POR UMA CULTURA DE TOLERÂNCIA E PAZ NA GUINÉ-BISSAU

 

 

 

William cecil vieira Vaz *

williamvaz17@hotmail.com

Florianópolis, Agosto de 2009 

Não é possível libertar um povo, sem antes, livrar-se da escravidão de si mesmo.

Sem esta, qualquer outra será insignificante, efêmera e ilusória,

quando não um retrocesso.

Cada pessoa tem sua caminhada própria.

Faça o melhor que puder.

Seja o melhor que puder.

Mahatma Gandhi

 

 

INTRODUÇÃO

 

 O presente trabalho é o resultado de longos acontecimentos, em que foi possível observar a necessidade de mudança do homem para que possamos ser tolerantes e, enfim, aceitarmos que a paz é possível, bastando que se  respeite as diferenças culturais, manifestando-se elas em diferentes línguas, diferentes comportamentos, diferentes etnias, diferentes idéias, diferentes cores, diferentes lugares.

Inicia-se com a conceituação de Tolerância, como um princípio do “fazer” e não como sinônimo de omissão. Apresenta-se alguns pontos da Declaração de Princípios sobre a Tolerância, da UNESCO, a fim de se estabelecer as tendências internacionais na defesa desse princípio entre as nações.

Segue-se depois uma análise histórica da noção valorativa desse conceito, em diversas épocas e momentos culturais distintos. Observa-se que, na grande maioria dos momentos históricos, houve pensadores que viram na complexidade do pensamento humano a necessidade de respeitar as diversas posições, visto que atitudes de intolerância só resultaram em heranças de atrocidades e injustiças, as quais passaram a fazer parte da história do nosso país. Estabelece-se uma ligação especial do conceito de tolerância a um valor fundamental atualmente, a dignidade da pessoa humana, que é o que limita o poder e a liberdade do indivíduo em relação aos seus semelhantes.

Por fim, será demonstrada a opinião a respeito da possibilidade de se ter um mundo em que haja tolerância entre os diversos povos, credos, opiniões e raças diferentes, a fim de que se construa uma sociedade plural, na qual as pessoas possam ser valorizadas e respeitadas pelo que são, apesar das diferenças.

 

O QUE É TOLERAR?

 

A palavra tolerância provém do latim tolerantia que significa, etimologicamente, suportar pacientemente ou atitude de admitir a outrem uma maneira de pensar ou agir diferente da adotada por si mesmo. A tolerância pressupõe sempre um padrão de referência, as margens de tolerância e aquilo que se assume como intolerável, e pode surgir como a simples aceitação das diferenças entre aquele que tolera e o tolerado, ou como a disponibilidade do primeiro para integrar ou assimilar o segundo.

Segundo a Declaração de Princípios sobre a Tolerância da UNESCO, tem-se que

a tolerância é o respeito, a aceitação e a apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.”

 

Mas a mesma ressalta:

 

A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro. Em nenhum caso a tolerância poderia ser invocada para justificar lesões a esses valores fundamentais. A tolerância deve ser praticada pelos indivíduos, pelos grupos e pelo Estado.”

 

E, vislumbrando a necessidade da tolerância para a construção de uma sociedade pacífica, o indiano Rao Chelikani asseverou:

 

A tolerância é um estado mental suscitado por uma realidade externa que se traduz por determinado comportamento, enquanto a paz em um indivíduo é um estado do ser que reflete toda a sua filosofia de vida. A paz depende dos esforços combinados de todas as instituições sociais, políticas, econômicas e religiosas. Requer tolerância, profundo respeito pelo outro, solidariedade diligente entre todos os homens e todas as mulheres, justiça e serenidade, democracia e respeito aos direitos humanos. Promover a tolerância é, essencialmente, investir no indivíduo, enquanto a promoção da paz obriga, ademais, a operar profunda reforma institucional, difícil de imaginar e para a qual não dispomos de modelo. Nas relações internacionais contemporâneas é sempre o mais forte que tem a última palavra e que determina o que é bom para todos.”

 

A tolerância, portanto, deve ser vista como sendo o fundamento filosófico para o reconhecimento dos direitos universais do homem e do Estado Democrático de Direito, pois tolerar é reconhecer que as pessoas são diferentes, é respeitar ideologias diferentes das quais se crê, simplesmente porque é necessário conviver pacificamente com os seus iguais.

 

TOLERÂNCIA: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA

 

No período iluminista, no qual se modificou a concepção do mundo, passando o homem a ser visto não como simples criatura sujeita à vontade divina, mas como um ser racional que pode controlar seus desejos, a tolerância adquiriu especial relevância, haja vista as grandes discussões acerca da religião, intensificada na Reforma Protestante e na contra-reforma Católica.

John Locke, em sua Carta sobre a tolerância, escreveu que o cristianismo na sua essência é uma religião tolerante, porque despreza tudo aquilo que gera a própria intolerância religiosa, considerando importante apenas a salvação das almas, a qual dependente, unicamente, da conduta que os indivíduos levarem. Deus irá julgá-los não pelas idéias que manifestaram sobre a interpretação da doutrina, mas sobre a sua conduta, isto é, se foram ou não virtuosos.

Em 1762 outro estudo de especial relevância foi a publicação do Tratado sobre a tolerância, por Voltaire. Escrito como reação ao episódio que ficou conhecido como Caso Calas, na França, onde o comerciante calvinista Jean Calas foi condenado à pena de morte acusado de assassinato do próprio filho, que pretendia se converter ao catolicismo, sem quaisquer provas, mas sob a pressão da maioria católica.

No Tratado, Voltaire defende Deus como fonte do princípio da tolerância, posto que a razão humana é conseqüência da razão divina. Segue um trecho de uma obra primorosa que, certamente, influenciou a discussão sobre liberdade religiosa:

 

A natureza diz a todos os homens: eu os fiz nascerem todos fracos e ignorantes para vegetar alguns minutos na terra e para adubá-la com seus cadáveres. Porquanto fracos, ajudem-se: porquanto ignorantes, iluminem-se e suportem-se. Quando todos estiverem de acordo, o que certamente nunca acontecerá, mesmo que houvesse um só homem de opinião contrária, vocês deveriam perdoar-lhe; de fato, sou eu que os levo a pensar como pensam. Eu lhes dei braços para cultivarem a terra e uma pequena luz de razão para guiá-los; coloquei em seus corações um germe de compaixão para que se ajudem uns aos outros a suportarem a vida. Não bafem esse germe, não o corrompam, saibam que é divino e não o substituam a voz da natureza pelos miseráveis furores da escola.”

 

Desta forma, Voltaire apareceu como o mais dileto representante da linhagem dos pregadores da tolerância. Para ele, era preciso dar um basta nos estúpidos e nos fanáticos. Não era mais aceitável aos olhos da razão e do bom senso que se encarcerassem, torturassem e queimassem pessoas por divergirem da sua fé.

No decorrer dos anos discute-se a forma que o Direito Internacional deve intervir na defesa dos direitos fundamentais individuais e coletivos, a fim de limitar as manifestações que impeçam ou controlem a liberdade das pessoas, seja por raça, credo, sexo, idade, etc. Os adeptos do relativismo cultural têm pregado que os direitos fundamentais estão ligados à cultura de cada povo, seu sistema político, sua religião, implicando esse conceito não haver intervenção internacional na realidade dos Estados soberanos. Nas palavras da autora Flávia Piovesan:

 

Neste prisma, cada cultura possui seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade Em face dessa polêmica, compartilha-se da corrente universalista, acolhida pela Declaração de Viena de 1969, quando consagra que todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados e que é obrigação dos Estados, independentemente de seu sistema político, econômico e cultural, promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.”

 

            A corrente universalista, que fundamenta todos os tratados, convenções e declarações internacionais, vem apregoar que deve haver, sim, um conceito de dignidade humana que seja comum a todos os indivíduos, e nesse sentido têm sido travadas diversas discussões e intervenções nos países em que pessoas sofrem, todos os dias, agressões físicas e psicológicas visando tolher sua liberdade de escolha e sua dignidade.

A dignidade humana surgiu e se tornou hoje num valor sobre o qual têm sido formulados os direcionamentos internacionais. Ser digno é ter um valor, é ser reconhecido e dotado de capacidade de pensar e de escolher. Em muitos países, por exemplo, e não só naqueles de religião muçulmana, as mulheres são tratadas como um nada, não tem direito de dar opinião, de votar, de ter liberdade para escolher marido, profissão,  de ter uma voz; na Guiné-Bissau é corrente o número de mulheres que sofrem maus tratos em casa, mas não denunciam o  abuso sexual e outras formas de violência à sua dignidade.

Da mesma forma, aqui no Brasil muitos negros sofrem restrições por causa da sua cor, que lhes restringe profissões, amizades, oportunidades, o que demonstra como o mundo está atrasado intelectualmente, mesmo com tantas revoluções tecnológicas e em muitos casos as leis mostram-se ineficazes para combater o preconceito. Os índios, os pobres e muitas outras categorias são exemplos de que o caminho para a dignidade dos cidadãos ainda está longe de ser alcançado, mas é uma luta que deve ser vencida aos poucos, dia a dia, com uma visão honesta a respeito da nossa sociedade. 

 

TOLERÂNCIA E PAZ: UM IDEAL A BUSCAR NA GUINÉ-BISSAU

 

Cansamo-nos de ligar a televisão, computador ou o rádio e ouvir milhares de notícias más da Guiné-Bissau. Afinal de contas, quantas vezes se escutam más notícias, todos os dias? Fome, tráfico de drogas, crise econômica constante, pacientes sem hospitais para serem atendidos, a não ser clínicas privadas para quem pode, a maioria da população sem acesso à escola, instabilidade constante, guerras civis,  um país sem luz, sem água potável, que deve salário aos funcionários públicos, manifestações políticas absurdas por culpa de alguns políticos ignorantes, assassinatos, quedas sucessivas de governo são alguns dos temas preferidos da atualidade. Ouvir e ver sobre eles, todavia, já se tornou comum. As pessoas não ficam surpresas quando descobrem essas notícias, passaram a ser costume.

Sem freios, as pessoas seguem sobrevivendo. Algumas lutando por um trabalho. Outras por uma refeição. Outras pelo poder. Apesar da globalização, o que se tem visto são pessoas cada vez mais infiltradas em seus próprios mundos individuais.

As pessoas cada vez  estão mais afastadas umas das outras. O vínculo de irmandade que  une os guineenses, conforme o costume, vem se dissolvendo ao longo dos anos, deixando-as cada vez mais vazias, perdidas em um mundo de relações complexas e por interesses pessoais.

Conviver nunca foi fácil, mas é inerente ao homem, principalmente quando vivemos em um mundo com mais de 06 bilhões de pessoas. Compreender-se para compreender. Respeitar-se para respeitar. São dois princípios básicos para qualquer relação, afinal a razão é o que separa o homem dos demais seres.

Entre os grandes problemas que geram tamanha intolerância, inclusive alguns desentendimentos está a falta de educação que se tem nos dias atuais. Educação não apenas no sentido de conhecimento “escolar”, que tem sido um conhecimento decorado, avaliado em provas escritas, mas que não gera uma visão de mundo às pessoas. Está faltando na base educacional passar para as crianças valores, noções de mundo, política, cidadania, conceitos desconhecidos pela grande maioria da população guineense; por culpa dos governantes que ao longo da governação não construíram escolas, assim conseguiram realizar os seus objetivos tornando a população numa maioria analfabeta e mais vulnerável, faltando o conhecimento que daria condições de os cidadãos exercerem a tolerância como um princípio, como uma atitude ativa e não a passividade de simplesmente não poderem violar as leis.

A cultura da relatividade só gera indivíduos “insossos”, que são tolerantes simplesmente porque não têm opinião sobre nada, e não instrui aqueles que têm opinião a respeitar a posição e as escolhas de seus semelhantes; a relativização de tudo, quase que num contraponto, gera uma cultura de extremismos, porque não ensina às pessoas a ter valores e muito menos a respeitar o todo, porque coloca a tolerância como sinônima de falta de posição e de instrução.

É importante que se qualifique a tolerância como uma actividade, como uma acção de quem tem posições, valores e que, mesmo acreditando em suas idéias, respeita e vive em paz com as pessoas que não se coadunam com as mesmas opiniões e que necessariamente não fazem as mesmas escolhas, de forma a que cada ser humano seja o que deseja e viva da melhor forma possível. É uma escolha de não usar o poder para pressionar, para constranger os outros a serem iguais em tudo, é respeitar as diferenças.

Se há algo a não ser tolerado é a intolerância. Nesse sentido, a ONU tem se levantado contra todas as atitudes que violam os direitos fundamentais pelo mundo. Recentemente, na Guiné-Bissau, a ONU declarou que o país não pode tolerar quaisquer tipos de violência contra os cidadãos. No âmbito internacional, muitas têm sido as iniciativas para garantir os direitos fundamentais nos Estados e hoje se discute os limites dessa intervenção, de forma a não agredir as peculiaridades culturais dos povos, discussão essa que tem gerado muitas controvérsias. Em regra, o que se deseja é que nem mesmo a cultura seja um fator de restrição ao exercício dos direitos fundamentais das pessoas.

Sendo racional, porquê ainda é tão difícil vislumbrar a paz na Guiné-Bissau?

Dentro deste contexto, a tolerância surge como um bem necessário para a sociedade. Tolerar é fomentar a paz e, acima de tudo, aceitar a condição de ser humano.

 

CONCLUSÃO

O presente artigo visa trazer um dos temas mais preponderante atualmente, porque parece que a sociedade perdeu a noção da tolerância, por isso trago uma reflexão profunda acerca do assunto para podermos ajudar na transformação da sociedade intolerante em que vivemos hoje em dia. Entendo que deve existir uma mudança total no comportamento da sociedade em geral que está degradando a Guiné-Bissau. Devemos saber situar e situar-nos, ou seja, temos que ser cultos, civilizados e esmerados. Temos que saber respeitar-nos uns aos outros, saber onde começa a nossa liberdade e onde termina, porque só assim podemos construir o nosso país.

É importante salientar que a tolerância é uma das tantas virtudes necessárias para elevar o ser humano à condição de civilidade, ela faz parte do processo de desenvolvimento ético. Apresenta-se alguns pontos da Declaração de Princípios sobre a Tolerância, da UNESCO, a fim de se estabelecer quais são as tendências internacionais na defesa desse princípio entre as nações. Ela ilustra recentes acontecimentos de violação dos direitos humanos e direitos fundamentais por intolerância.

Em suma, se a tolerância pudesse existir sem limites, se fosse uma virtude universal e que todos fossem plenamente respeitados e respeitadores das diferenças humanas, provavelmente o mundo seria melhor de se viver.

Mais que desejo e aspiração ética, seria uma utopia realizada.

 

REFERÊNCIAS

 

BERTOLO, Patrícia Batista. O princípio da tolerância como sustentáculo da democracia e dos direitos humanos. Disponível em: < http://www.escola.agu.gov.br/revista/2008/Ano_VIII_junho_2008/Princ%C3%ADpio%20da%20Toler%C3%A2ncia-patricia.pdf>. Acesso em 06.10.08.

 

CHELIKANI, Rao V. B. J. Reflexões sobre a tolerância. Rio de Janeiro: Garamond, 1999. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/livros/a_pdf/livro_unesco_reflexoes_tolerancia.pdf>. Acesso em 06.10.08.

 

GANDHI, Mahatma. A única revolução possível é dentro de nós. E-book. Disponível em: <http://tutomania.com.br/livro/a-unica-revolucao-possivel-e-dentro-de-nos--mahatma-gandhi>. Acesso em 05.10.08.

 

Sem autor definido. Carta sobre a Tolerância, de John Locke. Disponível em: <http://afilosofia.no.sapo.pt/12lockeObra.htm>. Acesso em 06.10.08.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 4 ed. Rio de Janeiro: Max Limonad, 1999.

 

* Finalista do curso de Direito - Florianópolis - Brasil

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