PARABÉNS AMILCAR CABRAL!

"...jurei a mim mesmo que tenho que dar a minha vida, toda a minha energia, toda a minha coragem, toda a capacidade que posso ter como homem, até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo, na Guiné e Cabo Verde. Ao serviço da causa da humanidade, para dar a minha contribuição, na medida do possível, para a vida do homem se tornar melhor no mundo. Este é que é o meu trabalho." Amilcar Cabral - 1969

 

Chefi di guerra - Tributo musical a Amilcar Cabral - Super Mama Djombo

 

Fernando Casimiro (Didinho)

didinho@sapo.pt

12.09.2009

Fernando Casimiro (Didinho)Amilcar Cabral completaria hoje 85 anos de idade. Infelizmente, viveu apenas 49 anos de uma das mais exemplares vivências participativas de um ser humano na nobre missão de lutar por um mundo melhor.

Cabral prestigiou a Guiné e Cabo Verde, mas também a África, posicionando-se com naturalidade no mais alto patamar dos maiores pensadores, líderes e estrategas mundiais.

Tombou vítima da crueldade, de uma traição que há muito se adivinhava, tal era a convicção do regime colonial português de que, morto o Amilcar, seria o fim do PAIGC e consequentemente, da luta de libertação nacional.

Cabral tombou, mas o seu PAIGC, com base no seu lema de sempre: UNIDADE E LUTA,  soube resistir, continuando a lutar, proclamando unilateralmente a independência da Guiné-Bissau a 24 de Setembro de 1973, infringindo cada vez mais derrotas às forças coloniais, contribuindo significativamente para a motivação golpista que foi a revolução do 25 de Abril de 1974 que pôs fim ao regime fascista em Portugal.

Amilcar Cabral deixou-nos o legado da libertação do homem através da consciencialização e não era por acaso que dizia que cada um de nós deve pensar pela sua própria cabeça.

Hoje, nós que nos propusemos a dar continuidade à sua extraordinária obra, conquistada que foi a liberdade territorial, seguimos a fase da libertação da mente do nosso povo, para que, tal como dizia, passe a pensar pela sua própria cabeça!

Parabéns Cabral!

Hoje e sempre, mais do que recordar Cabral, importa continuar a divulgar Cabral ... 

ETERNA SAUDADE, ETERNA GRATIDÃO, ETERNA REFERÊNCIA...

Amilcar Cabral

Vamos continuar a trabalhar!


 

ACRÓNIMO

Esperança acalentaste

Num futuro risonho

Terra Mãe – Filha de África

Em tuas entranhas

Ressuscitaste o sonho

Razão do teu viver

Armaste teus filhos

Rumo à liberdade

Acreditaste na vitória

Mas os ventos mudaram

                                                                                    

Os homens também...                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

Sem escrúpulos nem pejo

O teu sonho derrubaram

Num cíclico jogo de armas

Honrado seja o teu nome

Oh! Pátria mil vezes violada

 

De onde vem tanto ódio

Entre teus filhos amados?

 

Corre o sangue derramado

Abrem feridas mal saradas

Bate em teu peito a chamada

Recobre as forças Terra – Mãe

Ainda é longa a caminhada

Levanta-te Guiné e desenterra o teu sonho!  
 

 Drª. Filomena EmbalóFilomena Embaló

Charenton le Pont 19/10/04

 

28-8-2009 

"O respeito pela diferença não significa aceitar práticas retrógradas"

Dr. Corsino Tolentino
 

Jornal Expresso das Ilhas

 

 

Na primeira entrevista concedida a este Jornal, o investigar e ex-ministro da Educação passa em revista a obra de Amílcar Cabral, com maior incidência nos seus escritos sobre a cultura. Corsino Tolentino, definindo-se como livre-pensador, permite-se afastar do pensamento cabraliano, proclamando que a África precisa de menos ideologia e mais ciência para ultrapassar os problemas com que se confronta. Na próxima edição, trazemos a segunda parte da entrevista consagrada ao sistema universitário em Cabo Verde (sobre o qual defendeu a sua tese de doutoramento) e a questões relacionadas com a oficialização da língua cabo-verdiana.


Quando lhe foi atribuído, em 2007, em Itália, o Prémio Amílcar Cabral, dissertou sobre o conceito cabraliano da libertação como um acto de cultura. O que há de original neste conceito?

Eu creio que ninguém tinha pensado a libertação nacional nesses termos, ou seja, até Amílcar Cabral escrever sobre o assunto, ainda nos anos 60 do século XX, a libertação nacional era entendida como acto de luta pela dignificação dos povos e a cidadania local e mundial.

Digamos que a perspectiva era essencialmente militar, política e diplomática. Cabral deu a esta noção de luta pela libertação uma dimensão maior que se compreende se formos ao significado original do conceito de cultura.

No fundo, cultura é tudo o que o ser humano cria e diferencia-se do que existe na Natureza. A cultura progride através de um processo que é, ao mesmo tempo, adaptativo e cumulativo num espaço e tempo determinados.

É no cruzamento do espaço com o tempo que a pessoa realiza a sua vocação de liberdade e criatividade. É com esta dimensão humana que Amílcar Cabral encarou a luta de libertação nacional. Portanto, não se tratava apenas de conquistar o poder político através de meios militares e diplomáticos, mas de criar condições para a realização do ser humano em toda a sua dimensão.

Ora, a luta de libertação nacional é acto de cultura, na medida em que transcende a situação colonial, estado de negação da dignidade humana, para criar as condições necessárias à realização da liberdade e da criatividade. Este conceito, que hoje parece banal na academia e fora dela, foi uma abordagem inovadora, por conseguinte original, nos anos 60 do século passado, que influenciou positivamente o percurso de Cabo Verde.

É claro que este conceito foi levado até ao absurdo com a afirmação que dar um tiro é também um acto de cultura.

É uma afirmação metafórica. É preciso recordar que quando Amílcar Cabral iniciou o processo de mobilização de vontades para a conquista da independência nacional, a primeira proposta que fez foi de resolver o conflito colonial pela via de negociações.

Isto significava resolver um conflito secular através de meios pacíficos, numa altura em que a teoria da violência justa era dominante. Só quando chegou à conclusão de que a via diplomática não era eficaz é que optou, em último recurso, pela violência libertadora contra a violência de dominação.

Se, para se conseguir a independência, o único meio era a luta armada, pelo menos na parte que dizia respeito ao território da então Guiné portuguesa, a afirmação de que dar um tiro era um acto de cultura foi simples corolário da aceitação da luta armada como via de libertação nacional legitimada pela recusa da via pacífica pelo poder colonial. Reposta no contexto, uma afirmação que parece absurda ganha todo o sentido.


Fala-se muito na genialidade do pensamento de Cabral, mas sabemos muito pouco como alicerçou a sua base teórica. Que livros leu Amílcar Cabral, sendo que é tido como um pensador de formação marxista, mas esses livros eram ou proibidos em Portugal, ou pouco acessíveis em língua francesa.

A partir dos anos 60, quando Amílcar Cabral começou a revelar-se ao mundo como teórico da luta de libertação nacional, havia muito pouco material escrito em português, mas como estudante e investigador, Cabral pesquisou e escreveu obra científica relevante, principalmente sobre Portugal, Angola e Guiné.

A partir de 1961 é que os seus escritos políticos começaram a ser divulgados, principalmente em língua portuguesa e francesa. Não sei que livro Cabral terá lido, mas sei que a sociedade portuguesa do tempo de Salazar não era monolítica nem a segurança do Estado era infalível. Nessa altura, os livros marxistas até eram um bom negócio e exerciam a atracção do fruto proibido.

O que tenho por certo é Amílcar Cabral se ter inspirado na análise marxista que ainda hoje se utiliza como ferramenta teórica, mas fez na altura uma coisa singular, que foi distanciar-se, corajosamente, da interpretação, mais ou menos dogmática do pensamento marxista que se fazia em certos meios intelectuais, tanto no Ocidente como na União Soviética, China, Cuba ou Coreia do Norte.

Amílcar Cabral teve a ousadia intelectual e política de afirmar que a realidade dos nossos países era diferente, e, por conseguinte, tínhamos de pensar e agir em conformidade com a nossa realidade económica, social e cultural. Na altura, uma tal atitude requeria muita lucidez e coragem. Cabral nunca foi dogmático, o que é sempre importante em termos de criação teórica.

Falei da genialidade de Amílcar Cabral e reafirmo que ele foi genial neste sentido: humano e falível, mas genial, na medida em que foi mais longe do que qualquer de nós e das gerações anteriores na problematização da libertação da Guiné e Cabo Verde e na acção para a conseguir. Amílcar Cabral foi genial no pensamento e na acção coerente e marcou profundamente a nossa História.


Sem menosprezo pela obra de Cabral, tenho para mim que o grande inovador africano é Nelson Mandela que se inspira no Gandhi da resistência pacífica. O ANC (em português Congresso Nacional Africano) é decalcado do Congresso Nacional Indiano, fundado por Gandhi que viveu alguns anos na África do Sul, onde fundou o Congresso Indiano de Natal.

O nome dos partidos é circunstancial. E a grande diferença estratégica entre Mandela e Cabral também. Os companheiros de Nelson Mandela fizeram a luta armada de libertação nacional, praticaram a violência quando não tiveram outra alternativa e Mandela viveu vários anos na prisão, sempre solidário com os Freedom Fighters (Combatentes da Liberdade) do ANC no terreno.

Aí o seu combate era teórico, moral, entre a realidade da luta armada, violenta por natureza, e o ideal da resistência pacífica. Estou convencido de que se Amílcar Cabral tivesse sido preso e impedido de liderar a luta armada de libertação nacional, teria tido um caminho semelhante ao de Mandela e vice-versa.

Nelson Mandela é um gigante moral e Amílcar Cabral gostava muito dele. A África orgulha-se de Amílcar Cabral e de Nelson Mandela como a Índia, de Gandhi.


O conceito de cultura foi inicialmente desenvolvido pelo antropólogo Tylor e aprofundado por um outro antropólogo, Malinowki, na sua obra "Uma Teoria Científica da Cultura". Cabral ao falar de cultura, a que conceito se refere?

O Monteiro sabe que existem várias definições de cultura: definição antropológica, sociológica, filosófica etc. Depreendo do que li que a definição que Cabral daria de cultura é quase tão ampla como a criação humana, incluindo modos específicos de sentir, pensar e agir em comunidade.

É cultura enquanto modo peculiar de um grupo social ou uma comunidade nacional sentir, pensar e agir para material, política e simbolicamente, realizando o progresso. Portanto, o conceito de cultura para Amílcar Cabral tem esta dimensão ampla de praticamente tudo aquilo que o ser humano cria na perspectiva de melhorar a vida.

Confunde-se, até certo ponto, com o modo de vida, mas numa perspectiva dinâmica, na qual o contingente é o que há de mais certo. Penso que ao considerar a cultura como um fenómeno total e complexo, Amílcar Cabral aproxima-se mais da perspectiva Sociológica de Edward Tylor do que da definição antropológica da Bronislaw Malinovsky.

Ao que parece, uma das fraquezas do conceito de cultura em Cabral é deixar de lado aspectos como o tabu, o mesinho, a superstição, o mito e etc. que ele considerava factores impeditivos do progresso e que deveriam ser ultrapassados.

Deveriam ser ultrapassados, não ignorados, diz bem. Se é verdade que o mito, a religião e até a superstição fazem parte da cultura, nós não podemos esquecer de que o que é essencial na cultura não é o certo, o fixo, mas o contingente e o provável, o movimento.

E Amílcar Cabral, ao aceitar liderar um movimento para alterar o modo de vida das povos colonizados (estado de coisa, não de cidadão), ao aceitar mudar esta situação, comprometeu-se com a transformação da vida pessoal e colectiva. Por conseguinte, combater determinadas práticas, certos hábitos, algumas formas de pensar, não significa desconhecer a sua importância.

Como se sabe, a cultura está definida entre dois factores: o tempo e o espaço. Portanto, Amílcar Cabral encontrou-se num espaço e num tempo que requeriam mudanças fundamentais e a mudança da sociedade implica a mudança cultural.

Amílcar Cabral assumiu o risco de propor a mudança cultural. Ainda hoje eu não estou convencido de que respeitar a diferença significa deixar tudo como está. Portanto, nesta matéria Cabral foi ousado e o líder que propõe transformar a vida em mais do que uma nação tem de aceitar riscos.

Um deles foi o de combater hábitos e práticas negativas segundo os padrões mais avançados da época. Respeitar o princípio da diversidade cultural é uma coisa, proteger práticas retrógradas que põem em causa a própria condição humana é completamente diferente. Amílcar Cabral optou por combater práticas nocivas e assumiu os riscos inerentes. Neste sentido fez o que tinha de fazer e pagou o preço.


Neste aspecto, Cabral de formação marxista, não terá ficado refém de um certo evolucionismo, segundo o qual navegamos entre 0 e 100 e a História caminha para atingir a felicidade dos homens. Que comentário?

Amílcar Cabral foi fundamentalmente um humanista, convencido de que o ser humano é o menos imperfeito que existe na Natureza e tem ilimitado potencial para progredir individual e colectivamente. Neste sentido, evolui. A cultura enquanto modo peculiar de sentir, pensar e agir também evolui.

Neste sentido, ele terá tido essa perspectiva da cultura como algo que evolui e que se transforma e vai modificando e vai transformando a própria sociedade, através da adaptação e acumulação.

Sim, neste contexto, aceito que Amílcar Cabral foi evolucionista, sem nunca ter sido dogmático. Inspirou-se em várias teorias e foi um homem de Ciência, aquela que não substitui a Consciência e procura juntar-se a ela. Uma das características de Cabral foi não ter ficado prisioneiro de coisa nenhuma.

Escreveu que a África precisa de menos ideologia e de mais ciência. Aqui parece que se afasta de Amílcar Cabral que afirmava que uma das grandes fraquezas dos partidos africanos era justamente o seu vazio ideológico. Como conciliar estes dois extremos?

Veja que eu nunca me declarei cabralista dogmático, nem coisa nenhuma. Eu sou, se quiser, um livre-pensador, ou um cidadão independente, gosto imenso de ser independente e estou sempre pronto para pagar o preço. Por isso, não me preocupa nada ter um pensamento diferente daquilo que Amílcar Cabral teria afirmado num determinado momento.

Relativamente à relação entre a ideologia e a ciência o factor tempo conta. Se nos anos 60, quando comecei a namorar os movimentos de libertação nacional, a ideologia era fundamental, hoje, na África independente desde há décadas, o conhecimento científico e a atitude científica fazem mais falta do que as ideologias.

O défice de conhecimento da realidade africana pelos próprios africanos é grave e é preciso afirmá-lo e demonstrá-lo. Basta ver os indicadores relativos à Educação e à Ciência para a gente compreender que, em comparação com outras regiões do mundo, o défice é real e grave.

Estou absolutamente convencido que havendo os elementos fundamentais para o desenvolvimento de sistemas políticos minimamente democráticos o que fará mais sentido aí, é seguir as normas que, no fundo, transformam princípios e valores em algo de cumprimento obrigatório: portanto, aplicar a lei e desenvolver o conhecimento para depois transformar o conhecimento em utilidades, em serviços, em mercadorias, etc. e levar a África para a frente.

Eu penso que, no contexto actual, aquele discurso ideológico, sem correspondência com a realidade, é menos importante do que o conhecimento científico e a utilização desse conhecimento na preparação de decisões, em defesa do interesse público e do interesse privado, cada um no seu lugar.

Devo acrescentar que ainda atribuo bastante importância à ideologia, não como construção imaginada para encobrir a realidade, mas enquanto conjunto de ideais e valores universalmente aceitáveis para guiar a nossa vida individual e colectiva. Neste sentido, as ideologias são necessárias.

Se as ideologias já não são assim tão importantes, então o que diferencia, por exemplo, o MpD do PAICV, em cujas hostes militam tanto católicos como protestantes, vegetarianos, heterossexuais, se calhar pedófilos, etc., etc?

Considerando as categorias mencionadas, devo dizer que os pedófilos têm comportamento marginal e merecem tratamento diferenciado. Todas as outras categorias são formadas por cidadãos que merecem todo o respeito e têm todos os direitos, nomeadamente de se filiarem em partidos políticos.

Voltando ao essencial da pergunta: eu também tenho essa perplexidade. Ou seja, hoje em dia, os programas eleitorais, as campanhas, as atitudes em quase nada distinguem os militantes ou apoiantes do MpD, do PAICV, da UCID, etc. Aparentemente não existem muitos elementos que os distingam, porque todos os dirigentes querem o centrão, ninguém querendo ser de esquerda nem de direita.

Mas isto é um equívoco conjuntural porque o tempo vai acabar por empurrar o MpD para a direita, o PAICV para a esquerda e a UCID para o centro. Na verdade, esta diferença de cultura política existe nos militantes e apoiantes mas é escondida pelo oportunismo eleitoralista dos líderes.

O que em 2009 significa ser um partido de esquerda ou do centro-esquerda, um partido de direita ou de centro-direita, um partido do centro? Procurando com muita atenção, encontraremos algumas diferenças, por exemplo, em termos de tipos de políticas públicas, do papel do Estado na economia, da atitude em relação à igualdade de oportunidades, uso do bem público, etc.

Dito isto, junto-me ao Monteiro para desejar que cada partido tenha a coragem de se distinguir dos outros de maneira clara para que os eleitores e os cidadãos, em geral, possam saber com quem estão a lidar e escolher conscientemente em cada momento.

 

UNIDADE E LUTA

 

Intervenção de: Amilcar Cabral

Vamos continuar o nosso trabalho e vamos tentar conversar um bocado com os camaradas, sobre alguns princípios do nosso Partido e da nossa luta.

Os camaradas que tiveram conhecimento de um documento que foi publicado com o nome de «Palavras de Ordem Gerais do nosso Partido», feito em 1965, devem lembrar-se que na parte final desse documento há um capítulo que é «Aplicar na prática os princípios do Partido». Claro que nestas palavras de ordem falou-se de alguns princípios bastante gerais e hoje nós podemos conversar sobre mais princípios ainda, além desses. Claro que todos sabem isso, mas às vezes não sabem que isso é que é o fundamental, as bases, princípio da nossa luta. A nossa luta tomada no seu aspecto fundamentalmente político, no seu aspecto principal que é o aspecto político. Claro que, para definirmos, por exemplo, a estratégia e até as tácticas que adoptamos na nossa luta armada de libertação, outros princípios foram enunciados, embora esses princípios de luta armada não sejam mais do que a passagem dos nossos princípios gerais para o campo da luta armada.

Um primeiro princípio do nosso Partido e da nossa luta, que todos nós conhecemos bem, é: «Unidade e Luta», que é mesmo a divisa, se quiserem, o lema do nosso Partido. Unidade e Luta.

Claro que para estudar bem o que é que quer dizer este princípio bastante simples, é preciso sabermos bem o que é unidade e o que é luta. E é preciso colocarmos, realizarmos o problema da unidade, e o problema da luta num dado lugar, quer dizer, do ponto de vista geográfico, e considerando a sociedade—vida social, económica, etc.—do ambiente em que queremos aplicar este princípio de unidade e luta.

O que é Unidade ? Claro que podemos tomar unidade num sentido que se pode chamar estático, parado, que não é mais que uma questão de número, por exemplo, se considerarmos o conjunto de garrafas que há no mundo, uma garrafa é uma unidade. Se considerarmos o conjunto de homens que está nesta sala, o camarada Daniel Barreto é uma unidade. E por aí fora. Essa é a unidade que nos interessa considerar no nosso trabalho, da qual falámos nos nossos princípios do Partido? É e não é. É, na medida em que nós queremos transformar um conjunto diverso de pessoas, num conjunto bem definido, buscando um caminho. E não é, porque aqui não podemos esquecer que dentro desse conjunto há elementos diversos. Pelo contrário, o sentido de unidade que vemos no nosso princípio é o seguinte: quaisquer que sejam as diferenças que existem, é preciso ser um só, um conjunto, para realizar um dado objectivo. Quer dizer, no nosso princípio, unidade é no sentido dinâmico, quer dizer de movimento.

Consideremos, por exemplo, um time de futebol. Um time de futebol é formado por vários indivíduos, 11 pessoas. Cada pessoa com o seu trabalho concreto para fazer quando o time de futebol joga. Pessoas diferentes umas das outras: temperamentos diferentes, muitas vezes instrução diferente, alguns não sabem ler nem escrever, outros são doutores ou engenheiros, religião diferente, um pode ser muçulmano, outro católico, etc. Mesmo de política diferente, um pode ser dum Partido, outro doutro. Um pode ser da situação, como por exemplo em Portugal, outro pode ser da oposição. Quer dizer, pessoas diferentes umas das outras, considerando-se cada uma diferente da outra, mas do mesmo time de futebol. E se esse time de futebol, no momento em que está a jogar, não conseguir realizar a unidade de todos os elementos, não conseguirá ser um time de futebol. Cada um pode conservar a sua personalidade, as suas ideias, a sua religião, os seus problemas pessoais, um pouco da sua maneira de jogar mesmo, mas eles têm que obedecer todos a uma coisa: têm que agir em conjunto, para meter golos contra qualquer adversário com quem estiver a jogar, quer dizer, à roda deste objectivo concreto, meter o máximo de golos contra o adversário. Têm que formar uma unidade. Se não o fizerem, não é o time de futebol, não é nada. Isto é para verem um exemplo claro de unidade.

Vocês vêem uma pessoa a vir, por exemplo, com um balaio na cabeça; essa pessoa costuma vender frutas. Vocês não sabem que frutas é que estão dentro do balaio, mas dizem: ela vem com um balaio de frutas. Podem ser mangos, bananas, papaias, goiabas, etc., dentro do balaio. Mas na nossa ideia, ela vem com um conjunto que representa uma unidade, um balaio na cabeça, um balaio de frutas. Mas vocês sabem que isso é uma unidade, tanto do ponto de vista de número— um balaio de frutas— como no objectivo de o vender, tudo é a mesma coisa, embora haja várias coisas dentro dele: frutas diversas, mangos, bananas, papaias, etc. Mas a questão fundamental, que é vir com frutas para vender, faz de tudo uma coisa só.

Isto é para dar aos camaradas uma ideia do que é unidade e para dizer aos camaradas que o fundamento principal da unidade é que para ter unidade é preciso ter coisas diferentes. Se não forem diferentes, não é preciso fazer unidade. Não há problema de unidade. Ora para nós o que é unidade? Qual é o objectivo em torno do qual devíamos fazer unidade na nossa terra? Claro que não somos um time de futebol, nem um balaio de frutas. Nós somos um povo, ou pessoas de um povo, que a certa altura da história desse povo tomaram um certo rumo no seu caminho, criaram certos problemas no seu espírito e na sua vida, orientaram a sua acção num certo rumo, puseram certas perguntas e buscaram respostas para essas perguntas. Pode ter começado por uma pessoa só, por duas, três, seis. A certa altura apareceu este problema no nosso meio— Unidade. E o Partido foi tão advertido, quer dizer, entendeu isso tão bem, que no seu próprio lema, como princípio principal, como base de tudo, ele pôs—Unidade e Luta.

Agora surge uma pergunta: essa unidade que surgiu como uma necessidade, era porque as nossas ideias eram diferentes do ponto de vista político? Não, nós não costumávamos fazer política na nossa terra, nem havia nenhum partido na nossa terra. Mas mais ainda, é que debaixo da dominação estrangeira—como é o caso da nossa terra e doutras terras ainda—uma sociedade que não está muito desenvolvida, como é o caso da Guiné e Cabo Verde, em que a diferença entre as situações das pessoas não é muito grande, embora, como vimos, haja algumas diferenças, é muito difícil os objectivos políticos serem muito diferentes uns dos outros. Quer dizer, o nosso problema de unidade não era no sentido de reunir várias cabeças diferentes, pessoas diferentes, do ponto de vista de objectivos políticos, de programas políticos, não. Primeiro porque, na própria estrutura da nossa sociedade, na própria realidade da nossa terra, as diferenças não são tão grandes, para provocarem tantas diferenças de objectivos políticos. Mas, segundo e principal, porque com a dominação estrangeira na nossa terra, com a proibição total que sempre houve, em toda a nossa vida, de fazer qualquer partido político na nossa terra, não havia partidos diferentes para terem de se unir, não havia rumos políticos diferentes para seguirem o mesmo caminho, para se juntarem para fazer a unidade.

Então qual era o problema de unidade na nossa terra? Fundamentalmente, o problema de unidade era este e simples: em primeiro lugar, como toda a gente sabe, a união faz a força. A partir do momento em que surgiu na cabeça de alguns filhos da nossa terra a ideia de fazer os estrangeiros saírem da nossa terra como dominadores, de acabar com a dominação colonialista na nossa terra, pôs-se um problema de força, uma força necessária para ser oposta à força do colonialista.

Portanto, quanto mais gente se unir, quanto mais unidos estivermos, nós correspondemos àquilo que todo o mundo sabe e que é: a união faz a força. Se eu tirar um pau de fósforos e o quiser quebrar, quebro-o rapidamente; se juntar dois, já não é tão fácil, três, quatro, cinco, seis, chegará um dado momento em que não poderei quebrar, é escusado. Mas além disso, para além desse caso, simples, natural, de que a união faz a força (e temos que ver que nem sempre a união faz a força: há certos tipos de união que fazem é fraqueza—e essa é que é a maravilha do mundo, é que todas as coisas têm dois aspectos— um positivo e outro negativo), aqueles que tiveram a ideia de unidade, porque a união faz a força, puseram o problema de unidade no seu espírito e na realidade da nossa luta, porque eles sabiam que no nosso meio havia muita divisão.

Tanto na Guiné como em Cabo Verde há divisão, quer dizer, divisão, em crioulo, quer dizer contradição. No meio da nossa sociedade, por exemplo, qualquer pessoa que pensa a sério na nossa luta, sabe que se todos fossem muçulmanos, ou todos fossem católicos, ou animistas, quer dizer acreditar em «iran», era mais simples. Pelo menos nenhuma força contrária aos interesses do nosso povo poderia tentar dividir-nos por causa da religião. Mas mais ainda, vejamos Cabo Verde. Em Cabo Verde, onde não há muitos problemas de religião, a não ser algumas questõezinhas entre protestantes e católicos na sua boa-vida da cidade, há outros problemas que dividem as pessoas, como por exemplo: algumas famílias têm terra, outras não têm. Se toda a gente tivesse terras ou se ninguém tivesse terras, era mais simples. O inimigo, por exemplo, força contrária a nós, da qual queremos libertar a nossa terra, pode pôr do seu lado aqueles que têm terra, contra nós, na ideia de que nós queremos tirar-lhes a terra. Assim como na Guiné ele pode pôr os régulos contra nós, na ideia de que lhes queremos tirar o mando. Se não houvesse régulos era mais simples. Quer dizer que o problema da unidade surge na nossa terra, repito bem, não por causa da necessidade de juntar pessoas com pensamentos políticos diferentes, mas sim por causa da necessidade de juntar pessoas com situação económica diferente, embora essa diferença não seja tão grande como noutras terras—com situação social diferente, com culturas diferentes, incluindo a religião, quer dizer, pusemos o problema de unidade na nossa terra, tanto na Guiné como em Cabo Verde, no sentido de tirar ao inimigo a possibilidade de explorar as contradições que pode haver entre a nossa gente para enfraquecer a nossa força, que temos que opor contra a força do inimigo.

Portanto, vemos que a unidade é qualquer coisa que temos de fazer, para podermos fazer outra coisa. Quer dizer, para lavarmos, se não formos doidos, por exemplo, ou abrindo a torneira, ou lavando-se no rio, não vamos entrar na água sem nos despirmos, temos que tirar a roupa primeiro.

É um acto que fazemos, um preparativo que fazemos para podermos tomar banho, suponhamos.

Mas, melhor, se quisermos fazer uma reunião nesta sala, com pessoas sentadas, etc., temos que convocar as pessoas, pôr mesas na sala, arranjar lápis, canetas, etc. Quer dizer, temos que arranjar meios para podermos fazer uma reunião como deve ser. A unidade também é um meio, um meio, não é um fim. Nós podemos ter lutado um bocado pela unidade, mas se nós fazemos unidade, isso não quer dizer que a luta acaba. Há muita gente que nesta luta das colónias contra o colonialismo, até hoje, ainda estão a lutar pela unidade. Porque como não são capazes de fazer a luta, pensam que a unidade é que é a luta. A unidade é um meio para lutar e, como todos os meios, tem uma certa quantidade que chega. Não é preciso para lutar num país, unir toda a gente.

Temos a certeza de que toda a gente está unida? Não, basta realizar um certo grau de unidade. Se chegarmos lá, então podemos lutar. Porque então as ideias que estão na cabeça dessas pessoas avançam, desenvolvem-se e servem cada dia mais para realizar o objectivo que temos em vista.

Portanto, os camaradas já viram, mais ou menos, qual é a ideia fundamental que está neste nosso princípio—Unidade.

E o que é Luta ?—Luta é uma condição normal de todos os seres do mundo. Todos estão na luta, todos lutam. Por exemplo, vocês estão sentados em cadeiras, eu estou sentado nesta cadeira, isto é um exemplo: o meu corpo está todo a fazer uma força sobre o soalho, através do banco que está em cima dele, mas se o soalho não tivesse força suficiente para me aguentar, eu ia para baixo, furava o soalho e se debaixo do soalho não houvesse uma força, continuava a furar, e por aí fora.

Portanto há aqui uma luta silenciosa entre a força que eu exerço sobre o soalho e a força do solo que me mantém em cima, que não me deixa passar. Mas vocês todos sabem que a terra está sempre em movimento, talvez alguns ainda não acreditem, mas sabem, a terra faz um movimento de rotação. Se vocês puserem um prato a girar, em movimento de rotação e se puserem uma moeda por cima dele, verão que o prato expulsa a moeda. Quem usar uma funda para espantar os corvos ou os pardais, como se faz na Guiné ou em Cabo Verde, com uma pedra, sabe que, quando puser a pedra na funda e der voltas e voltas, não é preciso arremessar, basta alargar uma ponta da funda e a pedra sai com uma força enorme. O que é preciso é ter boa pontaria para se poder fazer o que se quiser, para saber o momento em que se deve largar a pedra. Quer dizer: tudo aquilo que gira, na área em que gira desenvolve uma força, a que arremessa as coisas para fora. Portanto, nós todos que estamos sobre a terra, que gira, estamos sempre a ser repelidos por uma força que nos empurra para fora da terra, que se chama força centrífuga—que nos empurra do centro para fora.

Mas há também uma outra força que atrai as pessoas para terra, que é a força da gravidade, quer dizer: a terra, como força magnética que é, atrai todos os corpos que estão perto dela, conforme a distancia e a massa de cada corpo. Mas nós estamos sobre a terra e não vamos por aí fora, porque a força da gravidade é muito mais que a força centrífuga que nos atira para fora. O problema de mandar corpos para a lua, etc., o problema fundamental para os cientistas, é o seguinte: vencendo a força da gravidade, conseguem sair da terra. E hoje sabemos que, para que um corpo possa ser lançado fora da terra, vencendo a força da gravidade, ele tem que andar 11 quilómetros por segundo. Se andar numa velocidade tal, que atinja 11 quilómetros por segundo, já venceu a gravidade. Portanto, toda a força que actua sobre qualquer coisa, só pode existir se há uma força contrária. Tu que tens a mão no rosto, a tua mão não move o rosto porque o rosto também resiste.

Tu não sentes, mas ele empurra também. Porque só o peso é uma forma de empurrar, etc.

No nosso caso concreto, a luta é o seguinte: os colonialistas portugueses ocuparam a nossa terra, como estrangeiros e, como ocupantes, exerceram uma força sobre a nossa sociedade, sobre o nosso povo. Força que fez com que eles tomassem o nosso destino nas suas mãos, fez com que parassem a nossa história para ficarmos ligados à história de Portugal, como se fossemos a carroça do comboio de Portugal. E criaram uma série de condições dentro da nossa terra: económicas, sociais, culturais, etc.

Para isso eles tiveram que vencer uma força. Durante quase 50 anos fizeram uma guerra colonial contra o nosso povo; guerra contra manjacos, contra papéis, contra fulas, contra mandingas, biafadas, balantas, contra felupes, contra quase todas as tribos da nossa terra, na Guiné. Em Cabo Verde, os colonialistas portugueses, que encontraram Cabo Verde deserto, na altura em que apareceu a grande exploração de homens africanos, como escravos no mundo, dada a situação importante de Cabo Verde, em pleno Atlântico, resolveram fazer de Cabo Verde um armazém de escravos. Gente levada de África, nomeadamente da Guiné, foi colocada em Cabo Verde, como escravo. Mas, pouco a pouco, aumentaram de número, as leis no mundo mudaram e eles tiveram que deixar de fazer negócio de escravos. Passaram então a exercer sobre essa gente uma pressão parecida com a pressão que exercem na Guiné, quer dizer, uma força colonial. Sempre houve resistência a essa força colonial. Se a força colonial age duma forma, sempre houve uma força nossa, que age contra, muitas vezes tem outras formas: resistência passiva, mentiras, tirar o chapéu, sim senhor, utilizar todas as artimanhas possíveis e imaginárias, para enganar os tugas.

Porque não podíamos enfrentá-lo cara a cara, tínhamos que o enganar, mas com as energias gastas debaixo dessa força: miséria, sofrimento, morte, doenças, desgraças, além de outras consequências de carácter social, como atraso em relação a outros povos no mundo. A nossa luta hoje, é o seguinte: é que surgiu, com a criação do nosso Partido, uma força nova que se opôs à força colonialista. O problema é de saber, na prática, se essa força unida do nosso povo pode vencer a força colonialista: isso é que é a nossa luta. Isso é o que nós chamamos luta.

Agora, tomadas em conjunto, unidade e luta quer dizer que para lutar é preciso unidade, mas para ter unidade também é preciso lutar. E isso significa que mesmo entre nós, nós lutamos; talvez os camaradas não tenham compreendido bem. O significado da nossa luta, não é só em relação ao colonialismo, é também em relação a nós mesmos. Unidade e luta. Unidade para lutarmos contra o colonialista e luta para realizarmos a nossa unidade, para construirmos a nossa terra como deve ser.

Camaradas, todo o resto é a aplicação deste princípio básico nosso. Quem não o entender, ele tem que entender, porque senão ainda não entendeu nada da nossa luta. E nós temos que realizar este princípio, em três planos fundamentais: na Guiné, em Cabo Verde e na Guiné e Cabo Verde.

Quem estudou o programa do Partido, sabe que é assim mesmo.

Da conversa que eu já fiz, vocês viram qual foi a contradição que tivemos e que temos permanentemente que vencer, para podermos garantir a unidade necessária para a luta na Guiné.

Pelos exemplos que vos dei na Guiné, vocês sentiram mais ou menos quais foram e quais são as contradições que temos que vencer em Cabo Verde, para garantirmos a unidade necessária para realizarmos a luta em Cabo Verde. Os camaradas sabem que os tugas nos dividiram muito, nós mesmos nos dividimos, como consequência da evolução da nossa vida.

Na Guiné, por exemplo: por um lado há gente da cidade, por outro, gente do mato, pelo menos.

Na cidade há brancos e pretos. Entre os africanos há altos empregados e empregados médios, que têm a certeza de que no fim do mês têm o seu dinheiro certo. Têm aquela ideia de comprar o seu carrinho, como eu, por exemplo, que tinha o meu próprio carro. Com geleira, boa raça de mulher, filhos que vão ao liceu de certeza e que mesmo, se estudarem muito, vão para Lisboa. Depois há aqueles empregadinhos, mais ou menos, que fazem o seu sábado, com o seu tinto e o seu bacalhau, que podem comprar o seu rádio transístor, as suas coisas. Depois há os trabalhadores de cais, reparadores de carros, podemos meter aí os motoristas e outros que vivem um bocado melhor. Trabalhadores assalariados em geral. E depois há aquela gente que não tem nada que fazer, que vive de expedientes cada dia, por todo o lado, que nem mesmo sabem que fazer para arranjarem maneira de viver. Quer gente de vida fácil, como as prostitutas, quer pedintes, trapaceiros, ladrões, etc., gente que não tem nada que fazer. Isto é que é a sociedade das cidades.

Mas se vocês repararem bem, podem ver que esses descendentes de guineenses ou de cabo-verdianos que estão bem na vida, o seu interesse é um só, o seu interesse é comum: todos agarrados aos tugas, fingindo ser portugueses o máximo que podem, até proíbem os filhos de falarem outra língua em casa que não seja o português, vocês sabem bem. E se virmos outro grupo, o seu interesse é também mais ou menos o mesmo. Os Zé Marias, os João Vaz, e outros também, claro, que eram empregados. Alguns de vocês, por exemplo, que eram empregados, mas que são nacionalistas, não é verdade? Mas os interesses eram mais ou menos os mesmos, vivem sempre na mesma esfera, no mesmo grupo social.

Assim como os trabalhadores do cais, de barcos, carregadores, etc., já é outro grupo. Vocês podem encontrar-se, conversar, etc., mas que não vão sentar-se juntos com eles à mesa para comer. Assim como no grupo dos tugas, por exemplo, as famílias do governador, do director do banco, do director da Fazenda, etc., não vemos aí nunca a mulher do tuga operário ou de qualquer um que é batedor de chapas. Só se ele tiver alguma filha muito linda, que toda a gente admira, e que de vez em quando vai dançar com a gente da alta. Mas a mãe que não sabe ler nem escrever, não vai. Acompanha a filha à porta e sai. Vocês lembram-se de casos desses em Bissau.

A sociedade, em Cabo Verde, é parecida; o mesmo género de sociedade, na cidade. Somente em Cabo Verde esse grupo de africanos que tem alguns meios, era há tempos muito maior que na Guiné. Tanto funcionários como proprietários, donos da terra. Embora esteja a terra no mato, eles vivem na cidade. E na cidade a posição é, mais ou menos, esta: funcionários ou empregados já com certo nível, pequenos funcionários e empregados, trabalhadores que podem ser postos fora qualquer dia e aqueles que não têm nada que fazer. Esta é que é a sociedade da cidade, tanto na Guiné como em Cabo Verde. Na Guiné ou em Cabo Verde, o número de brancos foi sempre pequeno. Na Guiné nunca passaram de três mil, e em Cabo Verde parece mesmo que nunca chegaram a mil. Brancos civis, fazendo uma vida normal, como funcionários, técnicos, comerciantes, empregados, etc.

E claro que esta sociedade na cidade, temos que vê-la em relação à luta para fazermos a unidade.

Porque nós, contra os colonialistas portugueses, queremos até mesmo gente desse grupo de brancos, para lutarem ao nosso lado, se eles quiserem. Porque entre os brancos, pode haver uns que são a favor do colonialismo e outros que são anticolonialistas. Se esses se juntarem a nós, é bom, é mais força contra os colonialistas. Aliás vocês sabem que exploramos isso bastante. O camarada Luís Cabral, por exemplo, se conseguiu fugir, foram os brancos que o tiraram de Bissau, para passar em Ensalma, para seguir para a fronteira. Dois brancos, todos vocês sabem.

Uma pessoa que teve influência no trabalho do nosso Partido em Bissau, foi uma portuguesa. Só quem não está no Partido é que não sabe isso. O Osvaldo, a primeira pessoa que lhe ensinou coisas para a luta, foi ela, não fui eu. Eu não conhecia o Osvaldo.

Quer dizer, para lutar contra o inimigo colonialista, todas as forças que possamos juntar, que venham, que venham. Mas não é às cegas, temos que saber qual é a posição de cada um em relação aos colonialistas. Então, nas cidades verifica-se o seguinte: brancos, muito poucos fizeram alguma coisa contra os colonialistas. Primeiro, porque eles são a classe colonial, os que representam mais o colonialismo na nossa terra; segundo, porque vários não estão para isso, porque têm a sua vida, querem ir-se embora quando ganharem muito dinheiro, não estão para maçadas; e terceiro, porque os brancos, os tugas que vivem na nossa terra, não têm em geral formação política bastante para tomar uma atitude concreta, aberta, contra um regime qualquer, estejam onde estiverem.

E nós, africanos? Entre os grupos a que podemos chamar pequeno-burgueses, gente com uma vida certa, seja descendentes de guineenses ou de cabo-verdianos, aparecem sempre três grupos de pessoas. Um grupo pequenino, mas forte, que é a favor dos colonialistas, que nem mesmo querem ouvir falar disso, da luta contra os tugas. Daquelas pessoas que foram a minha casa em Pessubé, como gente grande, bem empregada, comendo bem, bebendo bem, que vai a férias, etc., sentaram-se e disseram: «Bom, queremos conversar contigo. Tu, filho do fulano de tal, nós conhecemos-te bem, estás-te a meter em problemas, estás a estragar a tua carreira de engenheiro, nós queremos aconselhar-te, porque nós não temos nada que fazer contra os tugas, nós todos somos portugueses». Para esses não há remédio. Uma grande maioria de pequeno-burgueses, que está indecisa, que estava indecisa e que certamente ainda está hoje, porque eles pensam: «O Cabral vem com as suas coisas, com a sua gente, de facto seria bom que corrêssemos com os tugas, mas...». Quem mais sofre com os tugas são essa gente da cidade, todos os dias os tugas estão em cima deles, a aborrecê-los, nas cidades, quer dizer, Mansoa, Bissau, Bissorã, Praia, S. Vicente. Os brancos que vêm como aspirantes ou escriturários. Se há concursos, os brancos passam logo à frente. Por exemplo, o pai do Cruz Pinto, tanta gente que lhe passou adiante, mas ele estava lá, assim como os pais de outros que estão aqui. É gente que sofre directamente com o colonialismo todos os dias. Enquanto, por exemplo, o homem que vive no mato, lá no fundo do Oio, ou no Foreá, por vezes morre sem ter visto um branco. Lembro-me, por exemplo, que, quando um agrónomo português foi comigo visitar certas áreas no Oio, as crianças chegavam perto dele e esfregavam-lhe o braço para ver porque é que ele era assim, branco. Alguns perguntaram-lhe mesmo—mas porque é que você é assim? Nunca tinham visto um branco.

Enquanto que quem vive na cidade vê brancos todos os dias. Continuando, esse é um grupo de gente, grande grupo de pequeno-burgueses que têm o seu vencimento no fim do mês, e que o seu desejo de facto é que os tugas se vão embora, mas têm medo, porque não sabem se na realidade nós podemos ganhar. O Cabral veio com a sua gente, as suas ideias, mas se nós perdemos ?

Perdemos a nossa geleira, o nosso dinheiro no fim do mês, o nosso rádio, o nosso sonho de ir a Portugal passar as férias. Férias em Portugal para virem depois gabar-se (roncar), etc. Tudo isso fá-los ficar na indecisão na balança. Mas há um grupo mais pequeno que desde o começo se levantou com a ideia de lutar, que é contra o colonialismo português, que está pronto a morrer, se for preciso, contra o colonialismo português. E é nesse mesmo grupo que surgiram pessoas que pegaram no Partido. Porque se vocês repararem bem, a maior parte das pessoas que criaram o Partido, nem pagaram imposto, nem levaram porrada, nem mesmo tiveram falta de emprego, pelo contrário, tinham uma vida razoável. Essa é a situação da nossa pequena-burguesia diante da luta, quer na Guiné, quer em Cabo Verde.

E os nossos trabalhadores assalariados ? A maioria é favorável à luta, pelo menos no começo.

Nós estamos a falar do começo. A maioria, carpinteiros, pedreiros, sobretudo marinheiros, mecânicos, motoristas mesmo, que sentiam a exploração no duro, que ganhavam um salário miserável. É que quando um homem que trabalha como pedreiro ganha dez, e um branco ganha 80$00, senão 800$00, ele sente uma exploração grande pela sua condição de vida. Mas nesse grupo também há gente que não quer lutar, que é favorável ao colonialismo.

E nesse grupo de gente que não tem nada que fazer, que não tem trabalho, em geral não encontramos gente para a luta. Em geral é gente que serve de agentes da PIDE, muitos deles.

Enquanto que outros são razoáveis.

No caso da Guiné, concretamente, é preciso reparar que há um certo grupo de gente que está entre a pequena-burguesia e os trabalhadores assalariados, não sei bem que nome dar-lhes.

Muitos rapazes que não têm emprego certo, sabendo ler e escrever, trabalhando um bocado ou outro, vivem muitas vezes à custa do tio que está na cidade—e nós temos muito disso na nossa terra—mas que tinham um contacto permanente com o colonialismo: jogadores de bola, um tanto entusiasmados com o tuga, mas sentiam também um bocado, por exemplo: bom jogador, baile no UDIB, mas ele não pode entrar, etc. Essa gente veio para a luta muito rapidamente. E desempenharam um papel importante nesta luta, porque, por um lado, são da cidade e por outro lado estão muito ligados ao mato. Não tinham nada a perder a não ser o seu jogo de futebol ou um empregozinho ( alfaiate, carpinteiro) mas que praticamente não queriam aquele emprego porque sabiam bem que isso não valia muito, para poderem viver (roncar) junto do tuga. Porque eles querem roncar ao lado do tuga e querem a África também. Gente que aprendeu na cidade como é bom ter coisas boas, mas que por causa da humilhação que sofre, sente que o tuga está a mais. E o Partido ajudou-os a aumentar a sua consciência disso.

E no mato? No mato é conforme: se é na nossa sociedade balanta, não há problema. A sociedade balanta é uma sociedade chamada horizontal, quer dizer, não tem classes, por cima uma das outras. Os balantas não têm chefes grandes, os tugas é que lhes arranjaram chefes. No balanta, cada família, cada morança, tem a sua autonomia e, se há algum problema, é o conselho dos velhos que o resolve, mas não há um Estado, não há nenhuma autoridade que manda em toda a gente. Se havia, no nosso tempo, porque vocês são jovens, é porque o tuga o pôs lá. Há mandingas chefes de balantas, antigos cipaios que põem como chefes. Mas eles não podem resistir, que é que hão-de fazer, aceitam-nas estão-se marimbando para o chefe. Cada um manda na sua casa, e entendem-se bem, juntam-se para lavrar, etc., e não há muita conversa. E até acontece no grupo balanta haver duas moranças perto uma da outra e elas não se dão entre elas.

Ou por causa da terra, ou qualquer outra questão do passado. Não querem nada uma com a outra.

Mas isso são costumes antigos que era preciso explicar, donde vêem, se tivéssemos tempo.

Coisas passadas, de sangue, de casamento, de crenças, etc. A sociedade balanta é assim: Quanto mais terra tu lavras, mais rico tu és, mas a riqueza não é para guardar, é para gastar, porque um não pode ser muito mais que o outro. Esse é que é o princípio da sociedade balanta, como doutras sociedades da nossa terra. Enquanto os fulas, os manjacos, etc., têm chefes, mas chefe não porque o tuga o pôs lá, é a própria evolução da sua história. Claro que temos que dizer aos camaradas que, na Guiné, os fulas e os mandingas, pelo menos, são gente que veio de fora. A maioria dos fulas e dos mandingas da nossa terra, era gente antiga da terra, que se tornou fula ou mandinga. É bom saberem bem isso, para poderem compreender certas coisas. Porque se compararmos as regras da vida dos fulas da nossa terra com as dos fulas de verdade noutras áreas de África, há já um bocado de diferença, mesmo no Futa Djalon já é diferente. Na nossa terra muitos se tornaram fulas: os mandingas antigos viraram fulas. Os mandingas mesmo que vieram, conquistaram até a região de Mansoa e mandinguisaram as pessoas, transformaram-nas em mandingas. Os balantas recusaram-se e muita gente diz que a própria palavra balanta significa aqueles que recusam. O Balanta é aquele que não se convence, que nega. Mas não recusou tanto porque existe balanta-mane ou mansoanca. Sempre apareceram alguns que aceitaram e foram aumentando aos poucos, aceitar ser muçulmanos.

Balantas, pepel, mancanhas, etc., era tudo gente do interior de África que os mandingas empurraram para junto do mar. Os Sussus da República da Guiné, por exemplo, vêm do Futa-Djalon, os mandingas e os fulas é que os tiraram de lá. Os mandingas tiraram e depois vieram os fulas que tiraram também mandingas. Como dissemos, a sociedade de fulas, por exemplo, a sociedade manjaca, já é uma sociedade que tem gente (classes) de baixo para cima.

Na balanta não, quem levantar muito a cabeça já não presta, já quer virar branco, etc. Por exemplo, se se lavrar muito arroz, é preciso fazer uma grande festa, para gastar. Enquanto que os fulas e os manjacos têm outras regras, uns mais do que os outros. Quer dizer, as sociedades manjaca e fula são chamadas verticais. Em cima há o chefe, a seguir os religiosos, a gente grande da religião que com os chefes forma uma classe, a seguir vêm os outros de profissões diversas (sapateiros, ferreiros, ourives) que, em qualquer sociedade não têm direitos iguais aos de cima.

No costume antigo, quem é ourives, tem mesmo vergonha. Quanto mais se for «Djidiu».

Portanto, uma série de profissões, em escala, mas umas abaixo de outra. O ferreiro não é a mesma coisa que o sapateiro e o sapateiro não é a mesma coisa que o ourives, etc., cada um tem a sua profissão, claro. Depois então vem a grande massa da gente que lavra o chão. Lavra o chão para os chefes, como é costume. Esta é a sociedade fula e a sociedade manjaca. Com todas as teorias necessárias, teorias como: um dado chefe está ligado com Deus. No manjaco, por exemplo, se alguém é lavrador, ele não pode lavrar o chão sem ordem do chefe, porque o chefe é que tem a palavra de Deus para lhe dar. Cada um é livre de acreditar no que quiser. Mas todo um ciclo criado para quê? Para os que estão por cima garantirem a certeza de que os que estão por baixo não se levantam contra eles. Mas na nossa terra aconteceu várias vezes entre os fulas, por exemplo, que gentes de baixo, levantaram-se e lutaram contra os de cima. Houve revoltas de camponeses em grande, várias vezes. Temos, por exemplo, o caso de Mussa Molo, que deitou abaixo e tomou conta do lugar. Mas acabou de tomar conta do lugar, adoptou a mesma lei antiga, porque essa é que era boa, tudo continuou na mesma, porque assim é que está bem. E esqueceu-se logo donde tinha saído. Isso é o que muita gente quer infelizmente.

Nesta sociedade do mato, grande número de balantas pegou na luta e não é por acaso, não é porque os balantas são melhores que os outros. É por causa do tipo de sociedade que eles têm, sociedade horizontal (rasa) mas de homens livres, que querem ser livres, que não têm nenhuma opressão em cima, a não ser a opressão dos tugas. O balanta é ele e o tuga por cima dele, porque o chefe que lá está, o Mamadu, ele sabe que não é nada seu chefe, foi o tuga que o pôs lá.

Portanto, mais interesse ele tem em acabar com isso para ficar com a sua liberdade absoluta. E é por isso também que quando qualquer elemento do Partido comete um erro com os balantas, eles não gostam e zangam-se depressa, mais depressa do que qualquer outro grupo.

Enquanto que entre fulas e manjacos não é assim. A grande massa que sofre de facto é a de baixo, os trabalhadores da terra (camponeses). Mas entre eles e os tugas há muita gente. Já se habituou a sofrer, a sofrer com a sua própria gente, sob a opressão da sua própria gente. E que quem lavra a terra, tem que trabalhar para todos os chefes, muitos chefes, além de chefes de posto. Então verificou-se o seguinte: quando compreenderam de facto, grande parte dos camponeses pegou na luta, salvo um grupo ou outro no qual não trabalhámos bem. Nos que estão acima deles (os profissionais) alguns pegaram e outros não, mas muito interesseiros, trabalham muito para eles mesmo (artesãos) e entre os religiosos e os chefes, raros foram os que pegaram no Partido, porque têm medo de perder os seus privilégios, a favor da luta. Nessas sociedades de classes, há um grupo que desempenha um papel especial: os que levam mercadorias dum lado para outro, para vender ou para trocar (dentro ou fora da terra). Trocam mercadorias, emprestam dinheiro aos chefes, etc. São os «Djilas». É um grupo especial, no quadro da nossa sociedade.

Essas são as sociedades que têm classes: classe dirigente, classe de artesãos, classe de camponeses. Era preciso fazermos unidade, o máximo possível, das forças de diferentes classes, de diferentes elementos da sociedade para fazermos a luta na nossa terra. Não é preciso unir toda a gente, como já disse, mas é preciso ter um certo grau de unidade. Mas isso vê-se numa sociedade apenas do ponto de vista da sua estrutura social, no seu sentido comum, vulgar. Porque na nossa sociedade há vários grupos étnicos, quer dizer, grupos com culturas e costumes diferentes e que, segundo a sua própria convicção, vieram de grupos diferentes, de origens diferentes: fulas, mandingas, papéis, balantas, manjacos, mancanha, etc., incluindo também descendentes de cabo-verdianos, na Guiné.

Em Cabo Verde, no campo, no mato, é complicado. Porque há: proprietários de terra (há grandes e pequenos proprietários), há rendeiros (ligados em geral aos grandes proprietários), parceiros, lavram a terra que não lhes pertence, para depois repartir com o dono o resultado da colheita. Os rendeiros lavram a terra, mas têm que pagar a renda para o dono da terra. E há alguns trabalhadores agrícolas, mas são poucos, não chegam para formar uma classe. Trabalham nas propriedades de outros. Felizmente em certo ponto, e infelizmente noutro, porque houve muita desgraça, os grandes proprietários perderam muito das suas terras, com as crises que houve em Cabo Verde por falta de chuvas, mas principalmente pela má administração portuguesa. Tiveram que hipotecar, quer dizer entregar ao Banco para o Banco lhes dar dinheiro, mas depois eles não podem pagar e perdem a terra. Então o Banco e a Caixa Económica é que são os maiores grandes proprietários na nossa terra hoje. Pequenos proprietários ainda há alguns hoje. Os rendeiros, portanto, arrendam a terra ao Banco ou à Caixa Económica, ou a um ou outro proprietário que ainda existe. Quer dizer, este grupo é um grupo de gente que não tem terra. Enquanto na Guiné não podemos dizer a ninguém: vamos lutar para ter terra, em Cabo Verde já é possível dizer a esta gente, vamos lutar porque quem lutar na nossa terra, poderá ter a sua própria terra para cultivar. Esta é que é a diferença fundamental entre o mato na Guiné e o mato em Cabo Verde.

Todo este grupo, se trabalharmos bem, todo ele será favorável à luta. Os grandes proprietários serão contra a luta, de certeza. Os pequenos proprietários, uns serão a favor e outros contra, porque são comparáveis à gente da pequena-burguesia. Uns a favor, outros contra e outros indecisos. Uns contra porque pensam que queremos tomar a terra e vamos acabar com a propriedade, ele é contra, porque ele está à espera. Uns a favor porque pensam que nós tomamos a terra, vai haver liberdade e podem fazer a sua terra pequenina uma terra grande. Outros na dúvida porque não sabem bem o que queremos, podem ganhar qualquer coisa, podem perder, ainda estão mais ou menos bem com o tuga, hesitantes.

Mas outras contradições há, por exemplo na Guiné—há grupos étnicos, as chamadas tribos, que nós chamamos raças. Sabemos quantas contradições houve entre eles, em tempos passados, um passado por vezes não muito longe. Nos anos 30, em Bissau, na área de Bissalanca, no Chão-dos-Manjacos. E sabemos que, por exemplo, no Oio, em 1954, eu mesmo assisti, contradição grande entre Balantas e Oincas. Tudo por causa de ideias antigas que ainda existem na cabeça das pessoas, mas interesses práticos, concretos, ou porque roubaram as vacas, ou porque levaram as badjudas, ou porque lavraram a terra que não lhes pertencia, etc. E que os tugas podem explorar e exploram para provocar conflitos entre a nossa gente. Estas são algumas das contradições que queríamos explicar aos camaradas.

Tanto na Guiné como em Cabo Verde, o nosso objectivo foi eliminar as contradições da melhor maneira, levantar toda a gente para pegarmos num objectivo comum: correr com os colonialistas tugas.

E no quadro da Guiné e Cabo Verde, considerados conjuntamente? Há alguma contradição? Cada um pode pensar  bem e ver. A contradição que havia, que pode parecer que havia, era o seguinte: muitos funcionários e empregados coloniais na Guiné são cabo-verdianos, vários chefes de posto são cabo-verdianos, e dado que, em Cabo Verde a instrução foi mais desenvolvida, mais possibilidades existem para os cabo-verdianos conseguirem emprego, do que para os próprios filhos da Guiné. Isso pode parecer que eles (cabo-verdianos) é que estão a tomar nas suas mãos os interesses do povo da Guiné. Eles é que ganham. Mas se virmos bem, também há filhos da Guiné que estão nas mesmas condições dos cabo-verdianos, e que nunca houve contradição entre essa gente que está nas cidades e a nossa gente do mato. Na cidade é que há contradição. Contradição entre quem ? Entre descendentes da Guiné que queriam ter vida que tinham os cabo-verdianos (como chefe de posto, que são agentes do colonialismo), contra o nosso povo. Enquanto que, em Cabo Verde, o povo é também explorado, como é explorado na Guiné. E nalguns aspectos muito mais durante, com fome e com exportação de homens como trabalhadores contratados para S. Tomé e para Angola, como animais, praticamente. Então a contradição que podia existir entre guineenses e cabo-verdianos é a contradição à busca de emprego, de bons lugares. Por exemplo, um indivíduo que tem 2.º grau ou 3.º ano do liceu na Guiné, vê um cabo-verdiano que vem e toma um lugar de chefe de posto, que come galinha, cabrito, a quem tiram o chapéu, etc., e ele não conseguiu isso ainda. Nasce uma certa coisa nele. Mas se estudarmos bem o problema, vemos que a tendência geral dessa pequena-burguesia guineense é a de viver bem com a  pequena-burguesia cabo-verdiana. A tendência geral é a de se entenderem; ao lado dos tugas. E nunca vimos, no mato, por exemplo, qualquer contradição entre cabo-verdianos e guineenses.

Nada que possa ter qualquer parecença com a contradição profunda que vimos entre certas raças da Guiné mesmo. Quase todos os camaradas podem ver isso bem.

Portanto, para nós, P.A.I.G.C., para o objectivo da nossa luta, de unidade da Guiné e Cabo Verde, não encontrámos tantas dificuldades, do ponto de vista de análise como no caso da unidade na Guiné e unidade em Cabo Verde. Se tomamos só a Guiné, vemos muitas contradições dentro dela. Em Cabo Verde, tomando só Cabo Verde, há muitas contradições. Mas tomando no conjunto, as contradições diminuem. A contradição limita-se a existir apenas entre a pequena-burguesia, lá é que havia algumas contradições. E é dessa pequena burguesia que surgem os grupos oportunistas que têm combatido o P.A.I.G.C. Grupos de oportunistas que no primeiro movimento que fizeram já eram ministros disto e daquilo, sentido de carreira, lugar, mais nada.

Claro que para nós o problema da unidade da Guiné e Cabo Verde não se põe por uma questão de capricho nosso, não é porque Cabral é filho de cabo-verdiano, nascido em Bafatá, que tem amor grande pelo povo da Guiné, mas também grande amor pelo povo de Cabo Verde. Não é nada por isso, embora seja verdade. Eu vi gente morrer de fome em Cabo Verde e vi gente morrer de açoites na Guiné (com bofetadas, pontapés, trabalho forçado) entendem? Essa é que é a razão da minha revolta. Mas a razão fundamental da luta pela unidade da Guiné e Cabo Verde é a própria natureza da Guiné e Cabo Verde que nos leva a isso. São os próprios interesses da Guiné e Cabo Verde que nos levam a isso. Qualquer pessoa que não seja ignorante e que estuda os problemas a sério, que conhece a história a sério, que conhece tanto relativamente às raças da nossa terra, tanto na Guiné como em Cabo Verde, como à história colonial, essa pessoa, se tem de facto interesse em que o nosso povo avance para a frente, tem que ser a favor da unidade da Guiné e Cabo Verde. Mas mais, dentro das possibilidades da luta concreta para a nossa terra, na Guiné e em Cabo Verde, qualquer pessoa que quer lutar a sério, como o P.A.I.G.C. conseguiu lutar e está a lutar, para realizar uma coisa, na análise, estudando o problema a fundo, que é o seguinte: não era possível a luta na Guiné, se não fosse junto, unido—P.A.I.G.C.—não era possível a luta em Cabo Verde, se não fosse junto, unido—P.A.I.G.C. Vocês sabem, camaradas, qual é a prova concreta disso ? Por exemplo: não há movimento nenhum que tenha dito: —para nós só filhos da Guiné—e que tenha avançado. Vocês conhecem alguém ? Não há movimento em Cabo Verde, só de filhos de Cabo Verde, que tenha avançado, não há nenhum. Isso quer dizer que a nossa análise foi certa, justa, sobretudo se tivermos em vista as perspectivas como entidade económica e política viável em África, capaz de facto de realizar uma vida nova. Claro que todos aqueles que lutam pela unidade africana, entendem que nós somos o único exemplo, com a Tanzânia que resultou da União da Tanganica com Zanzibar, que luta de facto pela unidade africana. Mas não existe um problema verdadeiro de lutar pela unidade da Guiné e Cabo Verde, porque, por natureza, por história, por geografia, por tendência económica, por tudo, até por sangue, a Guiné e Cabo Verde são um só. Só quem for ignorante é que não sabe isso.

O tuga sabia isso muito bem. Carreira, com todos os seus abusos na Guiné, sabia-o bem. Mas eles fingem não saber para nos dividirem. A sua esperança era—se Cabo Verde pega na luta, mobilizar os guineenses para combater os cabo-verdianos que não prestam e que estavam na Guiné como chefes de posto. Se os filhos da Guiné pegarem na luta, mobilizar os cabo-verdianos, tanto na Guiné como em Cabo Verde para combater duro contra os filhos da Guiné, para não deixarem levantar, para não deixarem ser livres. Ora o nosso Partido, passou-lhe aquela grande rasteira (boló). A maior rasteira da vida dos tugas é essa: na primeira fornada de gente que foi para a cadeia, havia guineenses e cabo-verdianos juntos. O tuga espantou-se (mâria). E se repararem bem, vejam: há muita gente em Bissau que podia falar na Rádio, não nos parece estranho ? Podiam falar na Rádio descompor-nos, etc., podiam fazer bons artigos na Rádio dos tugas, mas nenhum faz isso. A Rádio é só Alfa Umarú, Malan Ndjai e não sei quem mais, ou então algum bandido que fugiu, da República da Guiné ou do Senegal, e foi falar em Francês em Bissau. Vocês já viram isso bem? Como é que não há nenhum patrício nosso, seja da Guiné ou de Cabo Verde, que foi à escola, que sabe bastante para falar na Rádio e que o faça na nossa Guiné?

Não há, porque há muito tempo que o Partido passou a rasteira. O tuga perdeu a confiança nessa gente, duma vez, e essa gente também perdeu a confiança e não se mete nisso, porque não sabe, não sabe o que pode acontecer. Mas os tugas, não há muito tempo, em português, depois de algum tempo, de começar a luta armada, em português e mesmo em crioulo, já afirmavam:

«Filhos da Guiné e Cabo Verde vocês são um só, debaixo da bandeira de Portugal». Vocês nunca ouviram? Mas, enquanto isso, em mandinga, dizem que os cabo-verdianos não prestam. Para verem se conseguem manter ainda uma certa divisão. Hoje estão já a acabar com isso, aos poucos. De vez em quando põem um a dizer: «eu sou filho da Guiné, completo, não sou filho de estrangeiro como alguns que nasceram aqui». Para verem se mantêm uma certa ideia de divisão.

Assim como no começo da luta diziam: «fulas, vocês, com vocês é que vamos ganhar esta guerra, porque vocês é que são os melhores filhos da Guiné», etc. Quando falam em Manjaco, dizem o mesmo. Dizem que os papéis é que fazem mal aos fulas, que os fulas é que fazem mal aos papéis, para dividir. Mas já viram que isso não dá nada. No nosso Partido ninguém dividiu, pelo contrário, cada dia nos unimos mais. Aqui não há papel, nem fula, nem mandinga, nem filhos de cabo-verdianos, nada disso. O que há é P.A.I.G.C. e vamos para diante. Os tugas estão desesperados. Então são eles mesmo, por exemplo, que hoje nas suas revistas, como esta, que se chama «Ultramar», têm grandes artigos, estudando a questão da Guiné e Cabo Verde, e escrevem: «A Guiné e as Ilhas de Cabo Verde —a sua unidade histórica e populacional». E sabem quem fez este artigo ? Carreira. Porque ele conhece de facto muitos problemas de história.

E neste artigo ele reuniu todos os documentos que há nos arquivos dos tugas e estudou para onde é que os filhos da Guiné foram, quando foram enviados para Cabo Verde. Para S. Tiago ?—

Balantas, mandingas, biafadas, etc. Para S. Vicente ? Foram fulas, etc. Com relatórios, sobre a chegada destes, etc. No princípio eram contra, mas eles sabiam que nós somos a mesma gente, na Guiné e Cabo Verde.

Quer dizer, tanto do conhecimento da História, da realidade da nossa vida do passado, como do conhecimento dos interesses do nosso povo e da África, tanto na questão de estratégia de luta (porque qualquer pessoa que pensa na luta a sério, sabe que não há independência da Guiné sem a independência de Cabo Verde nem há independência da República da Guiné, nem do Senegal nem da Mauritânia, se eles querem ser países a sério, sem Cabo Verde ser independente, ouvem bem ? Não há. Só quem não entende nada de estratégia é que pode pensar que esta África pode ser independente, com Cabo Verde ocupado pelos colonialistas. É impossível. Assim como, vice-versa, não pode haver independência de Cabo Verde a sério, sem a independência da Guiné, e sem a África ser independente a sério) qualquer um que põe o interesse do seu povo acima dos seus próprios interesses—a análise séria dos problemas acima de quaisquer manias ou ambições— só pode chegar a uma conclusão que é a seguinte: A coisa melhor que o P.A.I.G.C. fez, que o grupo daqueles que criaram o P.A.I.G.C. fez, foi estabelecer como base fundamental— Unidade e Luta—Unidade da Guiné, Unidade em Cabo Verde e Unidade da Guiné e Cabo Verde.

Quem ainda não vir isso, verá mais tarde. Mas muitos africanos já começaram a vê-lo. Muitas forças amigas nossas começaram a ver, mas também os nossos inimigos já começaram a vê-lo. A preocupação dos imperialistas hoje, é a seguinte: «Cabral aceita ou não, a independência da Guiné, sem Cabo Verde ?». Essa é que é a grande preocupação. «O P.A.I.G.C., aceita ou não a independência da Guiné sem Cabo Verde?». Isto é que o imperialista quer saber e perguntaram-no mesmo. Eu disse-lhe: «Ponha os tugas a perguntar, você não é tuga». Porque eles sabem muito bem qual é a importância que têm o nosso conjunto. Um dia um dirigente africano disse-nos: vocês são inteligentes ( djiro) . Perguntamos-lhe porquê e ele disse: Eu conheço a vossa gente na Guiné e a vossa gente em Cabo Verde. Se vocês conseguirem de facto o que estão a fazer, apesar de uma terra pequenina, vocês hão de ser um país forte dentro da África. Vamos a ver, dissemos.

Camaradas, vamos pois para a frente, reforçados pela certeza da nossa razão: a criação do P.A.I.G.C., nas bases que acabo de expor, foi a maior realização do nosso povo, para a conquista da liberdade e a construção do seu progresso e felicidade na Guiné e Cabo Verde.

COMENTÁRIOS AOS TEXTOS DA SECÇÃO EDITORIAL


Cultivamos e incentivamos o exercício da mente, desafiamos e exigimos a liberdade de expressão, pois é através da manifestação e divulgação do pensamento (ideias e opiniões), que qualquer ser humano começa por ser útil à sociedade! Fernando Casimiro (Didinho)

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VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!

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