Os Cabalos de Amílcar E os Bacumbas: Desentendimentos no cabaz de bianda


 

 

Leonardo dos Santos

leo5581@hotmail.com

29.07.2012

 Leonardo Santos- Nha Maria, meninos, esta história que vou contar, não me foi contada por meu avô, que a ouvira da boca do meu tetravô. Nada disso! É uma história vista e assistida pelos meus olhos - limpos pus! Aconteceu nesta nossa terra da Guiné-Bissau.
Tinha um homem “de cabeça Grande.” O homem era tão “sabe cheio,” “tão sabe cheio,” muita gente o considerava um Deus desta terra. Entre as suas sabedorias, contava-se o dom de encantar os animais: qualquer animal, por mais selvagem e ruim que fosse, que encontrava no caminho, com alguma convivência, tornaria num bicho mais dócil desta terra.
Nha Maria, obra de Nô`Senhor, esse homem se encontrar neste chão, na altura em que o m`ufimesse fincou os seus pés malbenzidos sobre as nossas as coisas!
Naquele momento, a afronta, mas afronta de verdade, nha Maria, levantou e pegou nos espíritos da gente. Alguém entrava de noite na sua casa, para sossegar o seu espírito de fadiga, vinha a afronta firmar-lhe na porta, tirar-lhe de dentro e minar-se com ele para sempre… Como se não bastasse, a caseira se juntou a afronta alagando as suas patas sobre toda a terra.
Pecadores levantavam-se de manhã, corriam e corriam com as barrigas limpa pus, até cair do sol, nem pão de Cristo para enganar a fome!
Meninos! Vocês que estão a crescer não conhecem a caseira. Bem, verdade é sabe contar… vocês vivem na caseira, mas é outra caseira!
- Como sim, homem! Canseira é sempre canseira. Não tem canseira sim, mas que não é como canseira!
- Desculpe, nha Maria, falei como um menino. nha Maria tem toda a razão! Bem vista… As coisas olhadas com olhos de verdade, - não com aqueles de que “ é chão de nós, não tem jeito!”- esta terra, embora gostosa, não tem outra igual, tem sido madrasta de muitos de nós. Por isso mesmo digo; o seu estrume é muito bom, faz pegar tudo o que nela cai, mas é cocó do Diabo! Daí tudo o que crescer nela ser malbenzido!
Como estava a contar, o homem acabava de fincar a sua banca de trabalho, olhava com olhos cheios das bolhanhas mergulhadas nas águas límpidas e doiradas de sol, quando a chuva que não tem água se ribombou e caiu os seus raios no porto de Pindjiquite. Atormentado, gente se arrebatou o corpo, só com o lopé, meteu-se nas matas. Se t`abancou aí, tornando bichos de verdade.
O castigo que tinha abatido sobre a terra estava somente a começar, nha Maria! Nhor Deus mandou os irães abrir a torneira de água, encher todas as lálás, lagoas e caminhos onde os animais podiam andar. As pulgas, os percevejos, carrapatos e matacanhas saíram, não se sabe de onde, e abafaram os corpos de pobres animais aconchegados debaixo das árvores.
- Coitados filhos de Cristo! Como Deus permitiu acontecer uma coisa desta!
- Verdade, nha Maria, não era coisa olhar! Um animal, de exemplo um fatango, sentado a olhar para o fundo do seu rabo, a lutar para desgravatar as matacanhas que aí se enterraram. Não Era coisa para olhar, nha Maria! Trabalhão que dava…
Pecadores estavam assim metidos nas matas entre meios-mortos e meios-vivos, sem tom do que deveriam fazer, apareceu-lhes o dito homem, como o sol do meio-dia no meio daquela miséria.
O homem firmou todos os seus sentidos, alçou os olhos naquele ambiente doentio com gente a desfalecer, meteu a cabeça ao trabalho.
“Levantar e andar naquela lama de água a dar no peito, no meio do mato cerado, não era trabalho para qualquer alguém, nha Maria!”
O homem viu que somente um animal forte e resistente o poderia fazer.
- Titio! Aposto que este animal é a hiena!
- Qual hiena! O leão tem mais força e poder!
Contrariava outro dos rapazinhos.
- Meninos! O nosso chão não tinha esse animal! Foi a conclusão que o homem chegou, depois de alçar a cara e olhar para todos os recantos desta terra.
- Então, como resolveu ele o problema, para ajudar os coitados naquela miséria?
- Nha Maria se lembra, falei que o homem tinha “cabeça grande.” Alguém que Deus dá “cabeça grande,” encontra sempre remédio para tudo!
Começou por separar os animais um por um. Ele conhecia o jeito, o valor e o relacionamento de cada bicho que lhe passava pela cabeça. O trabalho levou-lhe algum tempo - era coisa de muita seriedade: um assunto de vida ou de morte!
Saiu da terra e foi para outras bandas. Aí encontrou o animal de que precisava para salvar a gente no meio da mata cerada.
… O animal era… o cavalo!
- Oh, homem! Não está a contar esta história direito. As palavras não estão a filar direitinhos com os dentes! Qual a necessidade de homem ir para outros chãos buscar cavalos, para meter nas matas, se temos burros que os meninos conhecem bem! Burro é um animal mais pequenino que cavalo, mas rijo no trabalho.
- Nha Maria! Falei que o homem é encantador de animais, conhece-os muito bem. Tem mais… Desde pequenino que convive com os burros. Se os deixou de fora, lá tem a sua razão…
Mandou anunciar à gente do mato que vinha com cavalos para a tirar da miséria e do sofrimento. A notícia caiu como uma gota de água no mar. Toda a gente pensava como nha Maria acabou de falar – “O quê é que os cavalos viriam fazer no meio da mata coberta de lama e água. Ainda mais numa terra que não é deles”!
Passado algum tempo, o homem desembarcou com algumas caixas, afirmou estarem os cavalos dentro delas. As dúvidas se avolumaram: Questionava-se sobre o seu estado de cabeça: - “Este homem deve estar doido! Falou que trazia cavalos para salvar a gente, agora mostra-nos caixas fechadas como sendo estes animais”! Se falou que o homem é um doido completo, que não valia pena meter-se com ele, quando tirou das caixas alguns barretes e mostrou para gente como sendo cavalos. Gentes que enraivecem facilmente apanharam raiva, viraram as costas e pegaram os seus caminhos: “ jeito não tem, melhor morrer na canseira do que aturar um doido de cabeça!” Gentes pacienceiras fincaram olhos naquelas novidades – barretes que eram cavalos – como lobos a olhar para couves.
O homem falou que o barrete - que deu o nome de “súmbia” - era crinas de cavalos. Quem o enfiasse na cabeça, com a ponta virada para o pescoço atrás, ganharia a força de cavalos.
Gente não acreditou! Cada quem que recebia a sua súmbia, virava as costas desalentado, ia sentar-se debaixo da sua árvore.
O homem, com atitude de um néné adiante das mamas, arreganhava os dentes alvos como a lua cheia, entregava os barretes. Quando terminou, pegou num e enfiou na cabeça. Pouco motivados, todos acabaram por o imitar. Nem passaram de dois fôlegos, ninguém conseguia sentar-se. Todos ganharam umas forças e resistências que nem eles mesmos podiam controlar. Abraçaram o homem e chamaram-no de PAI. Todos aqueles que usam as crinas de cavalos, “ súmbia” ficam a ser conhecido como Cabalos de “Amilcar” – o nome do dito homem.
Os pântanos com as suas águas de dar no peito deixaram de constituir obstáculos. “Os cabalos de Amílcar” corriam por cima deles como vento. Por todas as terras da Guiné se ouviram falar dos “cabalos de Amílcar:”- “ animais pareciam ladinos, bem compostos e orientados. Amílcar ensinara-os a ter respeitos pelas súmbias, a serem camaradas e, na altura de repartir, não esconder uma mão atrás das costas; Dividir um pouco que têm por todos!
Nha Maria, meninos, eu vou esconder nos dinguinhos, algumas partes desta história…
Com muitas canseiras e magreza de contar os ossos das costelas, os “cabalos de Amílcar” chegaram a Bissau. Aqui encontraram sabor de mais; estábulos encantados, coisas de mungir ampagai! Se engordaram, mais parecendo os peixes-cavalo. Por todos os recantos desta pequena cidade se via “cabalos de Amílcar” a roncar as suas barrigas prenhes de fartura…”
Cedo, se esqueceram dos bons ensinamentos que o Amílcar lhes dera; passaram a levar coisas de mungir somente para eles; -“ Os outros, que não tinham as sumbias, que morressem na miséria!” Aqueles bichos coitados que não conseguiam apanhar “bocados,” arranjaram a maneira de chegar a eles.
Nha Maria sabe que Deus deu aos bichos coitados a esperteza demais para viver.
- Verdade é sabe de contar, se nhor Deus não tivesse feito isso, os coitados morriam com beiços secos debaixo das patas dos seus poderosos.
- É verdade nha Maria! Os bichos coitados olharam… Olharam… descobriram que podiam também equipar-se de súmbia e tornar-se “cabalos de Amílcar.” Da descoberta a acção foi um passo. Não tardou muito, a Guiné se encheu de todos os tipos de “ cabalos de Amílcar;” os gatos levantaram os seus mustães botando-os as costas: tornam-se “cabalos de Amílcar;” os cachorros fizeram o mesmo, ficam a ser “cabalos de Amílcar”. Os ratos e as ratazanas não lhes ficaram atrás; se tornam “cabalos de Amílcar.” Até os bodes se enjeitaram as suas barbichas de modo a parecerem as crinas, ficam “cabalos de Amílcar.” Todas as bicharadas se tornaram muitíssimos espertos em enjeitar a vida para viver.
Foi nessa devida altura – em que os bichos se apoderaram das súmbias, se tornam “cabalos de Amílcar,” para poderem apanhar bocados – que chegou a esta cidadela de Bissau, vindo da tabanca de Nhínte, um porco muito querido, admirado e honrado pela sua gente, por ser campeão dos mocadores de bacas!
- Credo homem, pega boca, estamos com os meninos!
- Desculpe, nha gente. Escapou-me!
O dito porco ganhou vários concursos realizados por sua gente, por ser lesto a “subir” às bacas.
- Santa Maria, Povo! Como esse porco é manhoso! Quem diria que um porco é capaz de umas coisas dessas! …
Ampós, nha Maria, tal e qual eu estou a contar.
O porco chegou a Bissau, viu os “cabalos de Amílcar” num grande ronco de comer com os focinhos levantados, como cabras a comer cajus, para não caírem restinhos que as pobres formigas podem aproveitar. Aproximou-se sorrateiramente, fez-se admirar por morar nas matas e divertir-se na lama. Disse, mentindo, que embora não usasse a súmbia era da família de “ cabalos de Amílcar.”
Andou algum tempo entre os “cabalos de Amílcar” até cimentar amizade com o cabalo dominante – conhecido como cabalo comandante.
No momento, o de comer começava a escassear-se, o cabalo comande necessitava de aprender a contar, para dividir os bens entre a família – adquiria o título de Comandante de Divisão. O porco, que somente sabia o número um, se prontificou ensinar-lhe a contar.
Os dois – o cavalo comandante e o porco de Nhínte – foram para um dos poucos locais onde ainda havia o de comer – uma mangueira. Como o cabalo Comandante de Divisão ainda não aprendera a contar, precisou de saber o número exacto das frutas que deveria levar para dividir para os seus, encarregou a tarefa ao porco de Nhínte.
Subiu a árvore. Baloiçou os ramos, caíram algumas mangas.
Quis saber quantas tinha derrubado.
O porco de Nhínte respondeu-lhe: -Um!
Voltou baloiçar os ramos, deitando abaixo mais mangas.
De novo a pergunta.
O porco voltaria a responder: -Um!
O cabalo Comandante achou que já tinha frutas suficientes, daria para dividir com a família.
Desceu da árvore. Qual não foi o seu espanto, ao ver uma única manga no solo!
Pensando tratar-se de uma partida de mau gosto, inquiriu com a cara medonha, piscando incessantemente os olhos, sobre o paradeiro das outras mangas que ouvira cair.
O porco de Nhínte respondia novamente: -Um! Esclarecia ao Cavalo Comandante; “as outras coisas que este ouvira cair, foram as lagartixas, cobras, e paus que tinham ficado suspensos na árvore”.
Muito irritado e desiludido com o mestre, o “cavalo Comandante” mandou-lhe sair a frente dos seus olhos que, de tanto piscar, já nada via.[u1] O Porco de Nhinté fingiu-se triste, saiu todo enroscado.
As altas horas da noite, voltou ao local, à desenterrar as mangas que escondera. Apanhou-as e as embrulhou num pano. Entrou eufórico num casarão onde se agrupava, a passar fome, os cabalos de Amílcar, companheiros do cabalo Comandante no tempo de lama com água a dar no peito. Aí, a frente de todos, desembrulhou o pano que continha as frutas. Os cabalos de Amílcar, famintos, caíram por cima do embrulho, num abrir e fechar dos olhos “limparam” todas as frutas nele contido.
O Porco, então, contou-lhes como as conseguira. Disse-lhes que o Comandante já não era um camarada, só olha para o seu umbigo e o da família. Disse-lhes que deveriam deixar de ser fiel as súmbias de Amílcar, unirem-se e lutar contra os cabalos papões.
Como viu que temiam abandonar as súmbias e muito mais lutar contra elas, porque lhes conheciam o poder, levantou a sua crina que ia de toutiço ao rabo.
– Nha Maria deve desconhecer; os porcos, sobretudo os selvagens, também têm as suas crinas. São muitos mais compridas do que as de cavalos. Quando um porco se quer engrandecer, fingir-se um leão, para espantar… levanta-a de cabeças ao rabo.
- Verdade homem! Já olhei o porco nesse comportamento. Incha-se todo, e conta; um … um…
- Nha Maria entende bem essa parte que contei, é assim mesmo!
Os “cabalos de Amílcar,” aqueles famintos, se admiraram ao verem a crina que o Porco de Nhínte exibia, já a conheciam mas não sabiam que podia ter valor. O porco Falou-lhes que a sua crina é mais rija, não tem medo de lamas com água de dar no peito; é aí, nesse meio, que costuma descansar e até dormir; - lhes dariam de comer se aceitassem trocar as crinas de cabalos de Amílcar pela sua.
Foi assim que o porco de Nhìnte conseguiu furtar alguns “cabalos de Amílcar” – os mais fortes e poderosos – para o seu pam, o que deu o nome de bacumba (pam é o que o cristão chama de família, classe.)
Nha Maria, meninos, como facilmente se pode ver, passou a existir dois grupos a reclamar a mesma comida, numa altura em que ela se tornava pouca:
Os “cabalos de Amílcar” faziam finca-pés no seu direito de terem vivido no mato, na lama com a água de dar no peito, para ficarem com o cabaz de comida só para eles! Os Bakumbas reclamavam serem eles os donos dos matos, das lamas com água de dar no peito, porque são locais das suas vivências, o cabaz com a comida lhes pertenciam por direito!
A porfia por quem de direito foi intensa e zaragateira; acabou por descambar em porradas, mas porradas de verdade, com catanadas de cortar cabeças e socos nos estômagos, nha Maria.
- Homem, tudo só por causa da comida!
- Nha Maria é brejeira. Tem coisa que é mais do que a comida! Quem tem juízo, quando se trata de encher a barriga?
Nha Maria pasma-se! Quando toda a gente já dava bibo aos “cabalos de Amílcar,” pensando ver os toutiços dos Bakumbas a rolarem facilmente no chão, não é que aquele porco de Nhinte, manhoso como ninguém, se puxou uma cambalhota da sua súmbia de bobo e deitou por terra os opulentos “cabalos de Amílcar”.
- Nha mame, este Porco é de meter medo!
- Nha Maria, mas medo que não é de brincadeira!
Depois de os terem deitado por terra, meteu-lhes as patas nos fuminhos, desposou-lhes de súmbias e chutou-lhes pontapés nos rabos…
Os cabalos de Amílcar, sem poder e força, andam a lamuriar como meninicinhos pelo mundo fora, pedindo para falar à Bakumbas terem piedade! …
- Homem! Pondo as coisas da maneira como falou, fica sem jeito saber quem é culpado nisto tudo!
- Nha Maria é alguém grande. Num cabaz de comer, quando não tem comida que chega, todos se ralham, ninguém tem a razão!
Agora, se nha Maria empulmar a minha opinião!... Os sentidos pesam-me muito. Só lhe posso garantir que o porco é um animal ladino, muito mais chegado a sua família de perto do que qualquer outro animal. Quando o porco empina o focinho na comida, se esqueça do mundo, nem pancada de morte o faz levantar a cabeça, nha Maria!


Leonardo dos santos
 

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