O LEGADO FATÍDICO DO 7 DE JUNHO

 

 

  

Bubacar Turé *

bubacarturefarim@yahoo.com.br

 

13.06.2008

 

 

Perante mais um aniversário de um dos mais brutais conflitos armados que esta pátria conheceu, cabe-nos reflectir e analisar as suas consequências, que continuam a minar os sonhos do desenvolvimento deste tão martirizado povo.

É notório que o conflito político-militar de 7 de Junho de 1998, abriu novas páginas negras para a Guiné-Bissau em todos os aspectos: político, social, económico e militar.

 

Para além da natural destruição das infra-estruturas sociais do país, este conflito fratricida ceifou milhares de vidas humanas, fazendo nascer uma nova elite política cuja preocupação e acção se centram mais no enriquecimento ilícito, corrida desenfreada ao poder, e avesso à modernização e à ciência.

 

Em termos sociais, assistimos ao acentuar da extrema pobreza que continua de forma vertiginosa a fustigar a maioria da população que já não se sente representada por ninguém, na medida em que, aqueles que por contrato social os cidadãos delegaram plenos poderes para proverem o seu bem-estar social, tornaram-se rebeldes decretando a lei de cada um por si. Equivale dizer que o Estado renunciou à sua principal missão de promotor do progresso e da felicidade aos cidadãos, tornando-se num Estado que violenta e assassina paulatinamente o seu próprio povo.

 

No campo político reina a desordem e a anarquia ou mesmo delinquência política, pois a maioria dos protagonistas enveredaram por esta via não por convicção de querer mudar o status quo do país mas sim, servir como trampolim para a resolução dos problemas mesquinhos e pessoais. A extrema pobreza da classe política fez desaparecer a ética e a observância dos padrões mínimos aceitáveis para uma sociedade que pretende ser de direito democrático, consequentemente, todos querem chegar ao poder a todo o custo e aqueles que lá estão querem manter-se por lá, mesmo que isso leve à violação dos mais sagrados princípios e normas da República.

 

A recente aprovação de uma lei excepcional constitucional transitória pela ANP para prorrogar a legislatura, e sua consequente promulgação pelo Presidente da República em nome de uma paz e estabilidade, inexistentes, constitui um exemplo paradigmático desta infeliz aventura solitária que de certeza, ficará negativamente registada nos anais da história política contemporânea desta pátria de Amílcar Cabral em buscado seu destino.

 

A par desta incerteza sobre o futuro risonho para os cidadãos, a corrupção e a vida fácil crescem a nível galopante em todos os quadrantes da administração pública, sob o olhar impotente das instituições que têm por missão combatê-las. Aliás, é fácil perceber hoje, que a corrupção para além de ser institucionalizada está a corroer a confiança nas instituições por parte da sociedade. A ostentação de riqueza por parte de pessoas que nunca deram provas de gestão empresarial e muito menos de uma carreira num organismo internacional é o sinal mais evidente desta nossa afirmação. Contudo, rema a favor dos supostos corruptos e corruptores os princípios do Ónus da prova e da presunção de inocência, cabendo no entanto, aos detentores do poder, mostrar vontade política e determinação para criar condições necessárias com vista a travar uma guerra sem tréguas contra este fenómeno que ameaça a integridade das nossas instituições públicas.

 

A situação torna-se mais preocupante quando a máquina fiscal guineense se revelou incapaz de arrecadar receitas suficientes para a cobertura dos encargos públicos, nomeadamente: o pagamento dos salários aos funcionários públicos, acto que nos últimos tempos só acontece com a solidariedade do espaço comunitário da UEMOA ou através dos fundos provenientes da compensação financeira da União Europeia. A desorçamentação ou indisciplina orçamental nas finanças públicas, bem como a impunidade com que se brinda os delapidadores da nossa economia, são porventura, causas responsáveis da situação financeira caótica com que o país se depara.

 

A par destas considerações, o conflito político-militar de 7 de Junho deixou um verdadeiro legado fatídico que constitui uma forte preocupação para todos aqueles que defendem os ideais da democracia e das regras nela subjacentes. Refiro-me às Forças Armadas que, a partir deste conflito e até à data presente passaram a definir o rumo político da Guiné-Bissau em todos os domínios. A hiper-representação das Forças Armadas em todas as esferas de decisão do país não só representa um perigo enorme para a própria manutenção do país enquanto Estado soberano, como também ameaça desmoronar as bases sobre as quais assentam a nossa jovem democracia.

 

Ao contrário da missão a ela reservada pela constituição e outras leis ordinárias, assistimos a uma forte intervenção dos senhores das armas nos assuntos de índole político-partidário, influenciando as decisões de certos órgãos de soberania. Aliás, é fácil perceber que, quem detém o poder real e efectivo no nosso país são as Forças Armadas, com todas as consequências que daí advêm. Ou seja, há uma militarização de Estado provocado pelo aludido conflito que, paradoxalmente, tinha como móbil repor a justiça e a ordem, democráticas.

 

Hoje, temos umas Forças Armadas que não se subordinam ao poder político, sendo este último quem vai buscar apoios às Forças Armadas para se afirmar politicamente ou impor as suas ideias e convicções políticas, sendo que, nalguns casos, servindo como instrumento para a sobrevivência de certos dirigentes políticos.

 

É notória a crise de comando na hierarquia castrense, o que também contribui para agudizar ainda mais esta proeminência da classe castrense que a meu ver, deve ser enfrentada por todos, em homenagem aos valores da democracia e do Estado de direito democrático que a Guiné-Bissau proclama erguer.

 

A tão propalada reforma no sector da defesa e segurança é a única oportunidade que resta aos guineenses para se livrarem deste legado que já ultrapassou todos os limites, estando quase a afectar a legítima. O recurso constante à violência e à simbologia da arma só podem ser afastadas com a profissionalização e democratização das Forças Armadas, objectivos esses, que a pretendida reforma tem que alcançar impreterivelmente a curto e longo prazo, sob pena de, o nosso futuro comum ficar definitivamente adiado.

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O processo eleitoral que se avizinha, será um derradeiro teste para avaliar até que ponto a classe castrense está disposta a levar avante a sua pretensão de arbitrar tudo quanto mexe com o país e o seu destino. Quero apenas reavivar a memória colectiva dos guineenses sobre uma recente declaração pública do CEMGFA em que arroga para si e para os seus sequazes, a competência de arbitrar o próximo contencioso eleitoral, ao dizer “ todos aqueles que rejeitarem os resultados eleitorais vamos prendê-los e leva-los ao quartel; não vamos tolerar mais este tipo de coisas”. Estas declarações suscitaram na altura, algumas reacções, incluindo das organizações da sociedade civil condenando-as, por constituírem uma ameaça à democracia.

 

Na minha modesta opinião este posicionamento devia merecer reacções mais contundentes de todos os sectores da vida nacional, porque, para além de não ser uma declaração inocente, enquadra-se na estratégia global de tornar refém dos militares todos os órgãos de soberania, incluindo o sistema judiciário. É do conhecimento público que o contencioso eleitoral é dirimido na sede dos tribunais, concretamente, o Supremo Tribunal de Justiça na sua veste de Tribunal Constitucional, por isso, qualquer pretensão contrária, não só é ilegal, como também, será uma usurpação de competências tipificadas como crime no ordenamento jurídico guineense.

 

Chegou a hora de todos nós, sem excepção, nos levantarmos para defender a democracia e o Estado de direito enquanto escolhas voluntárias do povo guineense, unindo-nos em torno dos grandes desígnios nacionais, nomeadamente: o progresso económico e social, a paz, a tolerância, o amor ao próximo etc., deixando de lado os sentimentos de ódio e de vingança.

 

A cultura de passividade e de resignação só contribui para o descarrilamento do processo de aprendizagem democrática em curso no país. Aliás, as democracias florescem quando são cultivadas pelos cidadãos dispostos a utilizar as suas liberdades em defesa dos valores e ideais que todos comummente aceitaram.

 

 Não posso concluir esta minha reflexão de exercício de cidadania sem trazer à colação a lição do ilustre e prestigiado professor Emílio K. Kosta que a dada altura afirma”as guerras que explodiram a partir do 7 de Junho e ameaçam ensombrar o primeiro decénio do segundo milénio guineense arrastaram o país para um hobbesiano estado de natureza, em que a força bruta é elevada à dignidade de referência determinante de todo o direito. Urge pois, um pacto que desarme as almas e normalize a vida dos homens e mulheres que fazem este projecto de nação…” (in dissertação de doutoramento). Oxalá que seja para breve esse tal pacto. Voltaremos.

 

                                                                                          

* Jurista, Activista dos direitos humanos e IIº Vice-Presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos.

 

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