Nem toda a gente é do Partido 

 

Amilcar Cabral (Abel Djassy)

Amilcar Cabral


TRABALHO DE DIRECÇÃO 


Vamos ver outro princípio do nosso Partido que é o seguinte: A nossa luta é baseada fundamentalmente no trabalho do nosso Partido, o PAIGC 
Os camaradas sabem o que é a luta. Compreenderam já que a luta é condição normal de todas as realidades em movimento. Em tudo aquilo que se move, que existe, se quiserem, porque tudo o que existe está em  movimento, há sempre uma luta. Há forças contrárias que agem umas contra outras. A cada força agindo num sentido corresponde uma outra força agindo em sentido contrário. 
Tomemos por exemplo uma árvore. Para uma árvore crescer, viver, dar fruto, semente, ou outra árvore, é uma grande luta. Primeiro, para a sua raiz atravessar o solo e encontrar alimento no terreno, é uma luta grande entre a raiz e a resistência do terreno. Mas é preciso uma certa capacidade, uma certa força para extrair do solo molhado o alimento que entra na raiz da planta. 
Depois de extrair o alimento, é preciso levá-lo para outras partes da planta. Sempre resistência contra resistência. Mas, além disso, há a resistência contra a chuva, contra as tempestades. E com uma desvantagem  grande para a planta: é que a planta não pode sair do lugar onde está. 
Tanto as plantas como os animais (e até mesmo um pedaço de pau, ou de ferro) têm em si uma luta, podem até mesmo ter milhares de lutas. Mas a luta fundamental, por exemplo, é entre a capacidade de conservação e os estragos que o tempo causa nas coisas. O ferro enferruja-se, o pau apodrece, a marca do tempo fica sobre as coisas, desde o homem até à coisa mais insignificante. Tudo isto traduz uma luta. Mas a luta é mais clara, evidente, quando uma coisa faz força sobre outra coisa, quando ela se trava entre duas coisas distintas. 
A nossa luta é o resultado da pressão (ou opressão), que os colonialistas portugueses exercem sobre a nossa sociedade. Quem adquire uma certa consciência ou que foi testemunha de algum facto, ou que tem algum interesse em relação ao colonialismo português, pode adoptar a seguinte posição: fazer a sua própria luta ou não fazer luta nenhuma. Na nossa terra havia muita gente que lutava, tanto na Guiné como em Cabo Verde, e às vezes até mesmo fazendo versos ou outra coisa qualquer, como sinal de luta. Fechar as janelas, as portas, o quarto e descompor os tugas : ele não ouve, mas é uma maneira de lutar. Em Canhabaque, uma mulher bijagó vem com a sua água para vender. O chefe de posto tuga diz-lhe: «um peso, não, cinco tostões» e dá-lhe os cinco tostões, mas ela derramou a água no chão — é uma maneira de lutar. Muitas vezes, a subserviência (acto de aceitar humilhações) é também uma forma de lutar. Mas outras formas de luta são as revoltas. Uma coisa, por exemplo, de que tive uma consciência e de que nunca me esqueço, passou-se em Angola, nas roças. Eu pensava que os contratados eram uns pobres diabos, que nunca se revoltavam; mas eles revoltam-se, um a um, raras vezes se sente que se revoltam, mas cada um procura fazer a sua revolta. Uns fazem-se passar por doidos, saem com catanas e cortam todas as palmeiras novas plantadas pelos colonialistas. É uma maneira de lutar. Mas quando um, dois, três, quatro, se juntam, comungam nos seus interesses, podem fazer uma revolta. Quantas revoltas caladas na Guiné, que talvez ninguém tenha visto, quantas revoltas em Cabo Verde, em   S. Vicente, S. Antão, Santiago: luta contra o colonialismo português. 
Mas uma luta para poder avançar a sério, tem que ser organizada e só pode ser organizada a sério por uma direcção de vanguarda. Fazer luta para libertar um povo, partindo do nada, como nós, pode-se comparar isso, por exemplo, com a luta que o homem travou com a distância. Um dos grandes problemas do homem, nos tempos antigos, era o seguinte: o homem era dominado pela distância, pelos rios, pelos mares. Queria deslocar-se, mas era difícil, não tinha meios para isso. 
Um dia, talvez, um homem, sentado à beira dum rio, viu um tronco de árvore passar e, pela primeira vez, veio-lhe à ideia que talvez o homem pudesse ir em cima do tronco, no rio. Se isso aconteceu, foi o momento em que apareceu o primeiro barco, como conta a lenda. Mas o homem, para vencer a distância, para atravessar os rios, os mares e até depois para atravessar o ar, para vencer, para ganhar à distância, teve que criar meios. Meios pequenos no começo, fracos, a pouco e pouco foram-se desenvolvendo, utilizando todos os meios possíveis, correntes de água, ventos, correntes do mar, até começar a utilizar a energia que ele próprio descobriu, a energia a vapor, a energia eléctrica e hoje a energia atómica. Vejam como a luta do homem contra a distância foi uma coisa extraordinária. A tal ponto que hoje, o homem que levava anos para dar a volta ao mundo já numa época de muito progresso, pode dar a volta ao mundo num satélite em 80 minutos e até em menos, se quiser. No livro de Júlio Verne foi em 80 dias, e ele era um visionário para o futuro, que fazia previsão para o futuro.


PARTIDO 


Para lutar contra o colonialismo também é preciso meios. É preciso, em primeiro lugar, criar um instrumento para a luta. Esse instrumento é o nosso Partido. Os camaradas podem dizer que o Partido é um instrumento-base, o instrumento-mãe. Se quisermos, o meio principal que cria outros meios, ligados a ele. A raiz e o tronco, que dá outros ramos para o desenvolvimento da nossa luta. 
A primeira pergunta que podemos pôr é a seguinte: mas porque é que nós criámos um Partido, e outros criaram movimentos? 
Criaram-se movimentos, frentes, etc.. Se vocês repararem bem, nós somos os únicos que criámos um Partido, uma organização com o nome de Partido. Houve talvez outros, mas nós somos um Partido, apesar de antes nunca ter havido um Partido na nossa terra. Não é por acaso, não é porque nós gostamos do nome Partido. É com um sentido claro, para hoje e para amanhã. É que, para nós, na nossa concepção, Partido é uma organização muito mais definida, muito mais clara. 
Partido é todo aquele que toma parte numa dada ideia, numa dada coisa, num dado caminho. 
Movimento é uma coisa muito vaga. O nosso Partido, talvez seja hoje, ainda, na realidade, um movimento, mas o nosso trabalho tem que ser transformá-lo em Partido cada dia mais. E desde o começo nós demo-lhe o nome de Partido para que todos entendam que temos ideias bem claras sobre o caminho que estamos a seguir, sobre aquilo que queremos, ao serviço da nossa terra e do nosso povo, na Guiné e Cabo Verde, ao serviço da África e da humanidade, na medida que possamos dar alguma contribuição. 
Partido, porque nós entendemos que para dirigir um povo para a libertação e para o progresso é  fundamentalmente preciso uma vanguarda, gente que mostra de facto que é a melhor e que é capaz de provar isso na prática. Durante a luta de libertação muita gente tenta enganar, mas pouco a pouco é preciso definir a sua posição claramente como pertencendo àquela vanguarda, ao conjunto daqueles que são os melhores filhos do nosso povo, na Guiné e Cabo Verde. 
Sabemos que o nosso Partido foi criado na clandestinidade, não vos vou contar toda a história; está escrita em muitos livros, vocês podem ler; se os camaradas da Comissão Ideológica trabalharem bem. Mas foi criado na clandestinidade (escondido). No começo era de verdade um Partido, muito pouca gente um Partido pequenino, mas gente com uma só cabeça e fiando profundamente naquela linha que nós traçámos, como alguém que teve na vida a oportunidade de traçar esse caminho. A pouco e pouco cresceu, cresceu, até que se transformou num movimento geral de libertação nacional. Mas movimento não como nome, mas como facto concreto da luta, como conjunto de gente em movimento contra o colonialismo português. 

OBJECTIVO 


Mas nós, repito, somos um Partido. O nosso caso esclarece-se da seguinte maneira: Nós, que lutamos na Guiné e Cabo Verde contra o colonialismo português, somos todos um movimento de libertação nacional, toda a gente é « Partido ». Mas só entra de facto no Partido aquele que de verdade tem uma só ideia, um pensamento, que só quer uma coisa, e tem que ter um dado tipo de comportamento na sua vida privada e na sua vida social. Que ideia, que coisa, que comportamento? 
O nosso Partido é formado só por aquela gente que quer de facto o programa do nosso Partido. 
Nós somos PAIGC, Guiné e Cabo Verde. Não há racismo, não há tribalismo, nós não lutamos só para termos bandeira, hino e ministros —talvez mesmo não tenhamos ministros na nossa terra. 
Não nos vamos sentar no palácio do Governador, não é esse o nosso objectivo, tomar o palácio para pôr Cabral e outros. Nós lutamos para libertar o nosso povo, não só do colonialismo, mas de toda a espécie de exploração. 
Não queremos que ninguém mais explore o nosso povo, nem brancos nem pretos, porque a exploração não são só os brancos que a fazem, há pretos que querem explorar ainda mais do que os brancos. Nós queremos que o nosso povo se levante, avance; e se queremos que o nosso povo se levante, não são só os homens, porque as mulheres também são o nosso povo. Aqueles que entenderam que a mulher tem direito de avançar, de ter instrução, de ir à escola como qualquer ser humano, para fazer qualquer trabalho, como ela é capaz de fazer; aqueles que entenderam bem que um homem enquanto tiver três, quatro mulheres, nunca será um homem de verdade e que não há nenhum povo que possa avançar com homens com quatro mulheres; aqueles que 
entenderam bem que se o seu filho for fêmea não a pode vender, assim como não pode vender a mãe, que não é nenhuma escrava; quem entendeu que as crianças são os únicos seres a quem temos que dar privilégios na nossa terra, que são a flor da nossa vida, por causa delas nós fazemos todos os sacrifícios para elas viverem felizes; aqueles que fizerem bem os trabalhos designados pelo Partido, ao serviço do nosso povo, é que são membros do nosso Partido e têm que mandar na nossa terra. 
Eu não mando porque sou engenheiro ou doutor, mas porque estou a trabalhar a sério, e ninguém que tem cursos é mais do que aqueles que não têm curso. E nenhuma posição é mais do que outra. Só é mais aquele que trabalha mais, que produz mais. Quem entendeu o programa do nosso Partido como deve ser, seja ele da Guiné ou de Cabo Verde, esse é que pode entrar no nosso Partido. Mas que esteja pronto a cada momento para dar a sua vida pela causa por que nós lutamos. 
Mas enquanto uns entram no Partido, talvez outros saiam, não o sentem, mas saem. Porquê? 
Porque ele não faz algumas de todas essas coisas, ou porque mostra que não as entende ou não quer entender. Por exemplo, há alguns ainda no nosso Partido que não concordam muito com essa unidade da Guiné e Cabo Verde, mas que estão a ver; uns de Cabo Verde, outros da Guiné, que não concordam muito, que ainda estão na dúvida, a ver no que dá. Esses estão enganados, talvez façam outro Partido, mas do nosso saem, saem de certeza. 


MEMBROS 


Ponho o problema claro aos camaradas, sobre o nosso trabalho. No Partido, de verdade, só entra gente honesta, séria. E sai todo aquele que é desonesto, todos aqueles que se aproveitam do nosso Partido para servir os seus interesses pessoais. Hoje enganam-nos, mas amanhã saem de certeza. 
Quem mente, sai, quem quer só servir a sua cabeça, para ter calças de tergal, com boas camisas, para abusar das nossas raparigas, ou quem anda a abusar do povo da nossa terra, esses saem. 
Aqueles que não têm respeito pelo povo da nossa terra e fingem tê-lo diante da Direcção, mas por trás, quando estão na sua área a mandar, tratam o povo como se fossem chefes de posto ou administradores colonialistas, esses saem. Aqueles que têm na sua cabeça que estão a lutar, a sacrificar-se nesta luta, para amanhã abusarem como os chefes de posto, esses saem. Chegou a hora de falarmos disso claramente. Porque há alguns camaradas que estão a sacrificar-se muito, mas com a ideia de que amanhã vão gozar, com bom automóvel, criados, várias mulheres, etc. 
Esses estão enganados. Não são do nosso Partido e vão ver isso de certeza. 
O nosso Partido está aberto aos melhores filhos da nossa terra. Hoje, todos nós somos «Partido», a pouco e pouco o núcleo de gente que é Partido define-se. Quem é Partido de facto, está ou entra naquele núcleo; quem não é Partido, sai. Porque só podemos realizar de verdade o que queremos na nossa terra se formos um grupo de homens e mulheres fortes, capazes de não enganar os seus camaradas e de não mentir, capazes de olhar para os camaradas, olhos nos olhos, e capazes de crer que a juventude é que será dona da nossa terra amanhã, na Guiné e Cabo Verde. 
Portanto, temos que cumprir o nosso dever o melhor possível, dar todas as possibilidades para avançarem. Quem tem ambições de chefia (regulundade) no nosso Partido, mais dia, menos dia, sai. Quem não aprendeu a respeitar o seu companheiro, ser humano, homem ou mulher, como deve ser, mais dia, menos dia, sai. Quem pensa que amanhã a nossa política vai estar ao serviço de uma ou outra nação estrangeira, sai, porque nós não vamos ter disso. Lutamos pela independência. 
Portanto, vocês vêem que vai ser cada dia mais difícil ser-se membro do nosso Partido. E esta vanguarda que nós criámos, esse instrumento que fizemos para construir a independência da nossa terra, como um homem constrói uma casa, tem que ser cada dia mais fino, mais afiado, mais perfeito, e o nosso povo tem que fazê-lo cada dia mais bonito. 
É fundamental que os camaradas todos estudem o programa do Partido, sobretudo aqueles mais novos, que entendam bem, para se prepararem para ser de facto do Partido. E mais, para se engajarem cedo no Partido, porque nós vamos exigir cada dia mais a cada responsável o seu engajamento total no Partido. Não engajamento para a sua cabeça, não engajamento com Amílcar Cabral, ou com João ou N'Bana ou Bacar, ou outro qualquer que é o seu chefe. Com o Partido, com as ideias do Partido, com as forças vivas do Partido, que são as ideias do Partido. 
Tem que dar provas de que tem na sua cabeça as ideias do Partido, ideias que o Partido pôs como devendo ser de cada um. Quem não fizer isso, está mal. Mas mais: mais tarde, antes de alguém ser membro do Partido tem que ser primeiro candidato ao Partido. Primeiro tem que dar provas de que merece de facto entrar no nosso Partido, para depois entrar. Tem que ser assim, porque nós queremos de facto servir o povo da nossa terra. Não queremos enganar-nos. 
É fácil pôr toda a gente num Partido: uma criança nasce e logo põe-se o seu nome no Partido. 
Para que serve isso? Então o que é o Partido? Num clube de futebol é preciso pagar cota, ir ao campo dar palmas e gritos. Como é que vamos permitir que toda a gente entre no Partido, meninos, homens, mulheres? Não. Na luta de libertação é bom, é preciso: toda a gente, vamos embora para a frente. Mas no meio de tudo isso vamos sabendo cada dia mais, quem é que é Partido de facto. Temos que ser capazes de entrar numa sala como esta e dizer: Este sim, este é Partido, e aquele e o outro, mas aquele ali, esse ainda não é Partido. 
Tem que ser assim; só assim é que podemos servir o nosso povo. Se confundirmos toda a gente, estamos mal. E quem for de facto elemento do Partido, esse prova que quer melhorar-se cada dia mais, porque quem parar, morre. Muitos camaradas ainda não entenderam isso, vários camaradas aproveitam-se do Partido. Para eles, ser do Partido, ser dirigente do Partido é levar boa vida, para gozar, e querem aproveitar depressa porque não acreditam no Partido, não acreditam no futuro. 

Hoje mesmo é que querem gozar depressa roupa bonita, dinheiro no bolso, mandar com todo o abuso, fazer dos camaradas seus criados, além de outros abusos. Isso é candidatura para sair do Partido e há muitos que se não saem hoje saem amanhã, por mais trabalho que tenham feito, por mais ajuda que tenham dado. Ou arrebentam com o Partido, ou saem. 
A melhor maneira é corrigirem-se, corrigirem-se depressa, porem-se na linha como deve ser; e nós temos feito todo o esforço para pôr os camaradas na linha para não terem de sair do Partido amanhã. 
Alguns já ficaram pelo caminho porque foi impossível corrigirem-se e, como a nossa condição é muito triste, se alguém não se emenda, vira contra, vira traidor. Temos que combater isso passo a passo, com todo o cuidado necessário, para darmos a cada um a maior oportunidade possível de ser do Partido, mas também não podemos permitir que nos enganem, que finjam que são do Partido, quando não são nada do Partido. 
Qualquer camarada que tenha dentro da sua cabeça a ideia de que a sua  «raça» é que deve mandar na nossa terra, que se prepare porque haverá guerra com ele. Mas há ainda camaradas no Partido que ainda são incapazes de matar totalmente aquela ideia de «raça» que têm na cabeça. 
Porque são ambiciosos, só porque são ambiciosos, querem ser eles os mandões máximos de tudo. 
Gente como essa não é do Partido. No nosso Partido manda quem tem valor, quem mais pode mandar, quem deu provas concretas de que sabe mandar, e o nosso objectivo é só um: servir o povo. 
Hoje é do Partido toda aquela gente da nossa terra que está disposta a acabar com o colonialismo português e disposta a seguir as palavras de ordem do Partido, a respeitar e a cumprir as ordens da Direcção do nosso Partido. Esses são do Partido. Mas amanhã serão do Partido só aqueles que têm uma conduta moral exemplar, como homens dignos ou como mulheres dignas da nossa terra. 
Que trabalha e tem trabalho mesmo, porque os vadios não podem ser do nosso Partido, de maneira nenhuma. E que põe como sangue da sua vida, alma da sua alma, cumprir o programa do nosso Partido na nossa terra, combatendo seja quem for. Que programa do nosso Partido? Aquele que vocês conhecem mas aquele que vão conhecendo cada dia mais. Esses é que serão amanhã do nosso Partido e, no meio desses, os donos de facto do Partido, são aqueles que serão capazes de transformar o Partido, cada dia, numa organização melhor, mais ainda ao serviço do nosso povo.

 
MAS O QUE É O POVO? 


Muitos camaradas dizem: oh o meu povo! Muitos camaradas, quando cometem erros ou estão atrapalhados com as coisas do Partido, começam logo a falar do povo. Isso vai acabar aos poucos, mas temos que saber duma maneira bem clara o que é o povo. 
A definição de povo depende do momento histórico que se vive na terra. 
População é toda a gente, mas o povo já tem que ser considerado com relação à própria história. 

Mas é preciso definir bem o que é o povo, em cada momento da vida de uma população. Hoje, na Guiné e em Cabo Verde, povo da Guiné ou povo de Cabo Verde, para nós, é aquela gente que quer correr com os colonialistas portugueses da nossa terra. Isso é que é povo, o resto não é da nossa terra nem que tenha nascido nela. Não é povo da nossa terra, é população, mas não é povo. 
Hoje é isso que define povo da nossa terra. Povo da nossa terra é todo aquele que nasceu na nossa terra, ou na Guiné ou em Cabo Verde, que quer aquela coisa que corresponde à necessidade fundamental da história da nossa terra, que é o seguinte: acabar com a dominação estrangeira na nossa terra. Aqueles que estão prontos a trabalhar duro nisso, a pegar teso, são todos do nosso Partido. Portanto, a maior parte do nosso povo é o nosso Partido. E quem mais representa o nosso povo é a direcção do nosso Partido. Que ninguém pense que lá porque nasceu no Pico da Antónia ou no fundo do Oio, é mais povo do que a direcção do nosso Partido. O primeiro pedaço do povo da nossa terra, genuíno, verdadeiro, é a direcção do nosso Partido, que defende os interesses do nosso povo e que foi capaz de criar todo este movimento para defender os interesses do nosso  povo. 
Vou tentar esclarecer ainda mais este problema: 
Toda a gente da população da nossa terra que quer, neste momento, que os colonialistas portugueses saiam da nossa terra, para tomarmos a nossa liberdade e a nossa independência, esses são o nosso povo. Mas entre essa gente há alguns que pegaram no trabalho a sério, que lutam com armas nas mãos, ou no trabalho político ou na instrução ou em qualquer outro ramo, e que estão debaixo da direcção do nosso Partido: esses são o nosso Partido. Se quiserem, a vanguarda do nosso povo é o nosso Partido e o elemento principal do nosso povo, hoje em dia, é a direcção do nosso Partido. Portanto, aqueles que têm amor pelo nosso povo, têm amor pela direcção do nosso Partido. Quem ainda não entendeu isso, não entendeu nada. 
Isso é nesta fase, neste momento. Mas daqui a algum tempo, quando tomarmos a nossa independência, por exemplo, quem quiser que a nossa terra seja independente, mas não quer que as mulheres sejam livres, e quiser continuar a explorar as mulheres da nossa terra, esse hoje é povo, mas amanhã já não será. Se nós queremos que todas as crianças da nossa terra sejam respeitadas e algum de entre nós não quiser isso, esse já será população, não será povo. 
O nosso objectivo é fazer o progresso e a felicidade do nosso povo, mas nós não podemos fazê-lo contra o nosso povo. Ora, se alguns da nossa terra não querem isso, ou eles não são povo, e então nós podemos fazer tudo contra eles e talvez mesmo os púnhamos na cadeia, ou então eles são muitos e representam o povo e, nessa altura, nós paramos; não podemos fazer nada, porque não se pode fazer a felicidade e o progresso de alguém contra a sua vontade. 
Temos que entender bem, portanto, que em cada fase da história duma nação, duma terra, duma população, duma sociedade, o povo define-se consoante a linha mestra da história dessa sociedade, consoante os interesses máximos da maioria dessa sociedade. 
O termo democracia foi criado na Grécia, em Antenas (Demo + cracia = governo do povo). Mas quem foi que o criou? Em Antenas havia nobres, Senhores (donos da terra) e depois os escravos, que trabalhavam para todos os outros. A democracia para eles era só para os de cima, eles é que eram o povo, os outros eram escravos. Até hoje é a mesma coisa em muitos lados. Quem tem a força na mão, o poder, faz a democracia para ele. Nós, na nossa terra, queremos que a maioria tenha o poder nas mãos. Mas nós queremos o poder nas mãos do nosso povo. Aquele que segue o caminho recto, que quer cada dia mais progresso e felicidade na nossa terra, progresso não só para os fulas, não só para mandingas, não só para filhos de cabo-verdianos, não só para balantas, progresso para todos, tanto na Guiné como em Cabo Verde —esse faz parte do nosso povo. 


PARTIDOS E MOVIMENTOS 


Continuando ainda a falar do instrumento que o nosso povo criou para desenvolver a acção de alguns dos seus filhos para a luta pela libertação e o progresso na nossa terra, quero insistir no facto de que, desde o começo do nosso trabalho, tivemos sempre o sentimento e a certeza de que para libertar a nossa terra não era preciso criar muitos movimentos. Pelo contrário, era preciso fazer grande força para termos uma só organização de luta com acção na Guiné e em Cabo Verde. 
Essa foi a linha que traçámos a partir da análise da nossa situação concreta, da nossa realidade, e a linha que defendemos duramente, através de vários anos, apesar de em certos momentos termos tido necessidade de recuar para termos a certeza se tínhamos ou não razão. 
Ontem conversámos sobre as contradições da nossa sociedade e vimos que, no plano social propriamente dito, quer dizer, das camadas da sociedade, das classes, se quiserem, as contradições não são muito grandes, sobretudo na Guiné, sendo um bocadinho mais acentuadas em Cabo, Verde, onde havia alguma gente com terra, com propriedade, e alguns donos de comércio e de pequenas indústrias. Mas chamei a atenção dos camaradas para o facto de que isso é pouco, não chega para formar uma classe propriamente dita, do ponto de vista quantitativo, quer dizer, numérico. Mas nós sentimos bem que, como influência de tempos passados e como resultado da divisão que o inimigo criou no nosso seio, havia contradições entre grupos étnicos, entre aquilo que nós chamamos « raças » na Guiné. E, claro, em Cabo Verde, entre, sobretudo, por um lado camponeses sem terra e, por outro, aqueles que têm meios seguros para viver, incluindo os donos da terra. 
A maior asneira que se podia fazer na nossa terra seria criar na Guiné partidos ou movimentos na base de etnias, o que era um meio bastante bom, não só para o inimigo nos dividir ainda mais, durante a luta, mas também para garantir a sua vitória; a destruição da nossa independência, depois da luta, como os camaradas têm visto em alguns países africanos. Em Cabo Verde, seria absurdo pensar em criar um Partido de gente que tem alguma coisa e um Partido de gente que não tem nada, para lutar contra o colonialismo português. 
Na luta contra o colonialismo, é fundamental, é importante, é decisivo, juntar toda a gente que quer a independência, que quer lutar contra o colonialismo. Por isso mesmo, o nosso Partido, em 1959, quando surgiram em Bissau alguns pequenos grupos de nacionalistas, que não eram controlados por nós, os nossos camaradas, sobretudo o nosso camarada Aristides Pereira, Fortes, Luís e outros, fizeram o máximo para que aqueles pequenos grupos se integrassem no nosso Partido para evitarmos que a nossa força ficasse dispersa. 
Vocês todos sabem que o Partido foi criado em 1956 e nessa altura já estávamos em 1959. Mais tarde surgiram pessoas da nossa terra a falar em frente, mesmo o Partido chegou a falar de frente, e alguns camaradas podem perguntar porque é que nós não fizemos uma frente na nossa terra. 
Exactamente porque uma frente quer dizer união de várias organizações. Na nossa terra nós não conhecíamos mais nenhuma organização. Quando o nosso Partido entrou em contacto com o exterior do país, a partir de 1960, sentiu que havia gente da nossa terra fora, quer da Guiné, quer de Cabo Verde, que tinha criado os chamados movimentos fora da terra. 0 nosso Partido teve que fazer uma concessão, teve que dar um passo atrás na sua ideia de só um Partido e nada de frente, para ver se juntava aquela gente, para lutar pela independência da Guiné e Cabo Verde. Por isso mesmo é que, por um lado, fizemos uma chamada Frente com o Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde que estava em Conakry mas que os nossos próprios camaradas criaram já ligados ao PAIGC, e como Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde que estava em Ziguinchor. 
Poderei contar aos camaradas, mais tarde a história das coisas que se passaram em Conakry, mas a verdade é que, com grande barulho, com problemas levantados pelos nossos irmãos da Guiné e Cabo Verde no Senegal resolvemos lançar um apelo para a unidade de todos os Movimentos de Libertação da Guiné e Cabo Verde. O PAIGC chamou todos aqueles que diziam que eram movimentos para nos unirmos. Fizemos uma conferência em Dakar com o então Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde, que estava em Dakar e que englobava tanto guineenses como cabo-verdianos, no qual estavam fulanos que vocês conhecem; não vale a pena torná-los importantes citando os seus nomes aqui. Para essa conferência também foi esse movimento de Ziguinchor e o Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde que estava em Conakry, assim como o PAIGC representado por alguns dos seus membros. Tudo isso foi fundamentalmente uma concessão da nossa parte, uma táctica, para vermos o que é que aquela gente queria de facto, qual era a sua intenção, até que ponto estavam engajados na luta a sério e se de facto queriam lutar ou se queriam apenas arranjar lugares. Praticamente, nós é que fizemos a conferência toda. Levámos documentos bem preparados, e eles, encarregados de preparar a conferência, nem sequer tinham ainda feito o programa. A conferência foi feita de facto, com a assistência das autoridades senegalesas, com a assistência do camarada Marcelino dos Santos, representando a CONCP e de outras entidades. 
O ponto de vista do nosso Partido foi defendido com força pelos seus representantes, apoiado pelos movimentos de libertação da Guiné e Cabo Verde de Conakry e Ziguinchor. Claro que o objectivo dos de Dakar não era fazer a unidade, era o de acabar com o PAIGC; essa é que era a sua ideia e, quando viram que não era possível, aceitaram todas as resoluções apresentadas na Conferência. Mas logo a seguir começaram a sabotar. Claro que depois ficaram desmascarados como gente que não queria unidade, e que não queria unidade porque não queria lutar, que fingia falar em unidade mas que procurava apenas uma posição para poder fazer manobras para ganhar lugares e liquidar o nosso Partido. 

Portanto, os camaradas vêem que o Partido, embora tenha estabelecido como princípio da sua vida uma só organização, uma só bandeira e nada de confusões no estabelecimento desse movimento de libertação, foi capaz de fazer concessões, de recuar, para dar a toda a gente a possibilidade de manifestar claramente se queria ou não queria de facto lutar pela nossa independência. Quando o Partido chegou à conclusão de que afinal essa gente só dizia mentiras, só queria desonestidade e só andava à busca de lugares, só procurava criar confusão, servindo, assim, os colonialistas portugueses, o Partido resolveu o seguinte: nós não queremos mais unidade com ninguém, quem quiser unidade com o PAIGC, que venha dentro da terra fazer a unidade com o PAIGC. Foi essa a nossa posição e nós resistimos a todas as pressões que foram feitas sobre nós, porque tínhamos a certeza de estarmos no caminho certo e seguro. 


NEGAÇÃO DO OPORTUNISMO 


Outra coisa que queremos pôr claro na questão do nosso Partido, da nossa organização, é o seguinte: desde o primeiro dia (já falámos disso aos camaradas na questão dos princípios) nós negámos o oportunismo. Podíamos, por exemplo, tentar juntar ao nosso Partido certos homens com influência grande na Guiné, chamá-los para o Partido para nos podermos servir da sua influência, como alguns grandes de Bissau, ou alguns régulos —lembro-me de que vários régulos eram membros do Partido —mas nunca lhes dissemos que, eles é que vinham mandar. 
Houve régulos do chão dos Manjacos, por exemplo, ou do chão dos Mancanhas, que foram chamar outros, por causa da bandeira do Partido, houve chefes na área de Mansoa e outras áreas que foram presos por causa da bandeira do Partido mas nunca lhe dissemos que, como eram chefes da nossa população, também eram chefes do Partido. Negámos isso duma vez, porque não queríamos enganar ninguém. Numa organização nova, criada para libertar a nossa terra, são e serão dirigentes aqueles que estão em condições para isso, não porque ontem eram chefes. 
Sentia-se, por exemplo, e sente se cada dia em várias áreas de África, quanto representa de atraso para o futuro, de dificuldades para amanhã, fazer oportunismo pondo os chefes tradicionais na direcção duma organização de libertação nacional.

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