O ACTO CÍVICO DO SR. CARLOS GOMES (JÚNIOR)

 

 

 

Norberto Tavares de Carvalho, « O Cote »

 

 

15.01.2007

 

 

O Sr. Carlos Gomes, Presidente do Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo-Verde (PAIGC), ex-Primeiro Ministro eleito por sufrágio universal e destituído por decreto presidencial, encontra-se de novo à pega com a mão de ferro do Sr. João Bernardo Vieira, vencedor oficial das últimas eleições presidencias na Guiné-Bissau. Carlos Gomes acusa o Presidente da República de ser o mandatário do assassinato do Comodoro Mohamed Lamine Sanhá, ocorrido em Bissau no início do ano em curso.

 

Logo depois de ter proferido a sua declaração, o político guineense teve que se refugiar na sede duma organização internacional em Bissau, pois já estava a ser procurado, por ordem do Ministro do Interior, para ser preso, embora sendo deputado da nação guineense e como tal protegido pela imunidade parlamentar.

 

O que significa que na Guiné-Bissau ainda é muito mais fácil libertar a razão da força do que a força da razão, a força da palavra.

 

Porque é bem da liberdade da palavra de que se trata aqui.

 

A propósito desta liberdade de expressão e de opinião, uma pequena pesquisa na net, permite-me estabelecer o que se segue. [1] Com efeito, desde os tempos que já lá vão, os homens e as mulheres viram-se censurados, presos, torturados e mesmo mortos pelo facto de terem ousado exprimir livremente as suas opiniões. As constituioções dos estados davam poucas garantias sobre a liberdade de expressão e estas lacunas sempre foram sistematica e severamente criticadas.

 

Para dar uma melhor relevância ao sujeito, partilhemos o exemplo dado por um professor universitário, sobre a luta pela liberdade de expressâo  [2] :

 

Diz que em 1734, um tal John Peter Zenger, proprietário do New York Weekly Journal, publicara uma série de artigos acusando o Governador do Estado da Nova Yorque. Os seus propósitos foram consignados em difamação criminosa.  Mas, no processo que se seguiu, o seu advogado mostrou que as acusações e críticas feitas ao Governador eram justificadas argumentando que ninguém devia ser punido por ter acusado uma personalidade oficial. O júri acabou por declarar a inocência de Zenger. Esta sentença, segundo o mesmo professor, constituiu o precedente das primeiras revelações americanas de que a liberdade de expressão é, e deve ser, um princípio de direito.

 

Com o andar do tempo, começaram a aparecer nos testos fundamentais dos estados, emendas constitucionais proibindo aos governos a ingerência nos direitos fundamentais dos cidadãos, inclusivê o da  liberdade de expressão. Mas esses avanços não puseram termo aos litígios à volta do sujeito, e ainda até à data presente os tribunais surpremos são chamados a intervir para resolver um certo número de controvérsias. Daí a necessidade de participar activamente na luta pelo direito à liberdade da palavra.

 

Pois é de uma maneira geral considerada como uma liberdade fundamental do homem. É assim citada no art. 19 da declaração universal dos direitos do homem :

 

“Todo o indivíduo tem o direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser incomodado pelas suas opiniões e o de procurar, de receber, de divulgar, sem considerações de fronteiras, as informações e as ideias por todos os meios de expressão possíveis.”

 

Estes preceitos encontram-se formulados na maior parte das constituições dos estados europeus. Certas jurisprudências estendem mesmo este direito dando-lhe um teor mais abrangente :

« A liberdade de expressão concerne não só as « informações » ou « ideias » interpretadas positivamente ou consideradas como inofensivas ou indeferentes, mas também aquelas que chocam ou que incomodam [3]: assim o exigem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não pode haver sociedades democráticas."  [4]

 

Entretanto, embora a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 não especifique as condições particulares da restrição da liberdade de expressão, um certo número de jurisdições, sob a égide das Nações Unidas e dos países aderentes, limitam todavia esta liberdade aos propósitos incitando ao ódio racial, nacional, religioso e relevando do apelo à morte que são delitos interditos pela lei.

 

Quer isto dizer que o exercício das liberdades comporta deveres e implica responsabilidades.  Daí que certas restrições devem ser expressamente fixadas pela lei pois são necessárias ao respeito dos direitos e da reputação de outrem.

 

O art. 20 do Pacto Internacional estipula por exemplo as restrições seguintes :

 

- propaganda em favour da guerra (guerra de agressão) ;

- incitação ao ódio nacional, racial ou religioso que conduz ao apelo à discriminação, à hostilidade e à violência ;

- difusão de ideias fundadas na superioridade racial ou actividades de propaganda organizada que incitem à discriminação racial e a encorajam.

 

Ora, a declaração do Sr. Carlos Gomes, não tem nada a ver com estas restrições.

 

Vejamos então o que diz sobre o sujeito a Constituição da República da Guiné-Bissau. [5] Extractos :

 

Art. 29°

1 - Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das demais leis da República e das regras aplicáveis de direito internacional.

2 -  Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

 

Art. 51°

1 – Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento por qualquer meio ao seu dispôr, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado sem impedimento nem discriminações.

2 – O exercício desse direito não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.

 

A meu ver, e quero falar sob o controlo de quem de direito, a delicadeza da questão da liberdade de expressão, para ser mais eficaz, exige uma formulação mais clara dos termos da lei. Embora seja evidente que o mandato de captura ou posterior pedido de levantamento da imunidade parlamentar do Sr. Carlos Gomes, tem a ver mais com o abuso do poder do que com a interpretação da lei fundamental da República.

 

Nunca é demais repetir que é inadmissível que se cometam tantos crimes e que não haja criminosos. Se até hoje, a justiça não conseguiu apresentar os responsáveis desses crimes é que esses responsáveis estão sob protecção da alta esfera do poder. Sendo assim, não é nenhum delito dizer alto o que todos pensam baixo. E creio que foi exactamente a este exercício que se dedicou o Sr. Carlos Gomes.

 

Quem esteve um só momento a cogitar à volta da arquitectura de todos esses crimes (Generais Anssumane Mané e Veríssimo Seabra, Comodoro Mohamed Lamine Sanhá), e não viu no fundo a mão criminosa do Sr. João Bernardo Vieira, é porque opta pela política da avestruz, que todos conhecem.

 

Pondo de parte a análise da estratégia utilizada pelo ex-Primeiro Ministro guineense, a saber se é ou não a maneira mais eficaz de cercar o sujeito… o meu primeiro argumento é que as declarações do Sr. Carlos Gomes, revelam um comportamento democrático apoiado pela Constituição da República que defende a liberdade de expressão e transfere certos aspectos dessa liberdade às leis internacionais (ver mais acima) que, estas, são mais específicas e mais eficientes na matéria. O acto do Sr. Carlos Gomes é um acto de palavra e não de acção. Falou mas não agiu. E salvo certas restrições bem definidas, em direito, ninguém deve ser perseguido pelo que diz.

 

Nas verdadeiras democracias, qualquer personalidade que se sinta lesado por uma crítica, acusação ou denúncia, tem a possibilidade de recorrer ao direito à resposta e defender-se. A não ser que tenha algo a esconder... Aliás o art. 51° - 3 da Constituição da República da Guiné-Bissau estipula claramente :

 

« A todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito da indemnização pelos danos sofridos. »

 

Esta cobertura não é suficiente ao Sr. João Bernardo Vieira que aquando do seu derrube em 1999 esteve em Portugal a propagar que tinha a intenção de prosseguir os seus estudos (não de electricista claro) mas que não sabia que disciplina escolher (?) Aqui está a solução ao seu problema de estudos: o direito, Sr. Presidente! O direito !

 

Se as declarações do Sr. Carlos Gomes se tratassem de uma delação, eu não estaria aqui a defendê-lo pois considero a delação um acto inaceitável. Mas à luz do que se tem estado a verificar antes e depois do regresso ao poder do « Nino », é quase impossível imaginar que ele não está por detrás dos crimes recentemente cometidos em Bissau. Os indícios sâo eloquentes ! « Pela aragem se vê quem vai na carruagem. » [6]

 

E se o Sr. Carlos Gomes resolveu denunciar, saiba-se que a denúnica é um acto cívico de alerta contra os abusos daqueles que julgam estar  acima da lei…

 

A liberdade de opinião e de expressão é a pedra fundamental de um regime democrático. Ela é de tal forma importante que é sempre a primeira das liberdades que os regimes totalitários escolhem para eliminar e se apoderar do controlo dos médias e dos cidadãos. Quando a constituição não define claramente todos os seus contornos, a liberdade de opinião e de expressão vê-se rapidamente ameaçada.

 

Na Tunísia por exemplo, em Fevereiro de 2005, o tribunal, baseando-se numa imprecisão da lei, condenou a três anos e meio de prisão o Advogado Mohamed Abbou por ter criticado o convite que o Presidente tunisino fez ao Primeiro Ministro Israélita, Ariel Sharon, de ir visitar a Tunísia. Foi necessário uma grande mobilização à volta do advogado para que a sua integridade fosse preservada.

 

No caso do Sr. Carlos Gomes o que irá acontecer nos dias e semanas que se vão seguir ? Se a Assembleia Nacional Popular (ANP), instada a levantar a sua imunidade parlamentar, aquiesce ao pedio, qual será o destino do « Cadogo » ? E se a ANP votar o mantimento da imunidade, quais serão as reacções do poder ?

 

 

Não existem muitos cenários, mas qualquer que se possa imaginar, infelizmente, a morte espreita de novo. Quem será a próxima vítima do medonho e nojento (desculpem a livre expressão) regresso ao poder do Sr. João Bernardo Vieira?

 

A pólvora está lançada, resta saber donde virá o rastilho.

 

Mas em guisa de direito a dispôr da sua liberdade de expressão, os guineenses podem contentar-se em exclamar « Luz bai ! » [7], sem terem que se explicar, e deixar para mais tarde as suas aspirações democráticas. Isto porque daí a aplicar o que reza o art. 72° - 1,  da Constituição da República da Guiné-Bissau, … a saber :

 

« Pelos crimes cometidos no exercício das suas funções o Presidente da República responde perante o Supremo Tribunal de Justiça. »

 

… talvez vão ter que dar tempo ao tempo, até às próximas eleições presidenciais, para poderem corrigir o tiro que eles próprios dispararam e que está aí a ceifar vidas de maneira quase oficial… 

 

Na falta de melhor, a paciência é a maior das virtudes. 

 


[1] Vários sites sobre « Liberté d’expression et d’opinion », em google.com

[2] Robert Barker, Professor de Direito na Universidade de Duquesne da Pensylvánia, EUA.

[3] O sublinhado é do autor do presente artigo.

[4] Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, 21 de Janeiro de 1999, n° 29183/95, Fressoz e Roire c. França.

[5] Título II – Dos Direitos, Liberdqades, Garantias e Deveres Fundamentais

[6] Velho ditado português.

[7] Em português : « A luz foi-se ! », do crioulo guineense.

 

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