Opressores de nós mesmos
 

 

Por: Samuel Reis*

30.05.2008

 “Olha ali aquela... ouvi dizer que só tira dezasseis ou mais a todas as disciplinas!” – diz-me uma colega, sempre informativa, ao ver uma rapariga atravessar a porta da cafetaria apressadamente – “E já viste como é que ela se veste? Bué estranha com saias, collants e quês... e aqueles sapatos...” – continuou, suave na sua aproximação ao assunto... Aqui esperou pela minha resposta, um simples “eu gosto” que não tardou muito. Esta afirmação só aumentou o sorriso malandro para uma gargalhada que parece ter desmotivado os métodos de aproximação ao alvo até ali utilizados, ou seja, motivado a minha colega a ser um pouco mais directa! “Ela tem a mania que é branca...” – então franziu o sobrolho e deu um jeitinho ao nariz, pequena inclinação do lado esquerdo, para completar uma expressão facial que gritava desdém.
Esta conversa especificamente (se é que podemos chamar “conversa” ao que se passou) aconteceu há cerca de um ano, mas muitas outras do género relembram-me frequentemente o problema. O engraçado, nesta estória sem graça nenhuma, é que a rapariga das boas notas (notas que pelos vistos se mantiveram) é uma conhecida minha, atrevo-me a dizer que talvez seja amiga minha, não sei o que ela me considera, porque raramente nos vemos. Disso a minha colega não fazia ideia, e também dela me tornei bom amigo mais tarde, de qualquer das formas... Mas estes pormenores pouco importam, foram só um pequeno desvio do assunto central para vos fazer pensar como falar nas costas de alguém pode acabar num texto publicado na Internet, e claro, como os alvos das nossas facadas verbais podem estar muito mais próximos do nosso círculo social do que suspeitamos à primeira avaliação.
Voltando ao tema, temos aqui um excelente exemplo de como nós, afro-descendentes, nos reprimimos mutuamente. Portanto, ter boas notas e não se “vestir como um preto” (ou preta, neste caso) está de alguma forma relacionado com o estranho desejo de “ser branco”... É arrepiante constatar que as regras do sistema estão enraizadas nas nossas mentes a esta profundidade, de tal forma que somos nós próprios a atacar-nos, nós próprios a excluir-nos e a maldizer o nosso irmão por ele se ter conseguido libertar dos estereótipos.
E esta minha atenta colega detectou e condenou com rapidez os jeitos da boa aluna, só nunca considerou como potenciais aspirantes a “brancas” as amigas suas. Essas, que só têm olhos para brancos, menosprezando portanto os seus patrícios, andam por aí sempre com o cabelo desfrisado com vergonha da carapinha (que consideram uma maldição terrível), não querem ter nada ver com África ou com a cultura dos pais, fazem troça de todas as peles mais escuras que as suas e sempre que podem tecem gracinhas sobre o quão matumbus são os negros... Estranho! Muito estranho...
E o que tem “de preto” a música de hip-pop que passa na MTV (não, não me enganei, é hip-POP, não hip-hop, o que lá passa), glorificando uma vida de bandido, o machismo e o materialismo? Nada! O que têm “de preto” determinadas marcas, estilos e roupas, que são todas produzidas com mão-de-obra barata, para não dizer escravatura (ooops, já disse)? Nada! Talvez até fosse mais “de preto” não usar essas marcas... Por razões óbvias, ou não acham?! E o que tem “de preto” morar num bairro social pobre? Infelizmente, mais do que se desejaria, mas não se é mais negro por morar num bairro social pobre, quanto muito é-se mais conhecedor da condição em que muitos dos nossos irmãos se encontram aqui “na Tuga”. E o que tem “de preto” escrever e falar um português incorrecto? Absolutamente nada! E não me refiro a sotaques ou variantes da língua... É mesmo ao português incorrecto que me refiro. Ah, e o que tem “de preto” o insucesso escolar ou as notas baixas? Digam-me vocês!
Irmãos e irmãs... Onde é que está a nossa identidade? Nos estereótipos com que nos ferraram? Ouvimo-los e vemo-los à nossa volta, tão próximos, tão omnipresentes que até já acreditamos neles, muitos de nós até já gostam deles, a maioria de nós defende-los com unhas e dentes... Estereótipos. São um caso sério.
Eu já devo é ter falado disto milhentas vezes, e certamente que já escrevi sobre o assunto outras tantas, mas é urgente que as pessoas comecem a despertar. Chegámos ao ponto em que não precisamos de opressor algum. Oprimimo-nos uns aos outros, aqui e em África, com inofensivos estudantes de liceu ou com poderosos Ninos Vieira, Mugabes e os dessa laia. Lamentável.
Sabem o que é “de preto”?...
A pele castanha. Mais nada. Grave é que a sociedade nos cria de maneiras diferentes. Não fico admirado que haja quem tem vergonha do sangue africano a correr nas suas veias, com tudo que se passa por muito mais de metade do continente mãe... Fico é triste! E com umas poucas aulinhas de história fica-se bem (des)informado sobre a “inferioridade” do resto do mundo em relação à poderosa Europa.
Vou sempre lembrar-me da pergunta que um primo meu me fez no parque infantil. Um rapaz de doze ou treze anos, se não estou enganado. “Samuel, se somos mesmo iguais, então como é que os brancos conseguiram escravizar-nos a todos e nós fomos tão fracos que nem lutámos?”
Não lhe expliquei que na verdade os nossos avós lutaram, só expliquei que os brancos tinham pólvora e eles não. O menino, depois de um pouco de silêncio, começou a desvendar-me a sua árvore genealógica, que, sendo de cabo-verdiano, obviamente tem muita mestiçagem pelo meio. Tudo para tentar provar-me que não é negro...

 

* 16 anos de idade, estudante na área de Línguas e Humanidades do 10º ano com aspiração de vir a ser jornalista


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