Ter em conta as realidades do país

 

 

 

Por : Fernando Casimiro (Didinho)

didinho@sapo.pt

27-08-2003

 

Foi recentemente anunciada em Bissau a criação da primeira Universidade privada da Guiné-Bissau, denominada Colinas de Boé, que será inaugurada a 24 de Setembro próximo. Foi igualmente dado a conhecer que esta Universidade foi criada por uma associação denominada Grupo de Apoio ao Desenvolvimento Cultural e Científico da Guiné-Bissau, integrando nomes de algumas figuras da sociedade guineense como "Huco" Monteiro, Fafali Kudao, Júlio Sá Filipe, Flora Gomes e Braima Camará. Ainda segundo a nota informativa, o investimento do projecto da Universidade ronda os cem milhões de Francos CFA, dos quais 30 por cento já estariam assegurados graças ao financiamento da embaixada da França na Guiné-Bissau.

 

É certo que a Constituição guineense garante o direito da criação de escolas privadas e cooperativas, como também é certo que a Constituição delega ao Estado a promoção gradual da gratuitidade e igual possibilidade de acesso de todos os cidadãos aos diversos graus de ensino, porquanto todo o cidadão tem o direito e o dever da educação.

 

Sou apologista da procura de soluções para o apoio de áreas específicas com carência acentuada, quando se pretende apoiar determinada causa. O sistema de ensino na Guiné-Bissau carece de programas estruturais, porquanto, os vários governos nunca terem definido estratégias prioritárias a médio ou longo prazo, nem apresentado o tipo de ensino que se pretendia e se pretende para o país, nem ouvido os intervenientes directos ou indirectos em todo o processo envolvente da área educativa. O reflexo dum deficiente serviço de administração pública é imagem de marca nas instituições nacionais, sendo o Ministério da Educação um exemplo disso.

 

Num país onde a concessão de licenciamento para determinado fim nem chega a ser equacionada, pois é sinal de entrada de dinheiro, o Estado pura e simplesmente abdica do parecer dos técnicos das diferentes áreas e aprova tudo...O que posteriormente origina falhas, pois nada foi levado em consideração no que deveria ser a coerência, o rigor e o sentido de defesa dos interesses nacionais entre outros factores a considerar.

 

É assim que existem escolas privadas um pouco por todo o lado, com critérios de funcionamento duvidosos e que devido à situação sócio-económica do país reforçam a ideia da existência de classes privilegiadas, porquanto, calculando os rendimentos das famílias, talvez poucas tenham condições materiais, isto de forma transparente, para pagar por exemplo as mensalidades dos muitos filhos que cada família tem a estudar nas "privadas", para além de fazer o restante da vida familiar, com os preços dos produtos de subsistência a serem incomportáveis para a maioria das bolsas guineenses... 

  

A Guiné-Bissau, à beira de completar o seu 30º aniversário de independência, conseguiu através de políticas de cooperação, a formação de quadros essencialmente de nível superior em diversos países do mundo, mas, como não havia uma política de selecção das necessidades do país, muito menos de defesa dos seus interesses, caiu-se no erro de se formar muito da mesma matéria: o país presentemente tem muitos economistas, muitos engenheiros, muitos advogados, muitos sociólogos, os médicos nunca são demais, muitos licenciados em relações internacionais, etc. Mas, esqueceu-se que um país não se constrói só com quadros superiores.

 

Ao abrigo da cooperação foram criadas primeiramente a Faculdade de Direito de Bissau e mais tarde a Faculdade de Medicina. A meu ver, volvidos estes anos todos e depois de tantos desacertos nas orientações do Ministério da Educação, convém antes de mais mentalizar as pessoas de que a formação académica é um COMPLEMENTO da formação cultural e científica de cada um e por si só não dá direito à entrada directa no mercado de trabalho nos dias que correm, precisamente por excessos de quadros na mesma área, aliado ao desenvolvimento de novas tecnologias que por um lado são inovadoras e funcionais, mas por outro são apostas evidentes na redução de encargos pessoais e quiçá económicos das empresas e instituições.

 

A função pública guineense está sobrecarregada com pessoal administrativo que não tendo uma produção directa, mas estando enquadrada tem dado prejuízos ao Estado. É urgente fazer o levantamento dos quadros nacionais formados pelo programa de concessão de bolsas de estudo, corrigir a política do Ensino Superior quanto aos cursos a administrar e apoiar a formação técnico/profissional de quadros da área industrial, da saúde, agricultura, pescas, construção civil, hotelaria, turismo e artesanato, por exemplo de forma a proporcionar maiores qualificações e espaços de manobra na busca de enquadramento profissional dos guineenses.

 

Convém desenvolver a política de alfabetização, de modo a dar a todo o povo guineense a satisfação e o sentimento de igualdade de circunstância no que aos direitos e deveres dos cidadãos na área educativa diz respeito.

 

Convém fazer chegar escolas básicas a todo o país, incentivar as populações para as vantagens da educação e formação em tudo que diz respeito à vida. Por estes motivos, não concordo com a criação duma Universidade privada na Guiné-Bissau que vá administrar licenciaturas em áreas como Sociologia do Desenvolvimento e Economia. Também irá administrar cursos de bacharelato em Contabilidade, Jornalismo, Publicidade, Gestão de Estabelecimento, Línguas e Tradução. A Universidade terá igualmente um instituto de governação que reciclará os quadros de Administração Pública e ministrará cursos de apoio à reforma do Estado.

 

Ora aqui pergunto, porque não o Estado a tratar da reciclagem dos seus quadros, criando condições próprias para isso em vez de tirar dinheiro dos cofres do tesouro público para fomentar uma instituição privada...? Do balanço que fiz em relação à situação dos quadros guineenses, chego à conclusão que esta Universidade irá contribuir ainda mais para o desenquadramento dos recursos humanos do país, toda ela virada para serviços de secretaria.  

 

Outro aspecto que acho não ser correcto, reflectindo uma certa promiscuidade a nível de INFLUÊNCIAS, é o facto de se ter dado a conhecer que 30 por cento do investimento da Universidade já estaria garantido graças ao financiamento da Embaixada da França na Guiné-Bissau....

 

Será que as representações diplomáticas estrangeiras na Guiné-Bissau se encontram lá para participarem em associativismos de qualquer um...? Será que a França aceitaria da mesma forma, que alguma representação estrangeira em Paris financiasse o que quer que fosse, ligado a associativismos franceses...? Claro que não!!!

 

É um mau princípio, quem financia Universidades também pode financiar "outros" projectos...Se a França quiser ajudar a Guiné-Bissau, terá que ser dentro das normas de cooperação bilateral, ou então a nível de organizações não governamentais ou privadas.

 

A Universidade em questão não foi definida como Instituição não lucrativa, por isso, o seu propósito independentemente de formar quadros é o LUCRO e sendo assim, não pode de maneira nenhuma, usufruir de financiamento que vá beneficiar economicamente quem quer que seja, como se em nome do país se estivesse a financiar. Peço uma reflexão sobre este tema. Há que deixar de ser indiferente a aspectos importantes na vida do país, que podem e devem ser discutidos na altura e não quando já estiver tudo aprovado.  

 

 

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