Saciar  sedeS nas relações entre a África e o Brasil: nova era diplomática?

 

A África tem sede de Brasil


Celso Amorim

28 de maio de 2011

Escrevo este artigo no dia dedicado à celebração do continente africano. E faço isso com muita alegria, por constatar, pela leitura do discurso pronunciado pelo ministro Antonio Patriota na cerimônia com que o Itamaraty marcou a efeméride, que os conceitos e princípios que se desenvolveram durante o governo do presidente Lula continuam a presidir a política africana de Dilma Rousseff. Patriota deu, ele próprio, os dados que ilustram o vertiginoso crescimento das nossas relações com o continente africano durante os últimos oito anos.

A África sempre esteve no imaginário da política externa brasileira, embora nem sempre de forma coerente ou consequente. Durante a ditadura, o Brasil foi lento em dar apoio aos movimentos de libertação das antigas colônias portuguesas. Graças à visão de dois homens, Ovídio Melo e Italo Zappa, nos redimimos em parte desse pecado ao agirmos de forma pioneira e corajosa reconhecendo o governo do MPLA em Angola.

Na primeira viagem que fiz à Africa durante o governo Lula, visitei sete países, seguindo a orientação do presidente, mas instigado também por uma cobrança de minha mulher, que, ao me ouvir relatar iniciativas quanto à Venezuela, Mercosul etc., me interpelou: “E pela África vocês não estão fazendo nada?” Isso foi em abril de 2003, quando decidíamos nossas prioridades e refazíamos nossas agendas, dominadas então por temas impostos de fora, como a Alca.

Desde aquela primeira visita, observei a realidade que inspirou o título deste artigo: “A África tem sede de Brasil”. De Moçambique a Namíbia, de Gana a São Tomé e Príncipe, cada um a seu modo e de acordo com suas características e dimensões, veem no Brasil um modelo a ser seguido. Lula revelou-se o mais africano dos presidentes. Pediu perdão pelos crimes da escravidão, visitou mais de duas dezenas de países e abriu caminho para ações de cooperação e negócios. Essa determinação em não deixar que a África escapasse do radar das nossas prioridades provocou muitas críticas da nossa mídia ocidentocêntrica (o leitor perdoará o barbarismo), que só arrefeceram quando o presidente chinês visitou sete ou oito países em mais ou menos 12 dias. Aí os nossos “especialistas” passaram a dizer que a nossa ação era insuficiente…

Uma agência de notícias publicou, a propósito, em fevereiro um excelente artigo comparativo entre as ações do Brasil e da China na África. Em suma, o Brasil ganha na empatia e no jeitinho (no bom sentido), mas perde de longe nos recursos investidos. E para quem nunca se deu ao trabalho de olhar, além do interesse comercial (a África seria hoje, tomada como país individual, o nosso quarto parceiro comercial, à frente do Japão e da Alemanha), o continente africano é um vizinho muito próximo com o qual temos interesses estratégicos. A distância do Recife ou de Natal a Dacar é menor que a dessas cidades a Porto Velho ou Rio Branco. Nossa zona marítima exclusiva praticamente toca aquela de Cabo Verde. Isso sem falar no enorme benefício que uma maior relação com o Brasil traria para a África, contribuindo para afastar a sombra do colonialismo renascente, agora movido não só por capitais, mas por tanques e helicópteros de combate.

Tive recentemente o privilégio de passar quatro semanas na Kennedy School of Government, em Harvard. Como já comentei em outro artigo, pude observar aí a preocupação (quase obsessão) com temas relacionados com a segurança, até certo ponto compreensível em um país envolvido em duas guerras (ou três, se incluirmos a Líbia, como devemos fazer) e perplexo diante das mudanças que têm ocorrido fora do script inicialmente traçado para a implantação da democracia de fora para dentro e por força das armas.

Houve também oportunidades para conversas sobre temas mais amenos, mas igualmente importantes, com professores provenientes dos mais diversos recantos do planeta. Uma delas foi com o queniano Calestou Juma, que ocupou cargos internacionais na área ambiental e que publicou há pouco um livro sobre agricultura africana. Juma completou seus estudos de doutorado no Brasil, em Piracicaba, atraído pela noção de que o nosso país é um modelo a ser seguido. Não sou técnico em temas agrícolas, mas pude relatar a Juma algumas de nossas iniciativas nesse campo, como o escritório da Embrapa, em Gana, e a experiência pioneira de uma fazenda-modelo de algodão no Mali, que visa a beneficiar alguns dos países mais pobres do mundo. Foi de Juma (a leitura de cujo CV na Wikipédia recomendo aos interessados em aprimorar nossa cooperação com os vizinhos de além-mar) que ouvi a melhor formulação do que o Brasil significa para as esperanças de desenvolvimento da África: “Para cada problema africano existe uma solução brasileira”. Se a nossa agência de cooperação estivesse em busca de um slogan, não haveria melhor. Pagando direito autoral, é claro.
 


Celso Amorim é ex-ministro das Relações Exteriores do governo Lula. Formado em 1965 pelo Instituto Rio Branco, fez pós-graduação em Relações Internacionais na Academia Diplomática de Viena, em 1967. Entre inúmeros outros cargos públicos, Amorim foi ministro das Relações Exteriores no governo Itamar Franco entre 1993 e 1995. Depois, no governo Fernando Henrique, assumiu a Chefia da Missão Permanente do Brasil nas Nações Unidas e em seguida foi o chefe da missão brasileira na Organização Mundial do Comércio. Em 2001, foi embaixador em Londres.

Fonte: http://www.cartacapital.com.br/politica/a-africa-tem-sede-de-brasil

 

 

Ricardino Jacinto Dumas Teixeira  *

ricardino_teixeira@hotmail.com 

05.06.2011

Se existe alguma crença em que uma parte da diplomacia brasileira ainda acredita, essa crença é a de que o Brasil precisa “ajudar” a África. Quer dizer: “A África tem sede de Brasil”. Esse é o título do artigo de opinião do Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil (2003-2010), publicado em 31 de maio de 2011 na Revista Carta Capital online (http://www.fpabramo.org.br/artigos-e-boletins/artigos/af) e disponibilizado no espaço Guiné-Bissau Contributo. Celso Amorim escreveu o artigo em celebração ao dia de África (25 de maio) onde demonstrou satisfação em relação à continuidade da política externa brasileira na África sob comando do atual ministro António Patriota. Celso Amorim foi convidado para prestigiar a cerimônia no Itamaraty, depois que ele deixou o ministério em 2010. Ministro da “face do governo” de Luís Inácio Lula da Silva, Celso Amorim lembra sua passagem pela África:

 

Na primeira viagem que fiz à África durante o governo Lula, visitei sete países, seguindo orientação do presidente, mas instigado também por uma cobrança de minha mulher, que, ao me ouvir relatar iniciativas quanto à Venezuela, Mercosul etc; me interpelou: “E pela África vocês não estão fazendo nada?”. Isso foi em abril de 2003, quando decidimos as prioridades do nosso governo.

A fala, acima, remete-nos a impressão de que a África é um Continente de pobreza e de coitadinhos sofridos e devorados pelos predadores. Isso tem aumentado nossas sedes. Somos um Continente de sedes, e a boa plataforma diplomática da diplomacia brasileira, a que Celso Amorim ajudou a idealizar e a propagar, seria saciar várias sedes que afeta a maioria da população dos países africanos: ajudar o Continente a saciar a sua sede física, intelectual e tecnológico. Quando Celso Amorim afirma que “A África tem sede de Brasil”, se pensarmos bem, por exemplo, na sede material, vemos as crianças desnutridas e mal cuidadas morrendo de fome. Essa seria a primeira impressão. Se pensarmos na sede intelectual, vemos africanos desprovidos de conhecimento científico e tecnológico, morrendo de sedes. Daí o papel estratégico do Brasil em saciar sedes africanas e tentar pagar a sua dívida moral e histórica.

De Moçambique a Namíbia, de Gana a São Tomé e Príncipe, cada um a sua maneira, vêem no Brasil um modelo a ser seguido....Para cada problema africano existe uma solução brasileira....Isso sem falar no enorme benefício que a maior relação com o Brasil traria para África... Lula revelou-se o mais africano dos presidentes. Pediu perdão pelos crimes da escravidão.   

Talvez seja verdade que a África encontre no Brasil um modelo a ser seguido para o seu desenvolvimento, no entanto Celso Amorim não nos diz que tipo de modelo o Brasil teria o prazer em oferecer aos países africanos como Moçambique, Namíbia, Gana e São Tomé Príncipe etc. Também não mencionou a importância de África para o Brasil, muito pelo contrário. Limitou-se em mencionar as vantagens comparativas do Brasil para saciar sedes.  Mas não vamos esquecer-nos dos desafios para saciar várias sedes do próprio povo brasileiro.  

Para sermos felizes na diplomacia de “saciar sedes”, precisamos ter a certeza de que conseguimos saciar sedes das nossas próprias populações. O dever de um governo é de saciar sedes da sua própria população. Isso deveria ser a preocupação fundamental de qualquer governante tanto no Brasil quanto na África: cuidar do seu povo. Lutar para que todos terem aquilo de que precisam para que sua vida não se reduza a simples lógica do mercado predador.

A África precisa saciar suas próprias sedes e o Brasil também. Isso não é uma questão de capricho nacionalista dos africanos e nem dos brasileiros. A África não precisa da “caridade” do Brasil e nem o Brasil precisa da “compaixão” dos governos e povos africanos para ser aceite como parceiro estratégico na exploração de matérias primas e demais recursos existentes na África frente aos interesses dos países como China, Estados Unidos, França e Alemanha.

É quase um consenso no quadro das Relações Internacionais (RI) que dificilmente haverá uma cooperação econômica, política, social e cultural que seja universalmente equitativa entre Estados, e nem tão pouco um conceito universalmente aceito, mas a ética, a justiça e a troca de experiências entre a África e o Brasil pode ser um começo inteligente nessas relações. São essas sedes que a África tem de Brasil sem desviar o olhar das realidades sociais existentes.

Outro equívoco de Celso Amorim foi o de tentar culpabilizar o Brasil pelo aquilo que herdou e não conseguiu modificar. Sabemos que o Brasil (à semelhança dos países africanos, especialmente os de fala portuguesa) também foi uma colônia, cuja população sofreu a privação dos seus direitos pelo colonialismo. Dizer que Lula mostrou-se o mais africano dos presidentes por ter pedido perdão ao povo africano pela escravização, é no mínimo populismo e demasiadamente retórico. Tanto o Brasil quanto os países africanos, cada um a sua maneira, sofreu a colonização e a exploração em massa dos seus recursos pelo colonialismo português.

As relações entre a África e o Brasil remontam ao período do regime militar. Embora os regimes militares apoiassem a manutenção da colonização portuguesa na África nos fóruns internacionais (ONU), não podemos esquecer que foi na época do regime militar que o Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer as independências dos países africanos de expressão portuguesa na década de 1970. O ex-presidente João Figueiredo, quando se deslocou a diversos países africanos na década de 1980, já havia defendido que seria melhor que o Brasil fosse o primeiro de “terceiro mundo” do que o último de “primeiro mundo”. Teria sido esse o modelo do governo de Luís Inácio Lula da Silva sob comando de Celso Amorim? O falecido ex-embaixador José Aparecido de Oliveira, quando se percebeu da importância da ampliação das relações afro-luso-brasileira, convocou os governos desses países para em conjunto articularem a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em 1996. Com o governo de José Inácio Lula da Silva, porém, a aproximação com os países africanos foi ampliada e o resultado foi bem-sucedido frente às ameaças da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), e, com, isso, o Brasil passou-se acreditar nas potencialidades africanas, se é que existe de fato essa potencialidade, para Celso Amorim, além dos interesses de mercado.    

A relação entre os países africanos e o Brasil não deve restringir-se aos interesses mercantis. Não me parece que as empresas brasileiras e suas agências de cooperação desejam exclusivamente fazer o mesmo que os europeus fizeram a continuam a fazer na África: a exploração em massa de recursos naturais para saciar suas sedes expansionistas. Se assim o Brasil desejar, a África fará de tudo para escapar-se do jeitinho da diplomacia brasileira tal como o Brasil escapou-se da tentação da lógica instrumental e expansionista dos Estados Unidos em torno da tentativa de criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).

 

* Ricardino Jacinto Dumas Teixeira nasceu em Bissau. Graduou-se em Ciências Sociais na UFPE, onde também desenvolve o seu doutoramento em Sociologia Política. É professor na FAJOLCA e autor de artigos "Construção democrática na Guiné-Bissau: limites e possibilidades" (CODESRIA, 2008); "Consciência nacional, democratização e conflito político: semelhanças e diferenças e n t r e G u i n é - B i s s a u e Moçambique" (CIEA 7, 2010) e "O conceito de sociedade civil: uma análise a partir do contexto da Guiné-Bissau" (Estudos de Sociologia, 2009). Atualmente, desenvolve pesquisa de doutorado sobre a relação entre sociedade civil e Estado na transição democrática na Guiné-Bissau e Cabo Verde.

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