Abdulai Seck, o caminho da cruz

 

 

 

Abdulai Seck

Abdulai Seck

 

 

 

Por: Norberto Tavares de Carvalho, « O Cote»

 

 

26.09.2007

 

 

Explicar em que condições e circunstâncias morreu o Abdulai Seck – diminutivo Lay - apesar do tempo que passou desde a data do seu desaparecimento até hoje (26 anos), revela-se um exercício doloroso, porquanto as marcas do episódio ainda guardarem formas de pesadelo nas minhas noites de insónia. Este filme, que passo e repasso, teima em perseguir-me. Por isso, o relato que vai seguir não pode de maneira nenhuma ser neutro. Revolto-me ainda hoje por ter assistido à execução lenta de um homem justo.  Ademais, essa justeza será objecto de um segundo texto onde terei, de novo, a oportunidade de falar de Abdulai Seck. 

 

Nesta primeira intervenção, limitar-me-ei a apresentar aos frequentadores do agora incontornável site www.didinho.org, aquilo que foi o corredor da morte dos prisioneiros do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980 e, consequentemente, do Lay Seck. Comecemos pelo início: como foi do conhecimento da opinião pública, Abdulai Seck encontrava-se em Bubaque na companhia do Presidente Luís Cabral. Também é sabido que os dois homens mantinham boas relações. Quem não gostava da companhia do Lay?

 

Tinha o dom de cativar a audiência com constantes anedotas  satíricas e irónicas. E o Presidente da República, que acusava certamente a tensão política instaurada na capital, tinha, obviamente a necessidade de se desanuviar, o tempo de um fim-de-semana. Nessas condições, com o Lay, não podia estar em melhor companhia.  E foi aí que começou toda esta história.

 

Da Ilha de Bubaque, Abdulay Seck foi conduzido para a prisão da Marinha onde se juntou ao Malam Djino Mané, Director da empresa de transportes Siló Diata, Bacar Cassamá, Chefe da Casa Militar da Presidência, Julião Lopes, Comandante da Marinha, etc.  Mais tarde, acabaram por ser transferidos para o Comando Operacional n° 2 (COP 2, ex-Segunda Esquadra) e isolados em celas individuais. 

 

Para que o utilizador possa seguir melhor a presente narrativa, impõe-se uma diagnose sucinta do sistema carcerário erigido nessa altura em Bissau. Com efeito, depois de o novo poder resolver concentrar todos os prisioneiros do 14 de Novembro no COP 2, a prisão passou a merecer a mais alta vigilância em matéria de segurança e a mais baixa atenção no que tocava à saúde, à gastronomia e à sociabilidade dos prisioneiros.

 

Estes passavam 24/24 horas no isolamento, em celas unipessoais, canceladas dia e noite.  Em regra geral, três vezes por dia, através de elementos da nova Casa Militar da Presidência, dirigidos por Benhanquerem na Tchanda, ex-Inspector da Segurança Nacional, [1]  as celas eram abertas para os efeitos de serviços higiénicos de base: de manhã banho e pequeno almoço, ao meio-dia o almoço e à tarde o jantar.

 

Nestes momentos vigorava o isolamento absoluto. No entanto, havia períodos em que esses serviços de base não se realizavam e os prisioneiros passavam então dias consecutivos sem toilettes nem refeições. (Um dia perguntei a um militar se não havia leite e ele respondeu-me assim: Leite? Leite foi para Cabo-Verde!). Estas crises aconteciam principalmente quando o Presidente se deslocava às regiões e levava na sua comitiva as chaves da prisão ! [2] Em suma, ao então Comandante da COP2, o Bitchofla Na Fafé, foi retirada toda a competência na gestão da prisão.

 

O Chefe da Casa Militar da Presidência geria o pavilhão de isolamento a seu bel prazer, só dando contas ao Presidente da República que no fim de contas era o único e verdadeiro carcereiro. E nem sequer se via  a sombra do Ministro do Interior, na altura o Manuel Saturnino da Costa, circular ou intervir nos arredores da prisão. E para impedir eventuais evasões ou infiltrações, unidades das FARP substituiram o dispositivo policial nos pontos considerados mais vulneráveis do COP2.

 

As visitas familiares eram estritamente interditas, bem como jornais e quaisquer tipos de leitura. Noite fora, o Benhanquerem na Tchanda fazia incursões espontâneas no Pavilhão. Certas vezes era de um cinismo puéril quando fingia levar mensagens de esperança aos prisioneiros, outras era abertamente ameaçador, prometendo torturas e fuzilamentos, num jogo psicológico insuportável.

 

O João Saoul Jacob (Johnny) então da Polícia Judiciária, não suportaria tais tratamentos e sucumbiria levado por uma morte horrível e súbita.  Este era o funcionamento do dispositivo posto à volta dos oficiais militares e dos da Segurança do Estado, presos no golpe de 14 de Novembro de 1980. Mas  o que poderia ter levado o Conselho da Revolução a prender o Lay Seck? Eis as duas chaves que podem concorrer para o esclarecimento do acto.

 

Primeira: Muito antes do golpe, Lay Seck, Presidente do Comité de Estado da Região de Gabú, decidira pôr à disposição do Presidente Luís Cabral, do Primeiro Ministro João Bernardo Vieira e do Comissário de Estado das FARP Úmaro Djalló, três cavalos. O motivo, segundo o próprio Lay que nos contou esta história, era simples: tratava-se de um gesto de amizade pois o cavalo representava para ele o amor, a perfeição, a beleza. 

 

Assim, cada um desses dirigentes devia deslocar-se a Gabú recepcionar a sua dádiva. E o primeiro que lá fosse escolheria o seu animal entre os três. Os dois primeiros que lá foram, Luís e Úmaro, serviram-se dos melhores, o que o terceiro e último, não teria apreciado … (Que se saiba que o Úmaro e o Nino já não eram francamente amigos…)  E assim aconteceu. Só que, no interrogatório a que foi submetido, este gesto de amizade à volta dos cavalos foi afinal tomado como uma tentativa camuflada do Presidente do Comité de Estado da Região de Gabú, de atentar, por marabutagens intercaladas,  contra a integridade física de João Bernardo Vieira, com o fim de o neutralizar a mando do Presidente Luís Cabral. Voltarei a falar disto mais adiante...

 

Segunda: Pouco antes do golpe, os dirigentes muçulmanos acharam pertinente reunir-se à volta de um Mouro notável num cerimonial dedicado à prosperidade da Guiné. O Lay herdou a missão de contactar o ilustre Mouro.  O Presidente da República e os dirigentes do Partido-Estado foram postos ao corrente da iniciativa. O próprio Luís Cabral, segundo o Lay, teria dito de pronto que se os camaradas achassem que aquilo fosse bom para a Guiné-Bissau, que realizassem então a cérimónia.

 

O Mouro foi efectivamente a Bissau, rezou e regressou ao seu país. Novo revés da parte da Comissão de Inquérito: O Lay, sob a impulsão do Malam Djino Mané, trouxera um « Grande Mouro » do Senegal para rezar no Palácio no intuito de apregoar infortúnios contra … João Bernardo Vieira! 

 

Retomo aqui o que considero ser, até hoje, um plano urdido pelo próprio Nino, de fazer crer à opinião pública e à classe intelectual de que sempre fora alvo de tentativas de exclusão e de eliminação da sua pessoa. Pura mentira! João Bernardo Vieira merecia respeito e admiração dos dirigentes e militantes do PAIGC. Eu assisti a esta cena que não posso classificar de outra coisa que não seja de respeito e de admiração: António Alcântara Buscardini estava sentado no seu gabinete quando o telefone tocou. Era o próprio Primeiro Ministro, João Bernardo Vieira, quem estava do outro lado do fio. Vi o Buscardini levantar-se e ficar de pé com o auscultador colado aos ouvidos a ouvir o Nino e a dar-lhe conta do que aparentemente necessitava.

 

Que me enforquem se alguma vez a segurança perpretou, sob qualquer forma que fosse, um plano contra a integridade física ou moral do então Primeiro Ministro. É simples, se houvesse o mínimo indício credível à volta desta história, a prova já teria sido apresentada!

 

Houve, efectivamente, um reles indivíduo, que foi dizer isso ao Nino. Trata-se de um ex-prisioneiro de delito comum, um larápio, que foi interrogado na  então polícia Judiciária (PJ) pelo « Johnny ». Libertado foi pedir audiência ao Nino, e disse a este que o « Johnny » o torturara obrigando-o a acusar o Nino de conspiração, mas que ele, o tal larápio, resistira e nada dissera. Este indivíduo, se a memória não me falha, desapareceria pelas fronteiras vizinhas e mais ninguém ouviria falar dele.

 

Se não houvesse o 14 de Novembro, creio que nem o Nino se lembraria dele ! Só que toda a sua manigância foi bem recuperada depois do golpe de 1980 e recaiu fatalmente sobre o destino do João Saoul Jacob, « Johnny ». Voltemos no entanto ao COP2 onde o Lay, depois de ter sido confrontado com as duas acusações, a  saber, a dádiva dos cavalos e o cerimonial do Mouro, se refugiou num mutismo que  não lhe era habitual. Mas cedo retomaria a sua esperança e o seu alento para não se desarmar pois a sua velha amizade com o « Caramó » [3] não podia de forma alguma ser posta em causa por simples orquestrações de maus augúrios – não tinha posto o nome de Nino a um dos seus filhos? « Os últimos serão os primeiros ! », costumava parafrasear, longe de pensar que, para ele, esta frase bíblica não teria sentido, como o pode comprovar o seu calvário de mágoas, de dores, de tristeza e de decepção.

 

Eis o que foi o « Caminho da cruz » de Abdulai Seck: Tudo começou no domingo 12 de Julho de 1981 quando se queixou de dores de cabeça. Dias depois as dores alastraram-se ao estômago e as diarreias apareceram. Lay estava a experimentar as mesmas dificuldades que tivemos na impossibilidade de ingurgitar as refeições que nos eram distribuídas pelos militares: peixes semi-crus com escamas e a saber a água salgada, bocados de arroz que mais pareciam colas ou borrachas… No dia 15, quarta-feira, o Sr. Anibal da Mata, enfermeiro do COP2, deu-lhe alguns medicamentos para acalmar os sintomas.

 

No dia 20, de novo o Lay conseguiu que o levassem à enfermaria onde se queixou de vómitos e de diarreias constantes. Vendo o enfermeiro que o estado do prisioneiro requeria cuidados particulares, foi recomendar ao Comandante do COP2, Bitchofla na Fafe, para que este tomasse as medidas necessárias à consulta médica do doente. Só que Bitchofla não tinha nenhuma margem de manobra.

 

Por motivos organizacionais atrás descritos, só na sexta-feira dia 31 de Julho é que viria a ter lugar a dita consulta. Vendo o estado flácido e anémico do  Lay, o médico cubano fez saber que o prisioneiro precisava de uma alimentação sóbria e que lhe devia ser autorizado receber o comer de casa. A receita e as recomendações do médico deviam passar pela Presidência, antes de serem autorizadas.

 

Só 8 dias depois o « visto » favorável da Presidência permitiria que o Lay recebesse as refeições da família. Durante todo esse tempo, piorava a olhos vistos, armando o espírito com os nossos pálidos encorajamentos. Terça-feira 11 de Agosto de 1981 o médico sugere abertamente a sua hospitalização. O comer feito pela família não conseguira restabelecer o seu metabolismo, pois o estado era de tal forma degradante que não conseguia ingerir os alimentos.

 

Domingo 16 de Agosto, o mesmo médico cubano tomou pessoalmente a iniciativa de ir ver-lo na prisão, manifestando aos guardas a sua preocupação e a urgência de cuidados que o seu estado necessitava. « Não temos homens suficientes para garantir o serviço de guarda no Hospital.», tergiversavam os militares.

 

Terça-feira 18 de Agosto de 1981, 22h15, depois de termos feito muito barulho com as portas das celas, gritando socorro a poucos intervalos, acabou por ser evacuado para o Hospital Militar, na Base Aérea de Brá. Um suspiro de alívio levantou-se em todas as celas. Mas afinal, o diabo tinha pele dura.

 

Algumas semanas depois do seu internamento no hospital, fomos descobertos pela organização secreta que tínhamos posto a funcionar desde meses atrás para poder receber géneros alimentícios e ter notícias da família, o que não nos era  permitido oficialmente. Na quarta-feira 9 de Setembro, o polícia que nos servia de contacto com as nossas famílias, foi descoberto. Como recompensa pelos serviços que prestava às famílias, cada vez que contactava as nossas mulheres, recebia dinheiro delas.

 

Como se diz, começou a mostrar sinais exteriores de riqueza. Preso e espancado, confessou que levava e trazia bilhetes escritos e géneros alimentícios. Em consequência, com a descoberta da ligação secreta, a grande maioria das mulheres foi parar à prisão na mesma noite e levadas para o COP1 (do lado do Cais de Pindjiguiti). Algumas delas foram fisicamente maltratadas e todas foram enxovalhadas e ameaçadas de represálias.

 

A mulher do Lay, Sra. Noémia, por se encontrar em Gabú, tinha escapado à purga, mas não pouparam o seu marido, mesmo doente. Com a descoberta e o desmantelamento da rede ficamos de novo isolados do mundo exteior. Numa rusga inesperada às celas, confiscaram-nos tudo o que parecia papel e tinta. … Felizmente, nenhum de nós foi molestado por isso. Mas qual foi o nosso espanto, quando no sábado 12 de Setembro de 1981, numa hora insólita, o portão principal do Pavilhão estremeceu ruidosamente e sentimos gentes à porta. Trouxeram alguém ... era o Lai Seck!

 

Ainda débil, logo que transpôs o portão, sentou-se no chão com a cabeça encostada à parede. De novo na cela 15 que ocupava, explicou-nos então o que se passara com ele: Recebera quatro litros de sangue e seis garrafas de soro. Fora submetido  a análises médicas e aguardava pelos resultados quando de súbito, na presença do médico, os homens da Casa Militar da Presidência irromperam no seu quarto, desligaram o soro, deram-lhe ordem de se levantar e sem nenhum tipo de protocolo conduziram-no para fora do Hospital, devolvendo-o à prisão.

 

O médico cubano, espasmado, só tivera tempo de entregar-lhes umas ampolas que deviam servir de paliativo ao doente. Até aí nenhum de nós sabia o que se passara fora dos muros a propósito da descoberta do nosso agente e a prisão das mulheres. Mas, um milagre tinha acontecido em tudo aquilo: Um canal continuara a funcionar, o do Arafã Mané! Dado que era aos sábados que recebíamos os nossos correios, com a entrega de roupas limpas e sabão, Arafã deu-nos a notícia que nos fez estremecer.  Acabamos por compreender melhor o caso das rusgas nas celas e o regresso forçado do Lay sem que o seu tratamento tivesse acabado.

 

Nos primeiros três dias, depois de o terem reconduzido às celas, foi-lhe administrado o tratemento previsto pelo médico, depois instalou-se de novo a rotina habitual. As chaves não vinham da Presidência e o doente ficava abandonado sem tratamento. É evidente que o seu estado de saúde teve uma recaída. Na quarta-feira, dia 23 de Setembro, numa voz trémula, proferiu várias considerações que nos deixaram preocupados. Disse, nomeadamente, que o mais difícil para ele, não eram as dores mas o profundo sentimento de abandono que mais lhe pesava.

 

Não compreendia porque é que os seus próprios camaradas, entre os quais o mais destacado dos « Caramós », procediam de tal sorte. Diria ainda que o seu filho Che iria formar-se em Direito e seria ele quem os julgaria mais tarde. Sedimentara-se nele uma forte apreensão. Durante todo este cenário, não parávamos de insistir gritando aos polícias e aos militares para que fizessem algo pois temíamos uma fatalidade.

 

24 de Setembro, aniversário da Proclamação do Estado, uma réstea de luz pareceu iluminar o Pavilhão. Mas à noite, os combatentes presos tiveram que se convencer: Ninguém participaria nos festejos dos oito anos da independência ! O Conselho da Revolução não fizera o gesto esperado que era o de libertar os Combatentes da Liberdade da Pátria, nesse dia histórico.

 

Na noite do dia 25, fizemos de novo muito barulho com as portas das celas, muito mais do que os anteriores. Os gemidos do Lay quase já não se faziam entender, os seus soluços pareciam mais … latidos. Ninguém acudiu ! Mas, em surdina, ouviam-se passos no exterior... Guardo a impressão de que se tratavam de polícias e de militares subalternos desamparados, como nós, de nada puderem fazer pela simples razão de que não tinham as chaves das celas que permitiriam, sem nenhuma margem de dúvidas, salvar Abdulai Seck.

 

Não podiamos acreditar em tal desleixo, propósito ou intenção deliberada pois tratava-se somente de prestar assistência a uma pessoa doente! Na manhã de sábado, dia 26 de Setembro de 1981, um dia como hoje, às 9h00 da manhã, o polícia Fuab, que acabava de entrar de serviço, ao abrir as portas foi imediatamente informado da gravidade do estado do Lay. Fuab foi informar o elemento da Casa Militar que trouxera as chaves naquele dia. No tempo cronometrado que nos era dado para efectuar os toilettes, encher as garrafas de água etc., o Domingos Barros [4] conseguiu limpar e arrumar a cela do doente, mudou-lhe a roupa (vestiu-lhe o seu «  jogging » azul), tecido algodão e fê-lo sentar-se no colchão de costas encostadas à parede. E foi durante esses movimentos de vai-vem que o Lay manifestou o desejo de beber, e porque não tinha aparentemente forças suficientes para se servir de água ele mesmo, preparava-me para o satisfazer quando Morgado Tavares, ex-Chefe da Contra Inteligência Militar, sugeriu nas minhas costas que, bebendo água, o Lay morreria de seguida.

 

Não compreendi esta particularidade, mas obedeci ao critério do antigo combatente. Saíamos e entrávamos na sua cela para estar o mais tempo possível com ele. E foi num dos raros momentos em que se encontrou só, que num derradeiro esforço, ergueu a metade do corpo, pegou na garrafa de água e sorveu alguns goles. Demos conta do seu gesto quando já repunha o corpo no colchão. Nesse momento preciso, quase todos os prisioneiros do corredor ímpar, avisados do gesto, acorreram à cela 15.

 

Eram 9h25, quando os seus olhos viraram ao avesso, fazendo desaparecer as retinas depositando nas suas órbitas dois véus brancos e límpidos. O seu corpo teve um ligeiro estremecimento antes de ficar quieto. Ainda hoje, guardo em mim esse olhar de vidro que me petrificou. Nunca antes tinha estado em presença de um cadáver ! O Arafã Mané, N’djamba, chamou então o Tio Bacar, do corredor par, e anunciou-lhe a notícia nestes termos exactos: « Caramó afatalé ! » O que mais me chocou nesse dia, foi o facto de ter visto desaparecer alguém que durante dois meses e catorze dias, não parou de pedir assistência médica. 

 

Por isso digo que, em consequência, para mim, os factos estão estabelecidos: o responsável pela morte de Abdulai Seck foi e é o Nino. Porquê?

 

Primo: Porque decidiu que a prisão estivesse sob a sua custódia directa e não, sob a competência dos que, mal ou bem, tinham a prática de a gerir, os polícias. E isto chama-se abuso de poder !

 

Secundo: Porque deu-se o caso de contradizer um profissional de saúde, o médico cubano, negando assistência a uma pessoa em perigo;

 

Terço: Porque foi ele quem ordenou que, durante todo o cativeiro, os prisioneiros não deveriam ter visitas familiares, notícias de filhos, leituras ou nutrição e tratamento médico adequados, o que os levou, pela própria dialéctica da natureza, a tomar medidas, se bem que ilegais, para poderem sobreviver à falta de notícias e à ausência duma nutrição sã. Se não houvesse todo o sadismo que envolveu os prisioneiros do 14 de Novembro, Abdulai Seck estaria ainda hoje entre nós, com as suas ironias, a magia dos seus verbos e a sua elegância … a não ser que o Allah resolvesse chamá-lo por outros motivos mais evidentes.

 


[1] Benhanquerem na Tchanda viria a ser executado na base de uma condenação à pena de morte pronunciada por um  Supremo Tribunal Militar, pena cuja comutação seria recusada pelo Conselho de Estado e cujo pedido do Papa não teria resposta na medida em que os condenados foram executados precipitadamente porque as torturas que lhes foram infligidas, puseram-lhes, sobretudo ao Paulo Correia, num estado irreconhecível e seria uma vergonha libertá-los naquelas condições. Trata-se do dito « Caso 17 de Outubro » onde dirigentes e oficiais das FARP foram fuzilados na Guiné, acusados de intentarem um golpe de Estado contra o Presidente João Bernardo Vieira, em 1985. Hoje, sobre o caso, extractos de várias obras literárias, solidamente assentes, poem a nu o maquiavelismo do João Bernardo Vieira.

[2] No seu livro « A luta pelo poder na Guiné-Bissau », ISCSP, Março 2003, Alvaro Nobrega fala-nos da « Visão patrimonialista do Estado » e dá o relevo seguinte, p. 184 : « Um dos melhores exemplos que atesta o modo personalizado como (Nino Vieira) conduzia os negócios do Estado, era a imensidão de chaves que se dizia possuir na sua secretária: eram chaves de prisão que lhe eram entregues ao anoitecer… (…).

[3] Nome atribuído em geral, a pessoas íntegras. Um grupo de amigos, dirigentes, se identificava como sendo « Caramó ». Faziam parte do Colectivo (« Mandjuandade »), o Lay, o Bacar Cassamá, o Nino Vieira e outros.

 

[4] Antigo aluno da Escola Piloto do Partido, graduado Coronel do Exército, Domingos Barros foi assassinado cobardemente em Bissau, em 2003, juntamente com o General V. Seabra,  numa histeria que confundiu amnistia e amnésia.

 

 

 

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