José Carlos Schwarz (1949-1977) - James Douglas Morrison (1943–1971)

 

Vozes do Zodíaco                                                                                                                                

Por: Norberto Tavares de Carvalho, « O Cote »

 21.05.2007

José Carlos Schwarz e James Douglas Morrison pertencem ao mesmo signo astrológico: o Sagitário. Nasceram entre 23 de Novembro e 21 de Dezembro, respectivamente nos dias 6 e 8 de Dezembro.  Tanto impressionaram e tanto fanatizaram que merecem ser referenciados no espaço celeste como as Vozes do Zodíaco.

Diz-se do Sagitário:« É um signo a duas tendências, com o mesmo dominante de idealismo e de busca filosófica. De uma maneira geral, o Sagitário é sincero e generoso. A primeira tendência caracteriza a fogosidade até nos limites extremos. É um rebelde e um combatente. A segunda já é mais tradicional, à procura do ideal quotidiano. »  [1]

Cantores carismáticos, ferrenhos adeptos da literatura e da poesia, rebeldes confirmados, detentores ímpares do verbo, José e James tiveram uma ascenção fulgurante na vida, morreram de forma trágica e transformaram-se em figuras místicas. Ambos tinham 27 anos de idade quando a morte os surpreendeu.

Vale a pena estabelecer certos paralelos entre estas duas legendas.

Cantor do grupo musical The Doors, James Douglas Morrison, aliás Jim Morrison [2], nasceu em Melbourne, na Flórida, Estados Unidos da América. De pai militar e mãe doméstica, atravessou uma fase juvenil bastante agitada. Era uma das muitas crianças que vagueavam pelas ruas de Melbourne: droga, encrencas com a polícia, prisão, etc.

Fã  de Elvis Presley, intelectual engajado no movimento « Protest-song », em particular contra a guerra do Vietman, fez os seus estudos na universidade californiana de Los Angeles. Em 1965, com um outro estudante, funda o grupo The Doors.

Com a voz clara e grave, rouca e intensa de Jim, os Doors conheceram uma impressionante ascenção na cena musical. Até que, num grande concerto realizado em Miami, em Novembro de 1969, Jim foi acusado de ter provocado o público. Teria exibido publicamente um gesto obsceno. O concerto foi interrompido e o Jim conduzido pela polícia. Foram dois anos de processo judicial com interdição de actuar em público. Um golpe rude para um grupo de jovens que estava numa fase musical ascendente, e um ferimento agudo, um rasgo profundo no espírito e na alma do seu tempestuoso líder vocal.

Mas o star do rock ‘n roll sempre negou a acusação. Os outros membros do grupo afirmaram a inocência do cantor argumentando não só que estavam ao lado dele e que o teriam visto provocar o público, mas também que se encontravam na sala vários fotógrafos e jornalistas e que em todas as fotos do concerto, não  aparecia  o pretendido gesto do cantor.

Jim Morrison acabaria por não digerir a decisão das autoridades de Miami. Depois de ter concluído a gravação do álbum « An Americain Player », despede-se do grupo e no dia 11 de Março de 1971, abandona Los Angeles e instala-se em Paris com a sua namorada Pamela Courson.

Na capital francesa, Jim não parava de repetir: « Gostaria de ter ficado… », referindo-se a Los Angeles e ao grupo  Doors.

José Carlos, como se sabe, nasceu na Guiné. De pai guineense de origem alemã e de mãe caboverdiana, fez os seus estudos primários e secundários em Bissau, Dakar e Mindelo. Fã de Kanté Manfila, fundou a orquestra « Cobiana Jazz » com o Aliu Barri e opôs-se abertamente à opressão colonial portuguesa. A voz do José Carlos, incontestavelmente bela, explorando inteligentemente o verbo crioulo, elevou o « Cobiana Jazz » ao mais alto pedestal da cultura musical guineense. Preso pela Pide/Dgs, foi libertado após  o golpe de estado ocorrido em Portugal em 25 de Abril de 1974. No post libertação, optou também, como o Jim Morrison nos seus tempos, pela canção de protesto (Protest-song) contra os desvios à moral social e à linha ideológica de Amilcar Cabral, líder da revolução guineense-caboverdiana, assassinado em Conacri em Janeiro de 1973.

José Carlos considerava que, sem citar o Amilcar Cabral, o líder estava implicitamente presente em qualquer das suas composições. [3]  O que equivale dizer que conhecia perfeitamente a obra do ilustre dirigente africano. José Carlos Schwarz é considerado um dos percursores mais salientes da música guineense contemporrânea.

Nomeado Encarregado de Negócios da Embaixada da Guiné-Bissau em Cuba, despediu-se da cena musical para se estabelecer em Havana. À leitura e breve análise do conteúdo do seu poema « Antes de partir », ressalta à vista uma certa hesitação entre efectivamente o ter que « partir » e o desejo ardente de « ficar ». Em suma, é o caso de já querer regressar antes mesmo de ter partido. « Para que quando tomado pela saudade, verde seja a esperança do regresso breve (…) » [4] Pois já estava com saudades. Saudades dele próprio, saudades do seu ego, saudades da sua ousadia, saudades da sua essência.

Partir sem a alma, para que serve então ? Talvez aí resida o verdadeiro mistério…mas esta é já uma outra história… 

Para que pudessem progredir de facto na cena musical, tanto um como outro tiveram necessidade de se apoiar noutros ídolos. O Jim progrediu ao lado do Jimmy Hendrix e de Janis Joplin e José Carlos beneficiou da cumplicidade da Myriam Makeba, com quem gravou, do seu vivo, o primeiro e único álbum a solo. 

Quando circularam boatos em Bissau de que as canções do José Carlos iam ser censuradas pelas autoridades, Myriam Makeba apregoou de que se a « Apili », o best seller do José, fosse censurada em Bissau, ela mesma cantá-la-ia em todos os Palácios de África. O aviso foi eficaz…

As imagens públicas destes dois homens eram antes de tudo caracterizadas pelas suas belas aparências físicas. Amáveis barbudos, (a barba do Jim aproximava-se da do Camilo Cienfuegos enquanto que a do José Carlos oscilava entre a do Edmundo Dantes[5] e a do

« Che »), o Jim animava sobremaneira os aperitivos maratonas que tinha o prazer de organizar em Paris, onde se disse que se comportava excessivamente como uma « criança-adulta », o José, já mais sóbrio, divertia-se da arbitragem de futebol que fazia com as crianças da rua Vitorino Costa (ex-Lamine Injai) onde morava.

Conhecendo pessoalmente o crooner guineense e tendo lido e visualizado a biografia do rock star, uma nota comparativa se impõe ainda: trata-se da fervente necessidade de reconhecimento. Esta relação ao reconhecimento poderia ser o motivo que conduziu o Jim a abandonar Los Angeles para se instalar em Paris e o José Carlos a se  separar do « Cobiana Jazz », fundar o seu grupo com o qual lançou a série « Apili », abandoná-lo mais tarde em troca de um posto de diplomata no estrangeiro.

Pode ser que tanto um como outro, tivessem o (pre) sentimento de não serem considerados legítimos nas suas aspirações, nos seus desejos e nas suas opções contestatárias. E que esse estado, essa situação servisse para entreter um clima conflitual de incompreensão, o que não era o objectivo que preconizavam. Creio que ambos foram sinceros do princípio ao fim. Diz-se aliás que a música não é uma questão de estilo mas de sinceridade, e que esta é por vezes uma audácia de grande mérito que leva à exactidão …

Visão do Jim, aos três anos de idade, que reproduziu mais tarde no disco póstumo « An American Player »: (…) e os indianos jaziam na estrada, agonizando e perdendo sangue… (…) Foi a primeira vez que experimentei um medo terrível. » Uma das audácias « de grande mérito » do José Carlos, que levou a uma « exactidão » foi a referência que fez ao então Comissário Principal Francisco Mendes « Tchico Té » no seu título « Flêma di Corçom », segundo o que próprio José Carlos confiou a alguém que ainda hoje o confirma: « Se os dignatários se embebedam, os filhos tornam-se murchos ». [6] Contrariamente ao que pretende o virtuoso Zé Manel no seu título « Tchiko Té » [7], de que foram os camaradas que mataram o dignatário em questão, com o devido e merecido respeito que sempre reservei ao camarada Francisco Mendes e à sua respeitosa esposa, existem indícios que pleiteiam a advertência do José Carlos. Aliás, os restos mortais do ilustre líder ainda podem falar.

Jim Morrison e José Carlos morreram de forma trágica.

À volta das suas mortes, circularam rumores de todos os gostos, indo da overdose à crise cardíaca, passando pelo assassinato comanditado pela CIA num caso e pela Segurança do Estado guineense noutro.

No dia anterior à sua morte, José Carlos Schwarz deslocou-se ao Aeroporto de Bissalanca, em Bissau, na companhia do jornalista Óscar Barbosa, « Cancan » e de Idrissa Djalló do então Comissariado de Estado do Interior. José Carlos conduzia o automóvel do seu amigo « Cancan ».   O atraso do passageiro da TAP podia custar-lhe o bilhete. José Carlos foi o último a entrar no avião. Na precipitação do despacho acabou por embarcar esquecendo de devolver a chave do carro ao « Cancan ». E deu-se o incrível espectáculo: o jornalista, aflito, foi à torre de controle do aeroporto interceptar o Comandante do avião, que já tomava balanço na pista para decolar. O aparelho imobilizou-se como por encanto e o « Cancan », lá conseguiu recuperar a chave da sua viatura.

No dia seguinte o Idrissa Djalló contou-nos de que ao ouvir a rádio BBC de Londres, ficara extremamente preocupado. A BBC diluía a informação de que o avião da Aeroflot, Companhia Aérea da então União Soviética,  que fazia a ligação Lisboa-Havana, naquele dia 27 de Maio de 1977, tinha caído no aeroporto da capital cubana e só havia uma sobrevivente de nacionalidade Alemã.

Algumas horas depois, o Comissariado de Estado dos Negócios Estrangeiros dava em Bissau a inacreditável notícia. O impacto fora de tal forma pesada que misturou dores e cepticismos. A causa da morte não vinha de lado nenhum. Se ao menos estivesse doente ainda se podia conceber, mas assim de repente, custava a crer. Daí que todas as espécies de fantasmas tivessem invadido as consciências.

Do James Douglas disse-se também que fora obra da CIA. Mas segundo o testemunho da sua amiga Pamela Courson, o rock star teria sentido um mal-estar no quarto indo deitar-se no balneário da casa de banho, enchendo-o de água e aí ficando estendido. Por volta das 5 da madrugada, a Pamela acordar-se-ia sem o companheiro a seu lado. Precipitando-se à casa de banho, descobri-lo-ia inerte no balneário. Era a madrugada do dia 3 de Julho de 1971.

Entretanto, bem antes da madrugada, a morte do Jim fora anunciada por um DJ numa discoteca de Paris. Quer dizer que a necrologia oficial fornecida pela noiva, não coadnudava com a revelação nocturna do DJ. A partir daí jornalistas do rock resolvem tomar o caso a peito… e a sério. As suas investigações teriam apurado que afinal o Jim que se transformara num alcoólico, tinha acima disso consumido uma apreciável dose de heroína no Restaurante Bar Rock ‘n roll Circus , em Paris, e, sentindo um profundo mal-estar teria ido fechar-se nos toilettes. Pamela e os amigos que lá se encontravam, apercebendo-se da sua demorada ausência, iriam lá buscá-lo, aparentemente já morto, transportando o corpo ao hotel onde morava e indo depositá-lo no balneário, numa desesperada tentativa de o reanimar.

As duas versões da morte prematura do rock star ainda hoje se contemplam. Pamela Courson, que morreria dois anos depois, de … overdose, acabaria por levar o segredo da morte do Jim à cova, o que deu aso às especulações de que teria sido obra de mãos estranhas.

Falando da CIA, o José Carlos teria conhecimento de que as suas deslocações em companhia da Myriam Makeba interessava os serviços secretos da Guiné-Bissau ? O facto porém é que esses serviços suspeitavam da sul-africana ter ligações com a CIA. Nos regimes políticos, como o era o nosso na altura, tudo o que não era do Leste era capitalista e quem diz capitalista diz CIA. Por este concurso de circunstâncias, o «Zé » tinha também sido posto nos olhos do ciclope.

A verdade é que, depois de ter conhecimento desta investigação, nunca mais ouvi falar do caso. O relato deste episódio serve hoje o direito de saber. Mas só os arquivos da segurança, se é que ainda existem, poderão desvendá-lo…

Segundo a lenda, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin, José Carlos Schwarz, teriam desaparecido porque incomodavam.  Mas são sobretudo as circunstâncias inesperadas das suas mortes, que contribuiram para agravar, no imaginário colectivo, pretendidas causas ligadas à política.

Pois, segundo certos analistas, a hipótese da intervenção dos estados na dissimulação das razões de mortes de artistas, parece infundada, dado que esses revolucionários e músicos libertários, por mais controversos que foram, eram antes de tudo, essencialmente artistas, e naquela época, esta categoria ainda não tinha a ambição de dirigir nações. Claro que esta « indulgência » dos estados face aos artistas não se aplica aos regimes abertamente totalitários, como foram os de Augusto Pinochet e Mobutu Sesse Seco, por exemplo. (Lembre-se  do Victor Jara e de Franklin Boukaka...)

Hoje sim, a tendência dos artistas a pretenderem dirigir é inequívoca: Bill Clinton, Vaclav Avel, Arnold Schwarzenegger, George Wéa, Gilberto Gil, etc.

A fascinação de James Douglas Morrison pelos índios da América e do José Carlos Schwarz pelos bijagôs da Ilha das Galinhas é uma outra fronteira comum entre os dois ídolos. O carinho que o primeiro reservava a « Sage » seu cão labrador e o segundo a « Gaúcho » seu cavalo predilecto, constituem provas eloquentes do enorme humanismo que os caracterizava. Os diminutivos Pam (por Pamela Courson) e Nucha (pela Teresa Loff) marcam um brinde carinhoso, testemunho ardente das duas indefectíveis fidelidades masculinas.

E são essas facetas que, para além das images de rebeldes constestatários dos anos 60, no caso do Jim, e 70 no do José Carlos, ficaram nas memórias e marcaram profundamente os músicos e artistas que os sucederam. As sombras destas duas figuras planam nas obras mais interessantes das últimas épocas, tanto nos Estados Unidos (Tracy Chapman, Janette Jackson, Madonna, Lionel Ritchie, etc.) como na Guiné-Bissau (Zé Manel, Dulce Neves, Tabanka Jazz, Justino Delgado, [8] Rui Sangará, Manecas Costa, etc., etc., etc. - a lista é extensa ).

Contrariamente ao discreto funeral do Jim Morrison, no cemitério Père Lachaise [9] em Paris, onde estiveram presentes unicamente cinco pesoas às quais a Pam murmurou um dos últimos versos escritos pelo defunto, o do José Carlos Schwarz conheceu um verdadeiro mar negro que se estendeu por toda a praça de Bissau até o cemitério da Achada.

Alguém imortalizou o momento. Trata-se do Luís, filho de « Nha » Gina Pereira da Estrada de Bôr, o conhecido Luís « Badaró », cuja prosa dedicada a esse momento único tive acesso, em circunstâncias decerto extraordinárias, [10]  e cujo parágrafo ultimo cito, mais ou menos assim, esperando não vexar o autor: « (…) Depois da passagem do cortêjo fúnebre,  a rua ficou  de novo vazia e silenciosa, à espera de um outro desfile ». (Que o Luís me corrija…).

Em poucos anos conseguiram viver emoções que o comum dos mortais leva uma vida inteira a experimentar. Estão sepultados em Paris e em Bissau, dois lugares que há mais de 30 anos, são objectos de cultos e de peregrinações.

Esta sensação de inconformidade perante a morte é algo de contagioso. Em 1997, a maratona de Genebra (ou Escalada) coincidiu com o sábado 6 de Dezembro, data do aniversário natalício do José Carlos, que teria nesse dia 48 anos de idade se o acidente de aviação de Cuba não viesse interromper bruscamente a sua existência.

Atleta nas minhas horas livres, perccorri os 7.200 metros da Escalada, com a sua foto colada nas costas da camisola, onde se podia ler: José Carlos Schwarz – 1949 – 1977.

A anedota foi quando um maratonista me ultrapassou soltando num português límpido, esta frase: « Força ó José Carlos, já estamos quase ! »

E enquanto uns se dispõem a visitar as campas emblemáticas do James Douglas Morrison e do José Carlos Schwarz, outros insinuam que ainda estão vivos, levando em segredo uma existência tranquila, um pouco à moda dos que ainda acreditam terem encontrado Elvis Presley, « O King », com um cheesburger na mão… ou que o José Carlos Schwarz intervem por vezes, com a sua voz de zodíaco, nos círculos de comunhão espiritual reunidos em Bissau.

Enfim, existem dores neste mundo, que nem o tempo consegue cicatrizar.


[1] Traduzido do francês em www.eutraco.com

[2] Mais informações no www.google.com

[3] O Duco Castro Fernandes, seu mentor na guitara, possui ainda o manuscrito do José a este sujeito.

[4] José Carlos Schwarz, Antologia poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990.

[5] Figura  de  « O Conde de Monte Cristo », de Alexandre Dumas.

[6] Em crioulo : « Si garandi di kassa ta tchámi, fidjos tudo ta nórnori » - « Fléma di corçom », J. C. Schwarz.

[7] Zé Manel Fortes, « Tchiko Té».

[8] Só que o público do « Juju » aguarda com (im) paciência a (re) edição do título « Djom-Djom bá luta » !

[9] Para uma visita virtual do cimitério e da tumba do James Douglas Morrison : www.pere-lachaise.com

[10] Responsável dos Arquivos e Identificação da Segurança, quando o Luís foi preso em Bissau os seus afazeres foram postos sob a minha responsabilidade. Foi aí que descobri uma das mais belas prosas, esta de que falo, dedicada ao músico e poeta que fora a enterrar.

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