, relativas, por exemplo, à ciência. Por exemplo, nós dizemos assim: a lua é um satélite natural da Terra. Satélite natural, digam isso em Balanta, digam em Mancanha. É preciso falar muito para o dizer, é possível dizê-lo, mas é preciso falar muito, até compreender que um satélite é uma coisa que gira à volta de outra. Enquanto que em Português, basta uma palavra. Falando assim, qualquer povo no mundo entende. E a Matemática, nós queremos aprender Matemática, não é assim? Por exemplo, raiz quadrada de 36. Como é que se diz raiz quadrada em Balanta? É preciso dizer a verdade para entendermos bem. Eu digo, por exemplo: a intensidade de uma força é igual à massa vezes aceleração da gravidade. Como é que vamos dizer isso? Como é que se diz aceleração da gravidade em nossa língua? Em Crioulo não há, temos que dizer em Português. Mas para a nossa terra avançar, todo o filho da nossa terra, daqui a alguns anos tem que saber o que é aceleração da gravidade. Não explico isso agora, porque não há tempo, temos muito trabalho. Mas camaradas, amanhã, para avançarmos a sério, não só os dirigentes, todas as crianças de nove anos de idade têm que saber o que é a aceleração da gravidade. Na Alemanha, por exemplo, todas as crianças sabem isso.

Há muita coisa que não podemos dizer na nossa língua, mas há pessoas que querem que ponhamos de lado a Língua Portuguesa, porque nós somos africanos e não queremos a língua de estrangeiros. Esses querem é avançar a sua cabeça, não é o seu povo que querem fazer avançar. Nós, Partido, se queremos levar para frente o nosso povo, durante muito tempo ainda, para escrevermos, para avançarmos na ciência, a nossa língua tem que ser o Português. E isso é uma honra. É a única coisa que podemos agradecer ao tuga, ao facto de ele nos ter deixado a sua língua depois de ter roubado tanto na nossa terra. Até um dia em que de facto, tendo estudado profundamente o Crioulo, encontrando todas as regras de fonética boas para o Crioulo, possamos passar a escrever o Crioulo".11

Sirva-nos este magnífico discurso sobre a importância da Língua Portuguesa para a Guiné-Bissau como testemunho da grandeza intelectual de Amílcar Cabral e de seu descortínio em mais de um domínio do conhecimento humano.Este vulto fundamental da Independência de seu país foi silenciado antes de cumprir uma tarefa ainda mais complexa do que vencer as forças portuguesas da opressão colonial. Refiro-me ao desafio, à empreitada de construção de um país moderno, de uma nação integrada na atualidade mundial, de um Estado nacional capaz de enfrentar externamente outro inimigo mais poderoso ainda: o imperialismo norte-americano disfarçado na máscara hipócrita da famigerada globalização ou do neoliberalismo. Já internamente a luta é contra a formação de uma burguesia corrupta, pois esta procura instalar-se nos organismos burocrático de todos os países do mundo nos dias em curso e a Guiné-Bissau não é exceção.

Afastados os colonialistas portugueses, cumpre não capitular ante o FMI e sua perversa política econômico-financeiro, que tenta em todos os quadrantes do planeta submeter a soberania dos países livres aos seus ditames e exigências. Cabe igualmente impedir, por todos os meios, que uma oligarquia interessada apenas no proveito próprio seja mantida no poder. É imperativo conceber e delinear um caminho único de desenvolvimento que rechace qualquer saber e quaisquer tecnologias não condizentes com a realidade da Guiné-Bissau.

 

De 1974 a 1999 os guineenses foram governados pelo P.A.l.G.C., primeiro com Luís Cabral, irmão de Amílcar, deposto por João Bernardo Vieira, o "Nino", em 1980, momento em que foi inviabilizada a pretendida união com Cabo Verde.

Bernardo Vieira logo é derrubado do poder por um golpe militar liderado de Ansumane Mané em 1999. De 2000 a 2003 o governo passou a ser exercido pelo Partido da Renovação Social, sob a liderança de Kumbala Ialá, que recentemente foi apeado do poder pelo general Veríssimo Correia Seabra.

Neste dia em que comemoramos a data da Independência da Guiné-Bissau, lamentamos a luta interna pelo poder naquele país-irmão, mas temos a certeza que este é o caminho natural no exercício da soberania e da autodeterminação que qualquer povo almeja.

A bem da verdade, se há disputa pelo poder, esta ocorre agora entre os próprios nacionais da Guiné-Bissau, consistindo o atual embate na tentativa de direcionar uma nação nova no contexto internacional e no dos países africanos de Língua Portuguesa. Pouco importa que a perigosa correlação de forças tome momentaneamente uma ou outra direção. Fundamental é que este país-irmão caminha presentemente na História mundial com seus próprios pés. O tempo histórico da Guiné-Bissau, como país integrante de um bloco expressivo no panorama das nações modernas, é ainda muito escasso. O país está por construir e a juventude tem um papel importantíssimo na condução de seu povo para o espaço que lhe está reservado no plano internacional. Para tanto é imperativo ter em mente a condição de país pobre, cujo caminho para o desenvolvimento e a fraternidade não pode ser o dos exploradores instalados no sistema econômico-financeiro internacional.

Por isso, e para retomar a fonte, à origem da primeira revolução vitoriosa contra o domínio português na África, concluo estas palavras com as de Amílcar Cabral, por trás das quais vislumbramos o coração puro e amoroso do guerrilheiro e estrategista que ele foi: "Posso ter minha opinião sobre muitos temas, sobre a maneira de organizar a luta; de organizar um partido; uma opinião que se formou em mim, por exemplo, na Europa, na Ásia, ou ainda em outros países da África, a partir de livros, de documentos, de encontros que me influenciaram. Não posso, porém pretender organizar um partido, organizar a luta, a partir de minhas idéias. Devo faze-lo a partir da realidade concreta do país". 12

Por isso, manifestemos, nós do povo brasileiro a nossa integral solidariedade e apoio, sob todos os modos, aos construtores de um futuro que tem por fim uma humanidade melhor e a paz mundial. Por fim, temos a dizer ao povo amigo que hoje comemora sua Independência nacional: - Salve’ Salve’ Palmas para a Guiné-Bissau!

NOTAS

1 COUTO, Hildo Honório do. "Crioulo e Português na Guiné Bissau" in Humanidades, número 47, Novembro, 1999, p. 56, Editora da UNB, Brasília.

2 FERREIRA, Eduardo de Sousa. África Austral – O passado e o futuro. Lisboa: Seara

Nova, 1977.

3 Op. Cit., pp. 279-280

 

4 Op. Cit., p. 280

5 Apud op. Cit., ibidem

6 Ibidem, ibidem

7 Ibidem, p. 281.

8 Le Soleil. Dakar,31.01.1973.

9 Esta região é rica em petróleo e, mesmo a despeito deste acordo, a Guíné-Bissau mantém uma permanente disputa com o vizinho Senegal pela posse da região fronteiriça de Casamansa.

10 COUT, op. cit. P. 56.

11 Apud LARANJEIRA, Pires. Literaturas africanas de expressão portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 1995, pp.407-8.

12 Apud FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, epígrafe.

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