Status quo precário ou frenesi de mudança?

 

                                                                                            

       

                                                                

 Avelino Gomes Costa*

avelcost@gmail.com

Escrito em Brasília - DF, 10 de Março de 2009  

Pedido de publicação: 07.02.2010

 

 Assumi como fazendo parte da modesta contribuição depois de esmaecido o contraste entre ser cidadão e sua devida missão, elaborar o presente trabalho que no seu conteúdo representa uma forma singela de abordagem. Por esta razão, reza hipotética que se descubra posteriormente alguma inconveniência interpretativa ou inadequação de natureza analítica do contexto em que foi abordado. Porém, caso houver peço indulgência ao leitor. Aliás, se no rol das coisas contidas neste trabalho, houver uma que por razões alheias a minha vontade possa ofender, confesso que não há pelo menos uma que tenha sido escrita com má intenção. Au-delà, j'espère tomber sur un recto verso de moi.

 

 O debate político da época quanto ao progresso recomenda forte e aprioristicamente a organização do Estado. Se assim fosse, resultaria irrecusável então, a ideia de que hoje um dos factores considerados cruciais para o desenvolvimento é a presença de instituições fortes, dos mecanismos institucionais da gestão da ética no sistema administrativo, duma justiça implacável e de um Estado eficiente que no contexto de boa governação invista nas capacidades humanas e promova as reformas necessárias ao desenvolvimento. Nessa suposição arrojada, dir-se-ia portanto, que o raciocínio utilitarista encontrou aqui com veemência seu fundamento e desde logo, cumpre dizer que o desenvolvimento será tanto mais rápido quanto as incitações dos agentes forem socialmente organizadas a partir de Estado-nação. Entretanto, é para essa tarefa gigantesca de desconstrução do obsoleto, e simultaneamente de construção do devir que vejo no tema e nas circunstâncias do momento, razões suficientemente importantes para se discorrer sobre o assunto em epígrafe.

Ou seja, não se pretende nos limites deste trabalho, escrutinar exaustivamente um debate que circunscreve um conjunto de trabalho tão extenso. Porém, distanciando-se de emergir na órbita do desejável teor de precisão científica, interessa-me especificamente tratar de maneira simplista e sucinta duma questão bem precisa: a relutância de promover o Estado pela governança sábia.

Se a política guineense na virada do século, é ainda marcada pelo desafio de vencer as patologias e disfunções burocráticas que ainda imperam no sistema administrativo do país, em obediência a esta lógica, diria que a meticulosa precisão de trazer à tona esta questão, gravita em torno da necessidade de discutir a dinâmica da acção governativa sob o modelo de Estado que se pretende instituir na Guiné-Bissau. Posto isto, deve-se notar igualmente que a obsessão pela centralização autoritária é ainda um paradoxo político de modus operandi e tem raízes profundas que mergulham directamente na experiência de planificação de partido-Estado na Guiné-Bissau. Todavia, não se trata como é evidente de aferir a historicidade desse processo. Não é propósito meu. Se o fizer como respaldo, será apenas para deixar evidenciado o que existe de marcante. Enfim, meu foco é noutro extremo.

Destarte, que a observação atenta e acurada da realidade que se vive no país, tomando como referência sua própria conjuntura política, social e econômica, em boa verdade remete-nos a um discernimento tão nítido de sua complexidade. A asserção não é falsa como se observa. Não se pode, no entanto escamotear essa evidência, razão pela qual surgem generalizações de que estamos perante um frenesi de mudança e uma questão de exigência política que se vê necessária para o aprimoramento da gestão do domínio público. Com efeito, creio e em retrospecto as diversas manifestações históricas sendo hodiernamente pertinente para ter uma ideia de como se arquitectou a nossa senda identitária, entrelaçando-a com a projecção do desenvolvimento que hoje se quer – reformar o Estado neste bojo, encontrou merecidamente sua justificação e consequentemente a seu favor, um manifesto plausível.

Em voga como uma questão emblemática, delicada, controversa e explosiva, muitos a reputam como crucial para a remoção dos obstáculos estruturais ao desenvolvimento do país. Outrossim, as aludidas manifestações de descrédito da grande maioria em relação aos governantes mostram claramente que os guineenses querem uma mudança nas práticas de governação e na actuação dos políticos, desejando um novo rumo para o país. Em vista disso, uma vez admitindo que a perplexidade e a indignação já se reflectem no humor das pessoas, seja qual for o voluntarismo do governo em desenvolver esforços nesse sentido, não se vê muito bem, como é que o mesmo isoladamente poderá viabilizá-la em que pese não ser só o único estorvo a iteração dos actos militares em apuro, mas sim uma enormidade de factores.

Daí, uma tomada de consciência laboriosa resta inoperante, se tivermos em conta a tamanha responsabilidade que temos para diagnosticar e determinar os parâmetros de sua consolidação. Não deixa de ser contudo, menos verdade que face a imensa e confusa realidade em relação ao ritmo pelo que caminha a Guiné-Bissau, o cepticismo se enleva e concomitantemente vários questionamentos e reflexões se apartam nos cidadãos sobre o futuro da democracia e governabilidade no país. Aliado a esses factores, torna-se relevante ressaltar que entre o sonho e a realização existe, um troço chamado trabalho. O admirável produto da inteligência humana, que quando concebido na forma de superação de obstáculos decorrentes da desorganização, tende a libertar a sociedade de seus impasses corriqueiros e, por conseguinte gerando alento à concretização de suas aspirações elementares.

Na verdade, há mais duma década que tem sido ponto comum em sucessivos governos, dizer que a Guiné-Bissau precisa duma “reforma de Estado”, mas em geral a iniciativa se reduziu até agora a meras reformas administrativas inspiradas em mudança de organograma e no deslocamento errático de funções administrativas segundo momentâneas conveniências políticas. Ora, é claro que devemos acautelar-nos com os determinismos que espreitam paralelamente os pragmatismos, porque a dinâmica do desenvolvimento é essencialmente estocástica. Mas, estando diante dum quadro de instituições frágeis, desarticuladas ou até mesmo inexistentes, qualquer solução externa parece condenada ao fracasso, visto que a classe política guineense ainda padece duma praga insidiosa em procurar respostas pragmáticas dentro de estratégias ambiciosas. E como resultado disso, tornou-se renitente a cultura de desvio de procedimento amplamente conjugada com o despreparo e lentidão do poder judicial, que em parte corrobora na ideia de precariedade do compromisso que reveja o verdadeiro contrato social e que combata a coexistência da anarquia e ingovernabilidade.

Em sentido amplo a boa governação perpassa pelos cânones da acção legiferante e das leis que dela emanam – sua aplicabilidade efectiva como instrumento de regulação do convívio social, pela criação e reforço das competências do Estado (sua capacidade regulatória) e de reformas do sector público em particular e não pela criação excessiva dos ministérios e secretarias de Estado como tem sido notório ultimamente em jeito de honrar as dívidas contraídas no cálculo da maratona eleitoral pela ascensão ao poder. Recusar esta visão das coisas, é retardar a percepção da imperatividade da reforma e obviamente refugiar no desalento. De maneira geral, recorde-se que a expansão da acção do Estado guineense nas actividades da sociedade tem-se processado ultimamente a um ritmo transversal. Ademais, aquilata-se ser ainda a visão negativa do seu papel que também contribuiu para a fragilização do mesmo, que já por si só enfrentava algumas dificuldades. A lógica mais abrangente desta análise obriga a constatação óbvia, quer do ponto de vista político, quanto administrativo, que em tais assertivas distanciemos de colocar à prova o esforço voluntarista e patriótico para enquadrar e racionalizar a mudança almejada, se não a evocação dum certo imobilismo. Ancorado nesta tónica e face ao crescente avanço dos princípios da modernização administrativa, corolário do processo da reforma do Estado ou simplesmente de reinvenção do funcionalismo público, a preocupação e o desafio que se coloca nesta perspectiva, deve corresponder a uma iniciativa decididamente voltada para repor o sentido da eficiência institucional.

A Guiné-Bissau conforme evidenciada pelos analistas e censurada em múltiplos quadrantes é ainda um país subdesenvolvido institucionalmente, atrasado e empobrecido pelo despotismo corrupto dos “camaradas” e tem demonstrado muitas dificuldades na condução de seu desenvolvimento em quase todos os vertentes da sua real sustentabilidade. Um fato marcante das últimas décadas tem sido a instabilidade político-institucional, que além de ter impulsionado a generalização duma cultura política impregnada de golpismo e autoritarismo, também se impactou fortemente e se traduziu em afronta às instituições da república, dando percepção clara à existência dum abismo entre as fundamentadas considerações do Estado de direito democrático que subsequentemente reforça em larga escala a incipiência da racionalidade em relação ao exercício precário da cidadania rumo ao desenvolvimento. Dessa postura rígida e sem maleabilidade pelo respeito ao primado da conquista democrática e de um tempo novo civilizatório, traz à luz uma autêntica afirmação de violação sistemática dos direitos humanos.

Entretanto, o que experimentamos em vários ciclos destas rupturas e a normalidade com que a sociedade guineense assume e integra as vicissitudes da vivência duma cidadania plena, num quadro de liberdade restrita, mesmo no que se refere a fenómenos outrora tão contundentes ou sensíveis, como os da alternância do poder político em meados da década de 90, que foi emblematicamente cunhada pela transitoriedade do regime monopartidário ao pluripartidarismo político, ainda nos resta muito que fazer pelo dever comum de isentar o país de seu marasmo estático.

Dissipada a nebulosa da transição para a democracia, é hoje uma evidência que não haverá condições de desenvolver o país, sem implementação mínima e efectiva duma série de actividades, medidas e projectos inspirados na aritmética de correspondência aos anseios dos cidadãos. O auto-encontro com as emoções do momento político em que se encontra o país, não obstante sua gradual deterioração na gestão do domínio público, no meu entender, pressupõe de modo impreterível a urgência duma reforma dentre várias outras tarefas que se elegem como prioritárias. Subjacente a essa colocação está la mise en ouvre de algumas tarefas: a começar, tem particular relevo nesta empreitada a organização do Estado e a conscientização da sociedade civil em geral e como suporte a interiorização do sentimento patriótico que tanto precisa a Guiné-Bissau para que seus problemas, os de cariz organizacional sobretudo, possa fundir em apreço, atando os consagrados valores dum nacionalismo arcaico e a sublime tendência de repensar a configuração do aparato estatal, adaptando-a às exigências impostas pela nova ordem societal, tão difusa no contexto da governabilidade e da democracia. Nesse pano de fundo e numa colocação imediatamente anterior, apraz-me registrar que embora se reconheça existir no país, uma rígida matriz política no regramento de sua gestão, ainda atrelada a um emaranhado de conformismo, nepotismo e um largo espectro de mito de invencibilidade ou imutabilidade das coisas, mas, há uma coisa na qual em verdade não acredito: não acredito que uma verdadeira reforma de Estado seja de todo impossível. É, pois, fundamental entender que na Guiné-Bissau, o que tem faltado umas vezes mais e outras vezes menos - e vê-se isso na história das reformas preconizadas e ou realizadas, seja pelo seu delineamento em moldes conjunturais ou pela óptica duma linhagem estrutural que se queira assistir, é a falta de vontade para sua consecução. A tal vontade política.

Ora, na condição de modesto estudioso algo distante, ultimamente tenho me cogitado bastante em dar ênfase a essa problemática. Uma preocupação que não veio do nada, por assim dizer, mas, sim porque realmente tencionamos melhoria para o país. Se porventura, tal ensejo um dia viesse a concretizar, independentemente do tempo que durar os trabalhos em torno da inércia e transversalidade das prerrogativas inerentes ao nosso Estado, o momento será vislumbrado de optimismo para engendrar e recrudescer uma nova esperança. Um novo ciclo de vida condigna, que é relativamente salutar e augurada por todos.

Perante os desafios de natureza tão diversa e complexa, nada permite deduzir que a Guiné-Bissau não poderá colmatar rupturas e atrasos, embora seja previsível que só os conseguirá a longo prazo. Reconheço, pois, ser doravante um desafio enorme. Mas, para não seremos acusados de não ter tentado gestar algo de concreto em prol do bem estar social, a nossa geração que creio generosa e sensível a esta linguagem está desafiada a travar na construção colectiva e democrática uma grande batalha. Assim, animada do firme propósito na busca de soluções airosas para os problemas que afectam a Guiné-Bissau, há de ser comumente um trabalho insistente de parceria e sinergia que paulatinamente vai se generalizando nos diversos e variados cenários sociais com o fim de abater os  fantasmas  tenebrosos, insolentes que ameaçam a convivência. O mesmo se segue acreditando em medidas da justiça social, essenciais à reconciliação e estabilidade política. Embora, seja na actualidade problemas que têm vindo a ser objecto duma descurada oportunidade de tratamento devido, e não tenho dúvidas que por este prisma estamos a fugir do caminho sensato.

Entretanto, a presunção de que o desafio maior de um povo consiste na luta pelo seu bem estar, um povo então, para subsistir precisa desenvolver um ideário, um fundamento para sua coesão, continuidade e mesmo para justificar sua conduta internamente em relação a si mesmo e externamente em relação aos outros. Isto parece a meu ver traduzir correctamente a ideologia cabralista de Unidade Luta e Progresso, na qual se percebia a necessária imbricação e interdependência triática desses valores dando sentido pleno ao Estado e nação.

 Feitas essas observações e para uma conclusão moderada de todo exposto, a grande falha da visão futurista ou do futuro aos olhos da época, está em não aceitar e encarar como uma aposta, o desafio irreversível da reforma orientada por modelos gestionários de entrosamento com a sociedade e entender que o futuro ainda exigirá do Estado guineense, mais que meras correcções estruturais para atender as episódicas demandas de conjuntura. Enfim, um Estado renovado em sólidas bases éticas, o qual permita um tipo de convivência social mais límpida, mais tolerante e mais solidária.

 

         * Diplomado em Ciência Política pela Universidade de Brasília – UnB/ Brasil


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