“VAMOS PARAR DE NOS MATAR, DE UMA VEZ, POR TODAS”

Por: João Carlos Gomes *

 

gomesnyus@hotmail.com

 

João Carlos Gomes

 

12 de Março de 2009

 

O Apelo Certo, Que Para Muitos Guineenses, Chegou Tarde Demais?

Na Guiné-Bissau, a gasolina foi entornada. Que não se raspe o fósforo!!!

 

 

Tentei Salvar A Vida De Nino Vieira E, De Tantos Outros!!!

 

Por ocasião das comemorações da data da independência da Guiné-Bissau, a 24 de Setembro de 2007, o autor desta peça lançou o seguinte desafio ao Presidente João Bernardo Vieira:

 

"Apesar de toda a violência que marcou a sua jornada, os guineenses são actualmente um povo muito pacífico. A evidência está no facto de que (ao longo de toda a sua história), os actos mais marcantes de violência que tiveram lugar neste país, foram perpetrados - não por cidadãos, mas - pelo próprio governo, contra os seus cidadãos indefesos. Daí que:”

 

“Porque é que Nino Vieira não pode aproveitar esta segunda oportunidade de ouro que lhe foi dada de fazer história, para virar a página, fechando para sempre um capítulo vergonhoso da história do país, olhando o povo guineense nos olhos e, assegurar-lhes que: em nome da reconciliação nacional que prometeu promover; para facilitar o diálogo; para pôr fim à impunidade endémica, e; como prova da sua sinceridade e, intenção real de desempenhar um papel de líder nessa tarefa, a partir de hoje – 24 de Setembro de 2007 (data da independência) – nem mais um guineense será objecto de tentativas de intimidação, perseguido, preso, torturado ou assassinado, simplesmente, por causa das suas opiniões, ideias, ou posições políticas? Este é um desafio!!!"

(ver, “As Lições do ‘Não’ da ONU aos Militares da Guiné-Bissau: Mais Um Sinal a Ser
Ignorado?”
, parágrafos 31 e 32 do artigo publicado a 19 de Setembro de 2007, ‘Projecto Guiné-Bissau Contributo’, no site: ‘didinho.org’; secção: ‘Nô Djunta Mon’)

 

 

1. Era Julho de 1993. Ao meu lado estavam mais três diplomatas, um que tinha viajado comigo da Sede das Nações Unidas em Nova Iorque, o terceiro, encontrámo-nos no Aeroporto Charles de Gaulle em Paris, e, o último; veio ao nosso encontro à chegada a Brazzaville (Congo), para em seguida nos conduzir, ao ‘ferry’ (jangada) com a qual fizemos a travessia para completar o nosso itinerário para Kinshasa, capital do Zaire.

 

2. No dia seguinte, logo de manha, fomos levados ao aeroporto onde nos esperava o avião presidencial que, na companhia do Ministro dos Negócios Estrangeiros e doutros assistentes, nos depositou, pouco depois, na aldeia natal do homem-forte que devíamos encontrar.

 

3. Em Nova Iorque, tinham-me advertido: “o teu papel principal será o de servir de, ‘olhos e ouvidos’, do Secretário-Geral das Nações Unidas”. Em parte, por isso, não tinha qualquer interesse na taça de champanhe que tinha sido acabada de colocar à minha frente, e que, apesar do abrasante calor africano, estava embaciada, tão ‘à maneira’ tinha sido servida a bebida. Via-se que o nosso imponente anfitrião era um bom conhecedor do produto, e pela sua maneira de servir, o seu ‘savoir-faire’, era eminente.

 

4. Estávamos em Gbadolite, na residência pessoal do Chefe do Estado, e o nosso anfitrião não era outro senão, o ex-sargento das Forças Armadas do Zaire, Joseph Désiré, e agora, o temido e notório, Presidente Mobutu Sese Sekou. Cada garrafa do requinte francês que abria, era acompanhada de uma explicação detalhada da sua origem, na maior parte dos casos, provenientes de vinhas que eram propriedades de indivíduos amigos próximos, ou mesmo vizinhos, desta ou daquela propriedade sua na Europa. Os cuidados que rodearam a preparação do encontro, da refeição e tudo mais, eram evidentes no seu requinte. Mas, isto é tudo quanto o sigilo e a discrição profissionais permitem relatar, mesmo hoje, dezasseis anos mais tarde.

 

5. Mobutu teve uma morte quase que despercebida (7 de Setembro de 1997), sobretudo porque, ironicamente, aconteceu com apenas dias de diferença após os desaparecimentos físicos de duas outras figuras que, por razões bem diferentes, a história não esquecerá tão brevemente: Diana, Princesa De Gales (31 de Agosto de 1997) e, a Madre Teresa de Calcutá (5 de Setembro de 1997). Ambas dispensam apresentações. O que conta para esta história, é o que representavam as atitudes da Princesa Diana e, da Madre Teresa para o sofrimento de povos martirizados de países como o então Zaire, hoje, República Democrática do Congo, Rwanda, Darfur (Sudão), Angola, Moçambique e porque não, a Guiné-Bissau.

 

6. Na minha mente, nesse primeiro dia do encontro com Mobutu, havia um pensamento persistente: ‘A gasolina já está entornada no solo, e só falta uma faísca, por mais minúscula que seja, para provocar a deflagração, e, este homem não parece entender o impacto e, as consequências da situação que temos pela frente’. Não consigo afastar esse pensamento da minha mente, ainda hoje, sobretudo, cada vez que aterro no Aeroporto da Portela em Portugal e, vejo estacionado esse avião preso, com a distinta insígnia de, ‘República do Zaire’ (traduzido).

 

7. Estamos hoje, em Março de 2009 e, com o benefício de já sabermos o que veio a ser de Mobutu, da sua fortuna, do Zaire, dos destinos de milhões de cidadãos da República Democrática do Congo. Desde a nossa missão, em Julho de 1993, mais de 4,000.000 (quatro milhões) de ‘Congo-Zairenses’ perderam a vida. Por outro lado, tristemente, a família do malogrado Presidente conseguiu identificar e, ou, recuperar pouco ou nada, da vasta fortuna, associada com Mobutu Sese Sekou e que, afinal de contas, era pertença do seu povo.

 

8. Aqui vai uma ilustração da governação do ex-Chefe do Estado do Zaire. Conta-se que um Chefe de Estado de um outro país africano contactou Mobutu para se queixar amargamente, de que tinha sofrido um golpe de Estado injusto. Mobutu perguntou-lhe: “Injusto, porquê?” Lá foi o infeliz explicando tudo quanto tinha feito pelo seu país e, o seu povo. Ao terminar, Mobutu perguntou-lhe: “Como é que os golpistas chegaram ao palácio Presidencial”? O pobre homem respondeu-lhe: “Vieram por estrada”.  Mobutu concluiu: “A culpa é tua, seu estúpido.” E o outro, confuso, pergunta: “Culpa minha, porquê”? Mobutu: “Claro que se não lhes tivesses construído estradas, eles não teriam tido como chegar ao teu palácio para te dar o golpe”!!!

 

9. Para se compreender melhor o fundo desta história, é preciso saber que, por incrível que pareça, o facto é que, tão grande e potencialmente rico quanto é - o Zaire de Mobutu - não dispunha de redes rodoviárias (estradas). As viagens tinham que ser todas feitas por via aérea ou fluvial (rios). E esta, era apenas uma referência numa longa lista de deficiências, já na época. A situação que se vive actualmente, na Guiné-Bissau, tem muitas semelhanças com aquela que o autor desta peça viveu no Zaire de Julho de 1993, confrontado com o desespero do seu povo.

 

10. Não se trata neste caso, por um lado, duma tentativa de colocar Nino Vieira, na mesma lista que Mobutu Sese Sekou, apesar das semelhanças em algumas áreas específicas de comportamento entre os dois. Tão menos se trata, por outro lado, de colocar Nino ao lado da Princesa Diana ou, ainda da Madre Teresa. O certo é que, tal como Mobutu, Nino era um político que não tomava em muita consideração a opinião dos outros. A outra semelhança, era de que, para ambos, os críticos eram tidos como inimigos. Hoje na Guiné-Bissau, a gasolina já foi entornada. Por favor, não raspem o fósforo, guardem os fuzis e, os tanques também.

 

 

 

O apelo da filha de Nino Vieira devia ter chegado muito mais cedo pois, nunca ninguém teve o direito de tirar a vida de ninguém.

 “Isabel Cu (Djuda) Pui Nino Na Mufunessa”

 

 

11. É certo que o momento não é para críticas, mas considerando as circunstâncias, nunca é cedo demais para começar a proceder a uma avaliação honesta de algumas das causas que, para além da impunidade prevalecente, levaram aos actos de barbaridade que, mais uma vez, tiveram lugar na sociedade guineense, e que, culminaram com o desaparecimento de duas das figuras mais altas dos círculos do poder na Guiné-Bissau.

 

12. A exclamação acima, em crioulo, quer dizer que, ‘Isabel - a esposa de Nino Vieira, vista como sendo altamente vingativa - contribuiu de forma decisiva para a desgraça do marido’, é uma exclamação que se ouve de todos os cantos, desde a morte do marido, e que se deve à percepção de ambição extrema conotada com a figura da ex-Primeira Dama, que nunca disse ‘não’ às acções negativas do marido. Pelo contrário, é vista como a ‘instigadora número um’. Verdade ou não, o certo é que, cada pai, cada mãe, traz à terra filhos seus, na esperança de os ver nascer, crescer, desabrochar e tornarem-se em membros produtivos da sociedade. A última coisa a atravessar os seus pensamentos é vê-los um dia sucumbir, à (in)justiça dos homens.  Que Isabel Romano Vieira é uma mulher cruel, é um facto indubitável. As provas existem!

 

13. Descrito como tendo sido o mais emocional dos discursos pronunciados a 10 de Março, no funeral do Presidente João Bernardo ‘Nino’ Vieira, o apelo da filha chegou demasiado tarde para o falecido Presidente e, o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Batista Tagme Na Waie. Tal é o grito de impotência e de dor profunda que, ao longo dos anos, vinha constituindo o clamor soltado das entranhas de muitas mães, esposas, filhos, irmãos, doutros familiares, amigos, conhecidos e, todos quantos se preocupam profundamente com a situação dos direitos humanos na República da Guiné-Bissau. Infelizmente, foram todos ignorados, diga-se, não só pelo defunto Presidente, mas também pela maioria esmagadora daqueles que em vida o rodearam, e, ajudavam a elaborar as listas dos ‘inimigos’ do Chefe, todos candidatos potenciais de um ‘toca-tchur’ (cerimónia tradicional de celebração da vida dos mortos) precoce.

 

14. Teria sido preferível que o apelo feito por Rosa Vieira no edifício do parlamento, tivesse sido proferido há muito mais dias, meses ou anos, e que tivessem sido ouvidos a tempo, de, pelo menos, poupar vidas, e não, de celebrar os seus desaparecimentos. Importa aqui sublinhar a relevância da responsabilidade que todos temos de chamar a atenção mesmo, e sobretudo, dos nossos entes queridos, no momento em que estes estão a cometer erros graves contra os direitos e a integridade física dos outros. Saber dizer ‘não’ em tais circunstâncias é uma virtude que deve ser utilizada e demonstrada, sobretudo, nos momentos em que pode fazer a diferença – tal como foi, muitas vezes o caso, na Guiné-Bissau, de Nino - entre a vida e, a morte.

 

15. A vingança e a impunidade constituem a base do processo que matou: o ‘Projecto de Unidade da Guiné-Bissau e Cabo Verde’; centenas dos ex-‘Comandos Africanos’, e; fragilizou e levou os militantes do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC) a comerem uns aos outros, enfraquecendo severamente o partido de Cabral. Foi também a vingança que matou João Bernardo ‘Nino’ Vieira e Batista Tagma Na Waie, dois companheiros de armas, dois dos últimos grandes generais que a Guiné-Bissau jamais produziu.

 

16. A partir do momento em que sepultaram o seu pai, os órfãos de Nino Vieira juntaram-se a uma lista bem longa doutras centenas de jovens guineenses que perderam alguém a quem um dia chamaram de ‘papá’ e, que, nalguns casos, nem sequer os corpos foram entregues para que houvesse funeral digno: Paulo Correia; Viriato Pã; Veríssimo Correia Seabra; Domingos de Barros; Ansumane Mané; João da Silva; Nicandro Barreto; Constantino ‘Tchutchu Aksson’ Teixeira; Lai Seck; Pedro Ramos; Robalo de de Pina; Mohamed Lamine Sanhá; N’Fon Djata; Benhankeren Na N’Tchanda; Buota Na M’Batcha, entre outros. A esta lista se podem juntar também os nomes de milhares de guineenses, homens, mulheres e crianças mortos de cólera; mães e crianças, que morrem em partos, porque não há energia eléctrica na maternidade; doentes que ficaram no bloco operatório, porque a luz se foi no meio duma simples intervenção cirúrgica, no hospital Simão Mendes, o único do país, e que, nem por isso, merece a designação.

 

17. Ironicamente, as imagens dos cuidados de limpeza, reparação e, pintura que tiveram lugar, no cemitério de Bissau, pela primeira vez em anos, esta semana, em preparação para o funeral de Nino, recordam a profecia segundo a qual, os políticos devem se lembrar de que: Hospitais, prisões e, cemitérios, devem sempre ser bem cuidados porque, para lá vamos todos, um dia!

 

18. Os filhos e outros familiares dos responsáveis pelos erros – Nino não foi o único - não podem nem devem ser culpados pelos actos cometidos pelos seus. Aliás, exactamente por causa da tragédia à volta da morte do pai, os filhos do Nino – e de Tagme - têm agora uma oportunidade única de fazer o que o pai não soube, não quis, ou, não pode fazer: assumir e cumprir um compromisso sério para com o povo, contribuindo para sarar as feridas que constituem as profundas divisões que hoje caracterizam a sociedade guineense, através dum processo genuíno de reconciliação nacional. E, todos devem apoiar e guiá-los, no sentido de cumprirem este objecto supremo, se assim o quiserem. Por agora, na sua hora de dor, merecem o carinho, apoio e consideração, de todos, como qualquer outro que perde um ente querido, sejam quais forem as circunstancias. No entanto, também não é menos verdade que: 

 

19. Enquanto eram as chacinas dos outros que estavam a ter lugar na Guiné-Bissau, infelizmente, nunca ninguém ouviu qualquer dos familiares de Nino Vieira vir a público e, pedir que se ponha, ‘fim às matanças’. Por isso, a grande pergunta que impõe fazer hoje, é: Porque é que tal apelo teve que ser lançado, pelos filhos, só, quando foi a vez de, Nino Vieira?

 

20. Esta é uma questão que deverá merecer uma ponderação profunda por parte de todos os familiares, amigos, apoiantes, ‘tchutchiduriss’ (instigadores) e, outros próximos do falecido Presidente, inclusive, dos seus filhos mas, sobretudo, da mulher, Isabel Romano Vieira. No entanto, o verdadeiro valor de tal chamada de atenção, reside, não em sentimentos mesquinhos de rancor ou vingança, mas, na relevância da lição que deve constituir no futuro, para todos aqueles que são detentores do poder, assim como, os seus mais próximos, seja na Guiné-Bissau ou, em qualquer outra parte do mundo: Não há homens, ou mulheres, imortais!

 

* Escritor/Jornalista

Nova Iorque

 


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