MEMORÁVEL JOSÉ CARLOS SCHWARZ

Por: Fernando Casimiro (Didinho)

didinho@sapo.pt

20.05.2007

José Carlos Schwarz, poeta, músico e compositor, pioneiro da música moderna guineense, continua, ainda hoje, a ser fonte de inspiração, sobretudo pelas músicas de intervenção que nos deixou como legado, ele que, a par dos seus camaradas de risco, iscos de então, nunca foi ou ficou indiferente à situação na Guiné-Bissau quer no período colonial, quer no pós-independência.

Um exemplo de cidadania, uma referência do orgulho nacional que desapareceu, fisicamente, muito jovem, tinha apenas 27 anos de idade.

Foi em 1977, dias antes da tragédia que o vitimou que o vi pela última vez, no ginásio da UDIB, em Bissau, onde funcionava temporariamente a Escola Nacional de Judo, na companhia do seu amigo de sempre, Duco Castro Fernandes, que também era, tal como eu, praticante de Judo.

Dias depois Zé Carlos partiu de Bissau com destino a Havana, ele que tinha sido nomeado Encarregado de Negócios da nossa embaixada em Cuba, uma viagem que acabou em tragédia no aeroporto José Martí de Havana, a 27 de Maio de 1977.

A Guiné-Bissau tinha acabado de perder um dos seus filhos mais esclarecidos, um bem intencionado e activo intervencionista em defesa do interesse nacional.

Atendendo à evocação da data e como gesto de homenagem a Zé Carlos, aceitam-se trabalhos literários ou mensagens de reconhecimento sobre a sua figura para publicação neste MEMORÁVEL que fica em aberto, tornando-se num compacto de registos sobre José Carlos Schwarz.

Trinta anos depois, Zé Carlos continua entre nós, pois o tempo valoriza os Grandes Homens, eternizando-os.

Saibamos tirar proveito do legado de José Carlos Schwarz na Guiné-Bissau de hoje.

 

JOSÉ CARLOS SCHWARZ

Nasceu em Bissau a 6 de Dezembro de 1949. Estudou em Bissau e Dacar. É considerado o pioneiro da musica moderna guineense. Preso político, foi deportado para a Ilha das Galinhas. Após a independência foi director do Departamento de Arte e Cultura do Comissariado da Juventude e Desportos e encarregado de negócios da Guiné-Bissau em Cuba. Músico, compositor e intérprete, participou nas antologias de poesia guineense Mantenhas para quem luta e Momentos primeiros de construção. Morreu a 27 de Maio de 1977 num acidente de aviação em Cuba.

 

ANTES DE PARTIR

Antes de partir

Encherei os meus olhos, a minha memória

Do verde (verde, verde!) do meu País

Para que quando tomado pela saudade

Verde seja a esperança

Do regresso breve

Antes de partir

Encherei os meus ouvidos, a minha memória

Do palpitar que esmorece, enquanto a noite

Cresce sobre a cidade e no campo

Feito o silêncio dos homens e dos rádis...


CANTA CAMARADA

Canta camarada

Deixa que o teu sonho verdade

Flua límpido nos anseios da tua voz quente

Pois este é o teu dever, o teu direito.

Canta camarada

Que a recordação da tua dor

Seja como a terra revolvida

Em cada época, para a sementeira.

Canta camarada

Apenas alguns nomes, para que seja exaltado o anónimo

Apenas os mortos, porque os vivos

Ainda podem desmerecer da nossa gratidão.

Canta camarada

Pois é a única benesse

Que te reservaste na oferta da tua juventude

Em Holocausto no altar da revolução.

Fonte: Antologia Poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990

José Carlos Scwarz na companhia de Miriam Makeba, renomada cantora sul-africana

MÚSICAS DE JOSÉ CARLOS SCHWARZ/COBIANA DJAZ

N´na nega bedju

DJIU DI GALINHA

APILI

DIPUS KE LEBAL

FLEMA DI CORSON

MINDJERIS DI PANO PRETO

MININO DI CRIASSON

Djenabu

Estin

I son sodadi

Que qui minino na tchora

Paulo Nanque

Dimingo Badinca

Papé bu iara

 Tchamada pa tropa

Tio Bernar

Cobiana

Bu djubin

Na colónia

Sucuro

Nau, n ka na seta

Si bu sta dianti na luta


MENSAGENS/TEXTOS EM HOMENAGEM A JOSÉ CARLOS SCHWARZ

Caso queira homenagear José Carlos Schwarz, envie mensagem ou texto para publicação, através dos seguintes endereços electrónicos:

didinho@sapo.pt

didinhocasimiro@gmail.com


De: José António Djata

20.05.2007

França

Meu caro Didinho.

Sinto pena de não poder exprimir o meu pensamento em Português como em Francês. Penso que vais ser indulgente comigo se houver erros ortográficos ou expressões que não correspondam exactamente em Português.

Vim para França em1984 e nunca mais voltei ao meu País. Vim fazer os estudos Superiores aqui em França, terminei e decidi ficar até à data presente.

Para o ANIVERSÁRIO da Morte de Zé Carlos, para mim, seria melhor fazer-se um trabalho mais aprofundado, recolhendo testemunhos dos que partilharam a vida com ele: músicos do Cobiana Jazz, os que conviveram com ele em Bissau, em Cuba, ou os que tiveram breves momentos com ele nas antigas zonas libertadas. Eu pessoalmente vi-o uma só vez na Escola Terranga do PAIGC em Ziguinchor no ano de 1973.


De: Joaquim Silva Tavares  (Djoca)

21.05.2007

Médico, Las vegas, Nevada (USA)

Não podia deixar passar esta ocasião sem juntar a minha voz à de todos os  guineenses para homenagear um homem que sempre foi um verdadeiro herói para mim.

Crescendo em Bissau nos anos sessenta /setenta, sempre tive uma grande admiração por indivíduos que, apesar de todas as dificuldades e tentações da nossa terra, nunca se deixaram corromper e sempre lutaram para que tivéssemos um futuro digno e a nossa terra nunca perdesse a "esperança".

José Carlos foi um destes indivíduos. A música, o comportamento moral e ético sempre me inspiraram e parte do que sou agora é devido à inspiração que ele e outros verdadeiros guineenses inculcaram  em mim.

Ainda agora, depois de uma noite sem dormir, tratando dos doentes com os meus residentes e estudantes na Universidade hospitalar, de volta a casa às 3, 4 horas da manhã, ouvindo as baladas de: Mindjeres de pano preto, Djiu di galinha, Paulo Nanque, sinto-me rejuvenescido, esperançado e preparado para um novo dia.

Espero que, como José Carlos, haja muitos outros guineenses que ainda inspirem e servem como modelo as nossas crianças e jovens para que saibam que o sucesso na  vida não é sempre sinónimo de cobiça, dinheiro, etc.; há outros valores (como a moralidade, o amor à pátria, justiça, direito de todos os nossos conterrâneos terem esperança no futuro) que são verdadeiros exemplos de sucesso na vida.

Nunca te esquecerei José Carlos e todos os prémios e galardões que recebi e continuo a receber não se comparam à tua contribuição à musica, política, e história da nossa querida pátria.

Serás sempre um herói para mim!


 

José Carlos Schwarz (1949-1977) - James Douglas Morrison (1943–1971)

 

Vozes do Zodíaco                                                                                                                                

Por: Norberto Tavares de Carvalho, « O Cote »

 21.05.2007

José Carlos Schwarz e James Douglas Morrison pertencem ao mesmo signo astrológico: o Sagitário. Nasceram entre 23 de Novembro e 21 de Dezembro, respectivamente nos dias 6 e 8 de Dezembro.  Tanto impressionaram e tanto fanatizaram que merecem ser referenciados no espaço celeste como as Vozes do Zodíaco.

Diz-se do Sagitário:« É um signo a duas tendências, com o mesmo dominante de idealismo e de busca filosófica. De uma maneira geral, o Sagitário é sincero e generoso. A primeira tendência caracteriza a fogosidade até nos limites extremos. É um rebelde e um combatente. A segunda já é mais tradicional, à procura do ideal quotidiano. »  [1]

Cantores carismáticos, ferrenhos adeptos da literatura e da poesia, rebeldes confirmados, detentores ímpares do verbo, José e James tiveram uma ascenção fulgurante na vida, morreram de forma trágica e transformaram-se em figuras místicas. Ambos tinham 27 anos de idade quando a morte os surpreendeu.

Vale a pena estabelecer certos paralelos entre estas duas legendas.

Cantor do grupo musical The Doors, James Douglas Morrison, aliás Jim Morrison [2], nasceu em Melbourne, na Flórida, Estados Unidos da América. De pai militar e mãe doméstica, atravessou uma fase juvenil bastante agitada. Era uma das muitas crianças que vagueavam pelas ruas de Melbourne: droga, encrencas com a polícia, prisão, etc.

Fã  de Elvis Presley, intelectual engajado no movimento « Protest-song », em particular contra a guerra do Vietman, fez os seus estudos na universidade californiana de Los Angeles. Em 1965, com um outro estudante, funda o grupo The Doors.

Com a voz clara e grave, rouca e intensa de Jim, os Doors conheceram uma impressionante ascenção na cena musical. Até que, num grande concerto realizado em Miami, em Novembro de 1969, Jim foi acusado de ter provocado o público. Teria exibido publicamente um gesto obsceno. O concerto foi interrompido e o Jim conduzido pela polícia. Foram dois anos de processo judicial com interdição de actuar em público. Um golpe rude para um grupo de jovens que estava numa fase musical ascendente, e um ferimento agudo, um rasgo profundo no espírito e na alma do seu tempestuoso líder vocal.

Mas o star do rock ‘n roll sempre negou a acusação. Os outros membros do grupo afirmaram a inocência do cantor argumentando não só que estavam ao lado dele e que o teriam visto provocar o público, mas também que se encontravam na sala vários fotógrafos e jornalistas e que em todas as fotos do concerto, não  aparecia  o pretendido gesto do cantor.

Jim Morrison acabaria por não digerir a decisão das autoridades de Miami. Depois de ter concluído a gravação do álbum « An Americain Player », despede-se do grupo e no dia 11 de Março de 1971, abandona Los Angeles e instala-se em Paris com a sua namorada Pamela Courson.

Na capital francesa, Jim não parava de repetir: « Gostaria de ter ficado… », referindo-se a Los Angeles e ao grupo  Doors.

José Carlos, como se sabe, nasceu na Guiné. De pai guineense de origem alemã e de mãe caboverdiana, fez os seus estudos primários e secundários em Bissau, Dakar e Mindelo. Fã de Kanté Manfila, fundou a orquestra « Cobiana Jazz » com o Aliu Barri e opôs-se abertamente à opressão colonial portuguesa. A voz do José Carlos, incontestavelmente bela, explorando inteligentemente o verbo crioulo, elevou o « Cobiana Jazz » ao mais alto pedestal da cultura musical guineense. Preso pela Pide/Dgs, foi libertado após  o golpe de estado ocorrido em Portugal em 25 de Abril de 1974. No post libertação, optou também, como o Jim Morrison nos seus tempos, pela canção de protesto (Protest-song) contra os desvios à moral social e à linha ideológica de Amilcar Cabral, líder da revolução guineense-caboverdiana, assassinado em Conacri em Janeiro de 1973.

José Carlos considerava que, sem citar o Amilcar Cabral, o líder estava implicitamente presente em qualquer das suas composições. [3]  O que equivale dizer que conhecia perfeitamente a obra do ilustre dirigente africano. José Carlos Schwarz é considerado um dos percursores mais salientes da música guineense contemporrânea.

Nomeado Encarregado de Negócios da Embaixada da Guiné-Bissau em Cuba, despediu-se da cena musical para se estabelecer em Havana. À leitura e breve análise do conteúdo do seu poema « Antes de partir », ressalta à vista uma certa hesitação entre efectivamente o ter que « partir » e o desejo ardente de « ficar ». Em suma, é o caso de já querer regressar antes mesmo de ter partido. « Para que quando tomado pela saudade, verde seja a esperança do regresso breve (…) » [4] Pois já estava com saudades. Saudades dele próprio, saudades do seu ego, saudades da sua ousadia, saudades da sua essência.

Partir sem a alma, para que serve então ? Talvez aí resida o verdadeiro mistério…mas esta é já uma outra história… 

Para que pudessem progredir de facto na cena musical, tanto um como outro tiveram necessidade de se apoiar noutros ídolos. O Jim progrediu ao lado do Jimmy Hendrix e de Janis Joplin e José Carlos beneficiou da cumplicidade da Myriam Makeba, com quem gravou, do seu vivo, o primeiro e único álbum a solo. 

Quando circularam boatos em Bissau de que as canções do José Carlos iam ser censuradas pelas autoridades, Myriam Makeba apregoou de que se a « Apili », o best seller do José, fosse censurada em Bissau, ela mesma cantá-la-ia em todos os Palácios de África. O aviso foi eficaz…

As imagens públicas destes dois homens eram antes de tudo caracterizadas pelas suas belas aparências físicas. Amáveis barbudos, (a barba do Jim aproximava-se da do Camilo Cienfuegos enquanto que a do José Carlos oscilava entre a do Edmundo Dantes[5] e a do

« Che »), o Jim animava sobremaneira os aperitivos maratonas que tinha o prazer de organizar em Paris, onde se disse que se comportava excessivamente como uma « criança-adulta », o José, já mais sóbrio, divertia-se da arbitragem de futebol que fazia com as crianças da rua Vitorino Costa (ex-Lamine Injai) onde morava.

Conhecendo pessoalmente o crooner guineense e tendo lido e visualizado a biografia do rock star, uma nota comparativa se impõe ainda: trata-se da fervente necessidade de reconhecimento. Esta relação ao reconhecimento poderia ser o motivo que conduziu o Jim a abandonar Los Angeles para se instalar em Paris e o José Carlos a se  separar do « Cobiana Jazz », fundar o seu grupo com o qual lançou a série « Apili », abandoná-lo mais tarde em troca de um posto de diplomata no estrangeiro.

Pode ser que tanto um como outro, tivessem o (pre) sentimento de não serem considerados legítimos nas suas aspirações, nos seus desejos e nas suas opções contestatárias. E que esse estado, essa situação servisse para entreter um clima conflitual de incompreensão, o que não era o objectivo que preconizavam. Creio que ambos foram sinceros do princípio ao fim. Diz-se aliás que a música não é uma questão de estilo mas de sinceridade, e que esta é por vezes uma audácia de grande mérito que leva à exactidão …

Visão do Jim, aos três anos de idade, que reproduziu mais tarde no disco póstumo « An American Player »: (…) e os indianos jaziam na estrada, agonizando e perdendo sangue… (…) Foi a primeira vez que experimentei um medo terrível. » Uma das audácias « de grande mérito » do José Carlos, que levou a uma « exactidão » foi a referência que fez ao então Comissário Principal Francisco Mendes « Tchico Té » no seu título « Flêma di Corçom », segundo o que próprio José Carlos confiou a alguém que ainda hoje o confirma: « Se os dignatários se embebedam, os filhos tornam-se murchos ». [6] Contrariamente ao que pretende o virtuoso Zé Manel no seu título « Tchiko Té » [7], de que foram os camaradas que mataram o dignatário em questão, com o devido e merecido respeito que sempre reservei ao camarada Francisco Mendes e à sua respeitosa esposa, existem indícios que pleiteiam a advertência do José Carlos. Aliás, os restos mortais do ilustre líder ainda podem falar.

Jim Morrison e José Carlos morreram de forma trágica.

À volta das suas mortes, circularam rumores de todos os gostos, indo da overdose à crise cardíaca, passando pelo assassinato comanditado pela CIA num caso e pela Segurança do Estado guineense noutro.

No dia anterior à sua morte, José Carlos Schwarz deslocou-se ao Aeroporto de Bissalanca, em Bissau, na companhia do jornalista Óscar Barbosa, « Cancan » e de Idrissa Djalló do então Comissariado de Estado do Interior. José Carlos conduzia o automóvel do seu amigo « Cancan ».   O atraso do passageiro da TAP podia custar-lhe o bilhete. José Carlos foi o último a entrar no avião. Na precipitação do despacho acabou por embarcar esquecendo de devolver a chave do carro ao « Cancan ». E deu-se o incrível espectáculo: o jornalista, aflito, foi à torre de controle do aeroporto interceptar o Comandante do avião, que já tomava balanço na pista para decolar. O aparelho imobilizou-se como por encanto e o « Cancan », lá conseguiu recuperar a chave da sua viatura.

No dia seguinte o Idrissa Djalló contou-nos de que ao ouvir a rádio BBC de Londres, ficara extremamente preocupado. A BBC diluía a informação de que o avião da Aeroflot, Companhia Aérea da então União Soviética,  que fazia a ligação Lisboa-Havana, naquele dia 27 de Maio de 1977, tinha caído no aeroporto da capital cubana e só havia uma sobrevivente de nacionalidade Alemã.

Algumas horas depois, o Comissariado de Estado dos Negócios Estrangeiros dava em Bissau a inacreditável notícia. O impacto fora de tal forma pesada que misturou dores e cepticismos. A causa da morte não vinha de lado nenhum. Se ao menos estivesse doente ainda se podia conceber, mas assim de repente, custava a crer. Daí que todas as espécies de fantasmas tivessem invadido as consciências.

Do James Douglas disse-se também que fora obra da CIA. Mas segundo o testemunho da sua amiga Pamela Courson, o rock star teria sentido um mal-estar no quarto indo deitar-se no balneário da casa de banho, enchendo-o de água e aí ficando estendido. Por volta das 5 da madrugada, a Pamela acordar-se-ia sem o companheiro a seu lado. Precipitando-se à casa de banho, descobri-lo-ia inerte no balneário. Era a madrugada do dia 3 de Julho de 1971.

Entretanto, bem antes da madrugada, a morte do Jim fora anunciada por um DJ numa discoteca de Paris. Quer dizer que a necrologia oficial fornecida pela noiva, não coadnudava com a revelação nocturna do DJ. A partir daí jornalistas do rock resolvem tomar o caso a peito… e a sério. As suas investigações teriam apurado que afinal o Jim que se transformara num alcoólico, tinha acima disso consumido uma apreciável dose de heroína no Restaurante Bar Rock ‘n roll Circus , em Paris, e, sentindo um profundo mal-estar teria ido fechar-se nos toilettes. Pamela e os amigos que lá se encontravam, apercebendo-se da sua demorada ausência, iriam lá buscá-lo, aparentemente já morto, transportando o corpo ao hotel onde morava e indo depositá-lo no balneário, numa desesperada tentativa de o reanimar.

As duas versões da morte prematura do rock star ainda hoje se contemplam. Pamela Courson, que morreria dois anos depois, de … overdose, acabaria por levar o segredo da morte do Jim à cova, o que deu aso às especulações de que teria sido obra de mãos estranhas.

Falando da CIA, o José Carlos teria conhecimento de que as suas deslocações em companhia da Myriam Makeba interessava os serviços secretos da Guiné-Bissau ? O facto porém é que esses serviços suspeitavam da sul-africana ter ligações com a CIA. Nos regimes políticos, como o era o nosso na altura, tudo o que não era do Leste era capitalista e quem diz capitalista diz CIA. Por este concurso de circunstâncias, o «Zé » tinha também sido posto nos olhos do ciclope.

A verdade é que, depois de ter conhecimento desta investigação, nunca mais ouvi falar do caso. O relato deste episódio serve hoje o direito de saber. Mas só os arquivos da segurança, se é que ainda existem, poderão desvendá-lo…

Segundo a lenda, Jimi Hendrix, Jim Morrison, Janis Joplin, José Carlos Schwarz, teriam desaparecido porque incomodavam.  Mas são sobretudo as circunstâncias inesperadas das suas mortes, que contribuiram para agravar, no imaginário colectivo, pretendidas causas ligadas à política.

Pois, segundo certos analistas, a hipótese da intervenção dos estados na dissimulação das razões de mortes de artistas, parece infundada, dado que esses revolucionários e músicos libertários, por mais controversos que foram, eram antes de tudo, essencialmente artistas, e naquela época, esta categoria ainda não tinha a ambição de dirigir nações. Claro que esta « indulgência » dos estados face aos artistas não se aplica aos regimes abertamente totalitários, como foram os de Augusto Pinochet e Mobutu Sesse Seco, por exemplo. (Lembre-se  do Victor Jara e de Franklin Boukaka...)

Hoje sim, a tendência dos artistas a pretenderem dirigir é inequívoca: Bill Clinton, Vaclav Avel, Arnold Schwarzenegger, George Wéa, Gilberto Gil, etc.

A fascinação de James Douglas Morrison pelos índios da América e do José Carlos Schwarz pelos bijagôs da Ilha das Galinhas é uma outra fronteira comum entre os dois ídolos. O carinho que o primeiro reservava a « Sage » seu cão labrador e o segundo a « Gaúcho » seu cavalo predilecto, constituem provas eloquentes do enorme humanismo que os caracterizava. Os diminutivos Pam (por Pamela Courson) e Nucha (pela Teresa Loff) marcam um brinde carinhoso, testemunho ardente das duas indefectíveis fidelidades masculinas.

E são essas facetas que, para além das images de rebeldes constestatários dos anos 60, no caso do Jim, e 70 no do José Carlos, ficaram nas memórias e marcaram profundamente os músicos e artistas que os sucederam. As sombras destas duas figuras planam nas obras mais interessantes das últimas épocas, tanto nos Estados Unidos (Tracy Chapman, Janette Jackson, Madonna, Lionel Ritchie, etc.) como na Guiné-Bissau (Zé Manel, Dulce Neves, Tabanka Jazz, Justino Delgado, [8] Rui Sangará, Manecas Costa, etc., etc., etc. - a lista é extensa ).

Contrariamente ao discreto funeral do Jim Morrison, no cemitério Père Lachaise [9] em Paris, onde estiveram presentes unicamente cinco pesoas às quais a Pam murmurou um dos últimos versos escritos pelo defunto, o do José Carlos Schwarz conheceu um verdadeiro mar negro que se estendeu por toda a praça de Bissau até o cemitério da Achada.

Alguém imortalizou o momento. Trata-se do Luís, filho de « Nha » Gina Pereira da Estrada de Bôr, o conhecido Luís « Badaró », cuja prosa dedicada a esse momento único tive acesso, em circunstâncias decerto extraordinárias, [10]  e cujo parágrafo ultimo cito, mais ou menos assim, esperando não vexar o autor: « (…) Depois da passagem do cortêjo fúnebre,  a rua ficou  de novo vazia e silenciosa, à espera de um outro desfile ». (Que o Luís me corrija…).

Em poucos anos conseguiram viver emoções que o comum dos mortais leva uma vida inteira a experimentar. Estão sepultados em Paris e em Bissau, dois lugares que há mais de 30 anos, são objectos de cultos e de peregrinações.

Esta sensação de inconformidade perante a morte é algo de contagioso. Em 1997, a maratona de Genebra (ou Escalada) coincidiu com o sábado 6 de Dezembro, data do aniversário natalício do José Carlos, que teria nesse dia 48 anos de idade se o acidente de aviação de Cuba não viesse interromper bruscamente a sua existência.

Atleta nas minhas horas livres, perccorri os 7.200 metros da Escalada, com a sua foto colada nas costas da camisola, onde se podia ler: José Carlos Schwarz – 1949 – 1977.

A anedota foi quando um maratonista me ultrapassou soltando num português límpido, esta frase: « Força ó José Carlos, já estamos quase ! »

E enquanto uns se dispõem a visitar as campas emblemáticas do James Douglas Morrison e do José Carlos Schwarz, outros insinuam que ainda estão vivos, levando em segredo uma existência tranquila, um pouco à moda dos que ainda acreditam terem encontrado Elvis Presley, « O King », com um cheesburger na mão… ou que o José Carlos Schwarz intervem por vezes, com a sua voz de zodíaco, nos círculos de comunhão espiritual reunidos em Bissau.

Enfim, existem dores neste mundo, que nem o tempo consegue cicatrizar.


[1] Traduzido do francês em www.eutraco.com

[2] Mais informações no www.google.com

[3] O Duco Castro Fernandes, seu mentor na guitara, possui ainda o manuscrito do José a este sujeito.

[4] José Carlos Schwarz, Antologia poética da Guiné-Bissau, Editorial Inquérito, 1990.

[5] Figura  de  « O Conde de Monte Cristo », de Alexandre Dumas.

[6] Em crioulo : « Si garandi di kassa ta tchámi, fidjos tudo ta nórnori » - « Fléma di corçom », J. C. Schwarz.

[7] Zé Manel Fortes, « Tchiko Té».

[8] Só que o público do « Juju » aguarda com (im) paciência a (re) edição do título « Djom-Djom bá luta » !

[9] Para uma visita virtual do cimitério e da tumba do James Douglas Morrison : www.pere-lachaise.com

[10] Responsável dos Arquivos e Identificação da Segurança, quando o Luís foi preso em Bissau os seus afazeres foram postos sob a minha responsabilidade. Foi aí que descobri uma das mais belas prosas, esta de que falo, dedicada ao músico e poeta que fora a enterrar.


TESTEMUNHOS DE UMA CONVIVÊNCIA

Por: Norberto Tavares de Carvalho, « O Cote »

Genève, 6 de Dezembro de 2006

Existem pelo menos duas possibilidades de definição do período aproximado da chegada à Guiné do avô paterno do José Carlos Schwarz. A primeira, estaria ligada à cronologia presencial de famílias de origem alemã que se instalaram no nosso país actual. O arquivo Histórico do Ultramar, por exemplo, situa a chegada da família Schacht (Otto Schacht), no século XIX ou seja nos anos 1800.

A instalação na Guiné Portuguêsa, do avô do José Carlos poderia também se situar mais ou menos nesse periodo.

A segunda hipótese estaria relacionada com o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que levou a ruína, a fome e as doenças à Alemanha. Muitos cidadãos resolveram abandonar esse país. Poderia ser neste segundo contingente que um tal Schwarz desembarcou na Guiné. Mas é possível ainda que hajam outros cenários …

Naquela época, sendo Bolama a capital, era aí que se concentrava a maior parte da camada estrangeira. Instalado na Guiné, o exilado alemão teve pelo menos um filho a quem deu o nome de Carlos Schwarz. Este, por sua vez, viria a constituir família. O José Carlos nasceu em Bissau num dia como hoje: 6 de Dezembro de 1949, da união do Senhor Carlos Schwarz e da Dona Fidjinha (Nha Fidjinha), de origem caboverdeana…

Eis o resumo do que consegui na preparação deste pequeno memorial dedicado ao  aniversário natalício do saudoso José Carlos.

Logo que o seu filho atingiu a idade escolar, o Senhor Carlos Schwarz, tratou de o pôr na escola.. Assim, o José Carlos fez os seus «  (…) estudos primários na sua terra e secundários em Dakar, Mindelo e Lisboa (…) » [1]

Segundo um dos seus próximos, o José Carlos interessou-se cedo pela leitura. A revista « Readers Digest » era distribuída em Bissau e pensa-se que foi através dela que o jovem centro-urbanista deu os seus primeiros passos na literatura. Chegou também a se inspirar no « Magazine » brasileiro, « Ele e Ela », uma espécie de revista « Play Boy » que divulgava certas tendências do gênero masculino e feminino.

Em meados dos anos 60, o irmão mais velho do José Carlos, o « Tony » Schwarz instalou-se em Dakar, no Senegal. José Carlos viveu um certo período (1965-1967 ?), sob os seus cuidados.

O « Tony » estava empregado na Perissac, Oficina Peugeot. Inscreveu o seu irmãozinho no curso de francês da Aliança Francesa, (ou numa escola similar). O « Tony » Schwarz tinha em Dakar uma posição social relativamente estável  e cedo o José Carlos viria a provar as alegrias das noites quentes da capital senegalesa.

Nas discotecas, a salsa cubana estava em voga e Laba Sosseh era o seu mais fiel porta-voz.

Dakar, a sua sociedade, a sua cultura e as suas múltiplas perspectivas, ali bem pertinho de Bissau, era uma outra realidade, um outro universo, uma metrópole africana que não escapara à atenção do jovem prodígio.

De regresso a Bissau, José Carlos não resistiria a frequentar as festas organizadas no Cupelom de Baixo, por um certo Benjamin de Almeida, comerciante (Djila) que fazia o seu negócio entre Bissau e Dakar e que era um próximo conhecido do « Tony » Schwarz. Esse Benjamin seria originário de Gêba misturado com o wolof. Indivíduo selecto, distinguia-se pelo seu fato aberto sem gravata e seu chapéu de palha. No meio da festa, o Benjamin mandava « abrir o campo » para deixar o jovem salseiro exibir os seus dotes de dançarino.

José Carlos então, com aprumo, sapatos de couro de « bicos compridos », tomava lugar no meio da sala e ao ritmo das músicas afro-cubanas, com entre-pernas e outras reviravoltas, dava um verdadeiro espectáculo no meio de intermináveis aplausos. Nos dias seguintes, nas ruas da Santa-Luzia onde morava com os seus pais, era de novo um verdadeiro cavaleiro que se via no dorso do « Gaúcho », seu cavalo, com uma corja de crianças atrás dele. Aí nasceria o primeiro mito do « José Cabalo ».

Um encontro fortuito, ou o retomar de uma velha amizade, liga o José Carlos ao Duco Castro Fernandes. O irmão deste, o Zeca, do mesmo apelido, dava noites musicais de gala no « Chez Toi », um dos primeiros « Night Club » de Bissau. Zeca era já considerado um bom guitarista. Duco aprende com o  irmão os segredos da viola e transmite-os ao seu fiel companheiro que se aplica na técnica da utilização do instrumento com uma relevada paixão. Este exercício daria nascimento ao grupo recreativo « Roda  Livre » e  ao conjunto musical « Sweet Fanda ».

Mas a vida não era só a alegria dos momentos de confraternização ou o carinho do lar familiar. Com a idade, novos desafios se lhe apresentaram.

Em 1968, foi destacado para a Guiné um novo Governador, na pessoa do Brigadeiro António Sebastião Ribeiro de Spínola, que substituiu no cargo o Senhor Arnaldo Schultz. Spínola lançou então a politica da « Guiné melhor » à volta da Acção Nacional Popular. Na altura, alguns emigrantes guineenses, residentes no Senegal, reunidos à volta da Frente de Libertação Nacional da Guiné (FLING), estabeleciam contactos pontuais com o então Governo Colonial Português.

As cabeças pensantes mais conhecidas naquele tempo em Dakar eram os Senhores Benjamin Pinto Bull, Jonas Fernandes, François Cancola, etc. O « Tony » Schwarz, que  nunca escondera a sua hostilidade para com o PAIGC, pelo seu líder Amilcar Cabral e pelo seu programa da unidade entre a Guiné e as Ilhas do Cabo-Verde, (não se trata aqui de um julgamento, o « Tony » tinha de certeza argumentos para tal) embora mantivesse uma certa discrição à volta dos debates políticos daquela era, teria exercido uma certa influência nesse sentido sobre o seu irmão cadete. Não se trata aqui duma afirmação absoluta …

Entretanto, também  regressa a Bissau o Everimundo José da Silva, filho do « Nhu Musante », do bairro do Chão do Papel.. Jovem instruído, Everimundo tinha fugido de Bissau indo reunir-se aos combatentes do PAIGC em Conacri. Daí teria beneficiado de uma bolsa de estudos para um dos países do ex-Leste (Bulgária, Alemanha ?). Algum tempo depois, teria abandonado os estudos passando à RFA (República Federal da Alemanha). Sem a autorização de estadia na RFA, vivendo numa perfeita clandestinidade, Everimundo teria sido controlado numa distoteca, pela polícia alemã e recambiado para Portugal onde teria sido entregue à Pide/Dgs.

 A organização secreta do então Governo Colonial Português tê-lo-ia metido na prisão, interrogado, torturado, e, de novo, recambiado para a Guiné. Em Bissau, Everimundo teria sido imediatamente integrado na Acção Nacional Popular. Não se sabe exactamente quando é que se conheceram com o José Carlos Schwarz. Mais adiante poderão perceber a razão porque o caso do Everimundo José da Silva é citado nestas linhas.

Por volta de 1969, cerca de um ano depois da chegada à Guiné do Governador António de Spínola, um grupo de « deputados » da Acção Nacional Popular (ANP) parte para uma visita a Portugal no quadro do programa « Por uma Guiné Melhor », pronmovido pelo Brigadeiro. O Governo Colonial Português, na sua propaganda anti-nacionalista, deu uma grande cobertura à visita. No filme realizado, via-se o José Carlos Schwarz no meio da delegação da ANP na Fábrica de Explosivos e Munições « Braço de Prata »,  região de Lisboa.

Paradoxalmente, graças à essa mesma visita, o jovem de vinte anos na altura, iria ser confrontado com as suas próprias responsabilidades no contexto político-colonial. Este exercício identitário, inteiramente pessoal e profundamente interior deve-se ao seu encontro, em Lisboa, com um certo Filinto de Barros, « De-Gaulle ». Isto toda a gente sabe pelo que não constitui segredo nenhum.  José Carlos teria recebido do « De Gaulle » os primeiros ensinamentos do nacionalismo africano, com exemplos da particularidade guineense.

O seu interlocutor, que na altura era estudante em Lisboa, conseguira convencer o José Carlos de que, o seu papel não era ao lado do poder colonial. O encontro de Lisboa, com o Filinto de Barros constituiria o despertar de consciência do jovem « pequeno burguês ».

Quando o filme da visita a Portugal foi difundido na Guiné, no programa « Por uma Guiné Melhor », um dos actores do filme já não era o mesmo. O feitiço virara-se contra o feiticeiro.

O Everimundo José da Silva não teve a mesma chance de se cruzar com um Filinto de Barros. Foi precipitadamente executado logo depois do 25 de Abril de 1974. Oficialmente, o PAIGC ainda se encontrava em Conacri e nas regiões libertadas mas a sua ponta-de-lança já operava em Bissau…

De « Readers-Digest » e « Ele e Ela », o nosso herói passou a se interessar por outros tipos de literatura. Em Bissau, a Pide/DGS controlava de uma certa maneira a circulação de revistas subsersivas. A « Vida Mundial » que dava valiosas informações de política internacional,  não fazia parte da restrição. José Carlos fez dela a sua nova leitura de cabeceira.

Depois do Duco Castro Fernandes e do Filinto de Barros, um terceiro encontro, também decisivo, iria marcar uma nova reviravolta na evolução política e cultural do jovem rebelde, afinando ainda mais a sua definitiva opção. Seu nome: Aliu Barry.

À priori músico tradicional, Aliu evoluíra do seu lado, entre os dois Cupeluns. Exprimia-se perfeitamente com a viola ao contacto dos seus exímios dedos de ritmista. Uma grande amizade os reuniria e estaria na base da fundação de um dos primeiros conjuntos « modernos » de música crioula guineense, o « Cobiana Jazz ».

« Cobiana » instalar-se-ia na cena musical guineense fazendo leal concorrência  à « Juventude 71» que já se implantara sobretudo no meio estudantil (de passagem, uma homenagem ao saudoso César Augusto Lopes, ex-lead vocal do grupo, que morreu em Lisboa há alguns meses atrás). Naquela época o Ernesto Dabó, evoluia nos « Náuticos », e o Sidónio Pais Quaresma, « Sidó », preparava-se para encapotar as suas « Capas Negras » (uma outra homenagem ao Daniel Cassamá, segundo líder vocal do grupo, também desaparecido prematuramente em Bissau). Eis os conjuntos que constituiam as mais ambiciosas perspectivas musicais daquele glorioso periodo juvenil.

« Cobiana Jazz » entretanto, propagava na sociedade guineense uma mensagem que ia directamente ao encontro das massas populares, conquistando assim uma boa parte da juventude urbana que passou a ter a possibilidade de pensar e de agir a partir da definição de uma nova base contextual.

O fenómeno « Cobiana Jazz » releva também o que o Amilcar Cabral postulava a propósito das revoluções, a saber que só a pequena burguesia tinha a capacidade de as conduzir. Quanto à tese de Cabral relativo ao « suicídio » desta classe após a revolução, isso já pertence a um outro capítulo…

Sociologicamente falando, o José Carlos Schwarz era o único elemento da pseudo-burguesia, presente no grupo. Esta constatação não afasta em nada os outros valores do grupo, é simplesmente uma questâo de referência ideológica, cuja evolução, como referi anteriormente, pode ser dicutível.

Com o « Cobiana Jazz », o José Carlos Shwarz, o Aliu Barry e as suas retaguardas musicais, entram de rompante no conflito colonial, mudando forçosa e radicalmente uma parte dos peões avançados pelo Spínola, que constituiam, em grande parte, os alicerces da nova política colonial de alienação e submissão da juventude e da massa popular.

Confiantes nas suas acções mobilizadoras, os dois líderes resolvem participar, de maneira frontal, nas actividades da « Zona Zêro », a principal antena do PAIGC em Bissau, dirigida pelo Senhor Rafael Barbosa. No auge das suas actividades contra o Governo Colonial, José Carlos e Aliu Barry decidiram colocar uma bomba na própria delegação da Pide/Dgs em Bissau. Partiram de motorizada que deixaram banalizada nos arredores, atravessaram o portão principal e foram depositar o engenho na porta de grelhas, envidraçada do lado de dentro. Tratava-se de um potente explosivo de comando por relógio. Uma bomba-relógio !

Seguiu-se depois uma violenta explosão que fez voar em pedaços as grelhas e os vidros da porta da Pide/Dgs. José Carlos e Aliu tinham ousado desafiar o inimigo numa das suas mais protegidas fortalezas.  A fama do « Cobiana Jazz » percorrera praticamente toda a Guiné. José Carlos que entretanto fora chamado à tropa, bem como o Aliu Barry, viu-se afectado como condutor de camião em Fá Mandinga onde os Comandos Africanos recebiam preparação. Poucos meses depois seria o José Carlos convocado a Bissau onde receberia a ordem de prisão da Pide/Dgs. Aliu Barry teria a mesma sorte.

Deportados para a Colónia Penal da Ilha das Galinhas, Aliu cumpriu aí a sua sentença: dois anos. José Carlos só passou três meses na Ilha, tendo sido retornado ao Pavilhão de isolamento da Segunda Esquadra em Bissau para aí concluir o resto da sua pena fixada em três anos. Esta dupla sanção dever-se-ia aos seus presumíveis contactos com a população da Ilha das Galinhas ou ao facto de que, entretanto, a Pide/Dgs teria descoberto outros casos em que estaria implicado e o teria reconvocado a Bissau. José Carlos defendia a segunda hipótese. Mas o afecto que dedicava aos Bijagós que constituíam a população da Ilha das Galinhas, era eloquente. Aliás, chegou a reivindicar essa paixão no seu famoso «Djiu di Galinha».[2].

Foi quando a Pide/Dgs o transferiu da Ilha das Galinhas para Bissau, que o conheci de perto. Pois em Novembro de 1972, na sequência de uma greve de estudantes, precedida de manifestação no Palácio do Governo, tinha sido detido pela Pide/Dgs, por ordem do General Spínola. Ocupei momentaneamente a cela n° 12 do Pavilhão de isolamento. O José Carlos encontrava-se na cela n° 16, a última do corredor. Quando lhe expliquei que fazia parte de um grupo de estudantes que fora reivindincar um tratamento mais condigno no plano dos estudos, entusiasmou-se tanto que pronunciou a frase : « É o segundo Pindjiquiti ! ».

Fui libertado algumas horas mais tarde em troca duma advertência pronunciada pelo Inspector Adjunto da Pide/Dgs, o Senhor Raimundo Alas, que não tinha matéria suficiente para me prender: Não é porque o vizinho quer aumentar o seu terreno que vai  estendê-lo sobre as margens do outro vizinho.» Confesso que até hoje, não percebi o sentido desta frase.

A sentença caiu sobre mim em Maio de 1973. Quando me empurraram na cela n° 6 e fecharam a porta, senti umas batidas na parede, lembrei-me logo da técnica e respondi batendo na mesma. Uma voz vinda do fundo do corredor inquiriu: « Quem é ? » O José Carlos Schwarz encontrava-se ainda na mesma cela de há seis meses atrás !

Estivemos juntos, eu na minha cela e ele na sua, durante cerca de quatro meses. Falamos de tudo e .. de nada. Fiquei desiludido ao saber que, afinal, havia traição na « Zona Zêro ».

Nas nossas conversas, contei-lhe uma cena relacionada com a peregrinação da minha mãe a Fátima, em Portugal, cerca de um mês antes de eu ter sido preso. A história  divertia-o imenso.

Em Lisboa, a minha mãe tinha sido abordada por uns estudantes com os quais me encontrava ligado. À cabeça do grupo estava o seu neto, o João Nelson Sá Nogueira, “Nuno Quipa”, na altura estudante de Geologia. Disfarçaram na  bagagem da minha mãe uma série de livros e revistas subversivas.

Quando a minha mãe regressou a Bissau, chamou-me e ordenou-me que abrisse a sua mala. Pequei nos livros, e enquanto ela vociferava que não me queria ver naquelas relações, eu já tinha ido para o meu quarto maravilhar-me com « A Mãe » de Máximo Gorki, « O Diário do ‘Che’ na Bolívia », … « Portugal e o Futuro » !, do Spínola, etc., etc.

Mas o que o José Carlos parecia preferir e me pedia para repetir, era uma história bastante engraçada ligada a uma menina que me denunciara aos meus pais dizendo que lhe tinha pedido namoro, o que me tinha envergonhado sobremaneira porque se tratava de uma prima minha. Cada vez que lhe contava este espisódio, ele ria-se como se fosse a primeira vez que ouvia a história. A vergonha, diria ele mais tarde numa das suas intervenções fazendo referência a um alto dirigente do PAIGC, é pior do que a morte. Mas isso nada tem a ver com a minha banal história.

Iniciou-me às regras do Pavilhão. Fiquei surpreendido ao saber que a Pide/Dgs colocara em toda a extensão do corredor, um sistema de escuta que lhe permitia controlar as conversas dos prisioneiros através duma central.

Para evitar eventuais salamalécos, cada prisioneiro tinha um nome de código ou era identificado por um assobio. O José Carlos era nato no exercício. A sua identificação inicial era « Djiu », depois passou a ser « Sidi ». A mim baptizou-me « N’barrim » (irmãozinho no dialecto mandinga). Havia o « Belankufa », o « Canhuto », o  « Zarra » e variadíssimas outras versões que se competiam no Pavilhão.

« Djiu » defendia a tese de que antes de ir para a luta armada ou de efectuar acções de guerrilha urbana, os jovens deveriam antes passar pela prisão da Pide/Dgs, provar o castigo, a vida dura, etc. Ele mesmo, preferia que o retornasem à Ilha das Galinhas no lugar de ser libertado. Para ele o castigo era algo de pedagógico que contribuia para a maturidade.

Perdido nos seus argumentos, postulava para mim a deportação para a Ilhas das Galinhas o que naturalmente me dava cabo dos nervos recusando prosseguir a conversa com ele. Fértil em ideias, instaurou no Pavilhão uma escala hiérárquica que consistia em dispensar o merecido respeito aos condenados de três anos, depois aos de dois anos, de um ano, meses, etc. Assim, o recém-chegado era básico na pirámide. Ele era « Comandante », pois tinha a pena máxima (3 anos) assim como o Biéne Na Bion, um guerrilheiro que conhecera na Ilha das Galinhas, que tinha sido libertado meses antes e que fora de novo capturado pelo exército português, condenado desta vez a três anos de prisão.

José Carlos não parava de criticar o guerrilheiro, acusando-o de negligência, de falta de rigor,  disto e daquilo. Dizia-lhe assim, « Desta vez vão matar-te ». Mas um dia, quando o seu colega « Comandante », apareceu no corredor depois de um intenso interrogatório, com as nádegas completamente inchadas de tanta palmatória levada, lá estava o « Djiu », em primeira linha, a consolar e a animar o combatente. Meses mais tarde, quando lhe comuniquei que ia ser deportado para os trabalhos forçados na Colónia Penal, por três anos disse-me: « Agora sim, temos a mesma patente ! » Eu que nunca levara aquilo a sério, comecei a me interrogar se o tempo que passara no isolamento não o teria afectado o juízo, pois fiquei com o sentimento de que tinha posto muita convicção na sua frase de despedida.

José Carlos era o «condomínio» do Pavilhão. Conseguira a autorização de ser o último a ir tomar banho e fazer os seus « toilettes » e, o que apreciava muito, passar o pano no corredor e limpar a casa de banho. Deixavam-no sózinho «passear» no corredor cerca de 15 minutos, o tempo suficiente para ir falar com outros prisioneiros e oferecer-nos frutas e outras guloseimas que recebia de casa.

Durante esse periodo « convivial » tive o grande privilégio de ser um dos primeiros « padrinhos » das belas e salientes canções que o José Carlos compôs durante o seu cativeiro. « Minino de criaçon », « Muscuta », « Quê qui minino na tchôra », « Djénabu », « N’djanga » e toda a série que se lhes seguiu. Realizávamos até sessões de discos pedidos: eu animava e ele cantava.

Um dia, os guardas vieram buscar-me e fui transferido para a cela n° 7, do outro lado do Pavilhão. Deviamos estar nos meses de Setembro ou de Outubro de 1973. (A margem de erro é possível.)

Conduziram-me ao pátio do Pavilhão onde me fizeram esperar alguns minutos. Cerca de pelo menos três metros do lugar onde me encontrava, jazia um corpo quase inerte em cujas narinas se notavam ainda vestígios de sangue coagulado. Fiquei estupefacto. Mas tive tempo de notar que o indivíduo aí estendido era dotado de uma certa corpulência. De tez negra, relativamente esbranqueada, tronco nú, o homem aparentava um cansaço extremo evidente.

Da minha nova cela, transmiti imediatamente a imagem que gravara na mente. Ninguém conseguiu identificar de imediato o prisioneiro.  Alguns dias depois, o « Belankufa»  (Duarte Cabral) anunciva ao Pavilhão a morte do … Domingos Badinca, um dos responsáveis da rede clandestina do PAIGC de Bolama.

José Carlos, antes de ser preso, fascinara-se com a leitura de « Os condenados da terra », de Franz Fanon que circulava no meio da camada intelectual daquele tempo em Bissau, como o Jorge Ampa Cumelerbo, o Fernando Delfim da Silva, « Djumbo », o Adalberto (o seu apelido escapa-me) o Idrissa Djalló, etc. teria sido o Mumini Embaló quem fornecera um exmplar da obra de Franz Fanon ao José Carlos.  A figura principal da investida do escritor antilhês contra o racismo e a miséria, inspirou o nome do Naman, seu primeiro filho da união com a Teresa Loff Fernandes que teria conhecido em Lisboa.  De origem cabo-verdiana e  nascida no Senegal, a Teresa era também de ascendência alemã.

Alegre e simpática, a mulher do José Carlos tomava parte activa nas actividades clandestinas da « Zona Zêro ».

Fã incontestável de Kanté Manfila, o José Carlos admirava a proeza técnica do congolês Franco, as fecundas melodias do Balla e dos seus « Balladins » e a excelência do Kélétigui Traoré, que tinha a magnificiência de combinar nos seus arranjos musicais, o moderno e o tradicional.

José Carlos Schwarz foi libertado em Bissau logo depois do 25 de Abril e foi convidado a pronunciar um discurso que foi difundido na rádio. Antes de ser preso, fizera este sermão: « Juro-vos, que por mais que o pau possa permanecer no mar, nunca se transformará em crocodilo ! », o que traduzido em linguagem comum significa que tarde ou cedo assistir-se-ia ao fim da opressão colonial. [3] E aí estava ele de novo, numa comunhão perfeita com o seu « público »,  a confirmar a sua ousada profecia.

Da Ilha das Galinhas, ouvi o discurso que  iniciou dizendo: « Irmãos ! », numa voz terna e carregada de emoção. O Feiticeiro transformara-se em Profeta.

Três anos antes do emblemático 25 de Abril, mais precisamente na madrugada do dia 3 de Julho de 1971, uma figura mítica sucumbia em Paris. Também nascera em Dezembro, tinha apenas 27 anos e a sua voz, como a do José Carlos,  provinha  do Zodíaco. Mas esta já é uma história...

Enfim, existem dores neste mundo, que nem o tempo consegue cicatrizar.


 João Ortet

21.05.2007

Uma justa homenagem ao homem e músico da Guiné Bissau que muito me marcou e que deixou muitas coisas boas para nós todos e principalmente para a Guiné Bissau.Zé Carlos para sempre.


Gladstonegermano

21.05.2007

Os meus parabéns amigo Didinho por trazer e reavivar as recordações e memórias do mais rico e prolífero compositor de intervenção política no combate comum contra o colonialismo e o nazi-fascismo português levado a cabo com sucesso pelos cabo-verdianos e guineenses.

José Carlos, filho do cidadão alemão Hans Schwartz e uma senhora guineense, fundou o Cobiana Jazz-1º.grupo musical da Guiné-Bissau, que só executava música composta pelos elementos do Grupo, principalmente pelo Zé Carlos. O Grupo chamou-se Cobiana para sublinhar a sua posição pró-independentista visto que Cobiana era uma das maiores bases militares das FARP-Norte da Guiné Bissau, onde os colonialistas portugueses sempre sofreram pesadas perdas. Em 1973 todos os elementos do grupo foram presos acusados de pertencerem ao PAIGC, de atentados bombistas em Bissau e de subversão da juventude estudantil. Soltos logo nos primeiros dias de Maio 1974,começaram logo com os concertos quase diários nos comícios pró-PAIGC que fazíamos em Bissau com vista Á MAIOR MOBILIZAÇÃO possível de cidadãos que queriam a Independência imediata e não a Federação Spinolista com Portugal, pretendida pelo representante do Spinola, em Bissau, o Tenente Coronel Carlos Fabião, que foi reduzido à sua insignificância, dado que passamos a tratar directamente com o Ten.Judas e outros oficiais portugueses do MFA que queriam a Independência imediata de todas as colónias e o reconhecimento imediato da Rep.da Guiné Bissau (objectivo atingido em 12.Setembro.1974).

Logo após a chegada dos Camaradas do Mato começaram os choques ideológicos e conflitos entre os Camaradas vindos do Mato e os da clandestinidade das cidades considerados camaradas de 2ª.classe.

Zé Carlos estava, como tantos outros, entre estes últimos. Ainda por cima começou a compor música de crítica social e política visando os que tinham vindo da luta armada. Como o lugar de Director-Geral não calou o seu espírito cabralista e rebelde foi quase obrigado a aceitar o cargo em Cuba. Infelizmente, morreu num acidente ao aterrar em Havana em Maio de 1977,quando um avião da Aeroflot com 110 passageiros a bordo foi atingido por um raio ao aterrar em Havana-Cuba debaixo de forte temporal.

Uma coisa é verdade, se o Zé estivesse em Bissau, no golpe de 1980 certamente teria sido morto, porque o Nino Vieira não podia com ele. Aliás a morte do Zé Carlos, como é sabido por todos, foi um alivio para a maior parte da classe política guineense e cabo-verdiana, que conforme a velha cartilha de Estaline sempre calou os opositores e críticos com os pelotões de fuzilamento e/ou medidas administrativas de privação de emprego, pressões sociais insustentáveis obrigando indirectamente os visados a emigrarem (caso de Cabo Verde na década de 70/80). VIVA a memória de JOSÉ CARLOS e parabéns a todos que cívica e saudosamente o recordam. BEM HAJAM.

Com um abraço de Miguel Pedras.


Alberto Dença (Aldença)

22.05.2007

José Carlos Schwarz

A voz que cultiva verdes pântanos,

A voz que incita ao juízo da razão,

Que inspira a consciência "di Guinendadi"

Ainda mesquinha, ainda tímida,

Ainda... por afirmar gritantemente por esses horizontes...

Foi melodias essas melancolicamente erguidas nessa voz

Ainda "Rapasinhus ku Badjudasinhus" –

Já "Omis ku Mindjeris di barkafons ku kufus" das sementes de “Guinendadi”

Que iam plantando em cada rio, em cada bolanha

Ora vinda de longe – “na kolonia”- trazia a mítica vontade de viver, de vencer o destino – “si bo na pensa kuma no muri dja, no ka muri inda, …um dia no tem di riba…”-

Ora indo de cá – “djiu di galinha” – mantenhas eram pra la

Destino desses ainda "Rapasinhus ku Badjudasinhus" - ja "Omis ku Mindjeris" “sumiadoris” da “Guinendadi”

- “suma ku piskaduris ta pêra maré, assim tambe ku n ta pêra dia dia riba”-

Dias esses que acabavam mesmo por chegar e partir sem nos apercebermo-nos

A voz que incita ao juízo da razão,

Que inspira a consciência “di Guinendadi”

Ainda por afirmar sei lá quando…

Não será hoje?

Alberto Dença

In Fórum Cultural “Crescente Verde”


 Máximo Tenha Tchuda

22.05.2007

Olá Didinho como guineense que sou venho assim juntar a minha voz com aqueles que sentem o  vazio na nossa cultura que empobreceu com o desaparecimento do célebre musico guineense José Carlos Schwarz que não só deu alegria aos guineenses mas ao mundo. Educou, orientou, motivou e combateu com coragem contra a ocupação colonial no nosso país. Ele era mais combatente do que músico. A mensagem de José circulou por todo o mundo. Foi o artista guineense que mais cativou o mundo!   Apesar de não ser da sua época, vi, li e ouvi a história do Schwarz . Quero assim prestar a minha homenagem desse triste dia à família, aos seus próximos e à cultura guineense. 


Danar Bangura
22.05.2007

NA NEGA BEDJO!
Isto demonstra o carácter do homem que foi este histórico, amigo do seu povo e da sua terra.
Este era o homem ideal nos seus princípios, amava a sua terra, ninguém o vergava na sua forma de pensar.
Este é o exemplo que muitos de nós deve seguir, não havia dinheiro que valesse mais do que a sua PÁTRIA.
Cantou e desencantou cantando a sua terra.
Devemos seguir os passos históricos deste grande músico!
As sua mensagens valem muito na fase em que atravessamos, na sensibilização e na educação das novas gerações e como exemplo do Patriotismo.
Não restam dúvidas: Homens como este já não se fazem!
Força e um abraço


 Dulce Borges

22.05.2007

Puxa! que recordações me trouxeram os textos extraordinariamente claros e tão próximos, do Kôte! Obrigada Didinho!

Lembro-me de ter tido conhecimento em casa na intimidade da minha família, de tudo o que ele descreve de modo tão lúcido e ao mesmo tempo tão emocionante..

Minha memória recente do José Carlos tem mais de pessoal, de conversas veladas com amigos dele. Conheci-o quando era uma criança irrequieta e curiosa - meus pais eram amigos dos pais dele; nós morávamos no Bissau Velho perto da Amura e um dos passeios de domingo era ir visitar esses amigos em Santa Luzia... gente muito fina de quem guardo lembranças indeléveis, como de muitas outras pessoas e coisas de minha infância em Bissau.

Lembro-me, muito mais tarde, já depois de adultos eu sentindo-me sempre muito ligada a ele, mesmo sem convivermos, de minha surpresa e certa vaidade quando descobri que fazíamos anos no mesmo dia e que esse ícone de talento e génio - guineense! por uma vez!! - o José Carlos! me era ainda mais próximo. Minha admiração por ele se misturou com profunda afeição e respeito. O lado humano dele, a generosidade, a entrega, visíveis no olhar tão bonito e expressivo - que as fotos das capas dos LPs souberam captar tão bem - calaram sempre fundo no que eu era, no que eu vivia, na minha relação com os outros e com amigos dele. Penso que meus momentos mais difíceis a nível pessoal, ainda antes da independência, coincidiram com os momentos mais difíceis mas ao mesmo tempo mais gloriosos, do José Carlos em Bissau.

Bem mais tarde conheci a Teresa já viúva, em casa das amigas Rocha. Meu embaraço face a essa mulher para quem ele havia composto e cantado uma das mais tristes e belas canções de amor que jamais ouvi, provocou uma certa inibição em mim da qual me arrependo até hoje..  Tenho três LPs dele os que aparecem no texto do Kôte e o outro que ele gravou com a Miriam Makeba. Nem eu nem os meus filhos nos cansamos de os ouvir.  

José Carlos preencheu-nos com inteligência, sensibilidade e imensa graça, mesmo os que como eu não viveram esses períodos conturbados da mesma forma.

Um beijo para ti por me dares a ocasião de rever e reler os jovens que fizeram e ilustraram tão bem essa geração, a do José Carlos.

Minha homenagem vai para eles também, com profunda saudade.

Dulce


Maria Teresa Loff Fernandes

nouchaly@hotmail.com

23.05.2007

Não fiquei surpreendida ao ler o artigo sobre Zé Carlos. Ele continua a ser relembrado mesmo depois de se terem passado 30 anos após a sua morte. Gostaria de esclarecer que, segundo a versão oficial, o avião em que ele seguia atingiu um cabo no momento da aterragem. Eram 9h da manhã do dia 27 de Maio de 1977. O sol brilhava, não chovia . O voo vinha com 66 passageiros. Só houve uma sobrevivente mas até hoje se ignora se continua viva ou não. Foi lançado um documentário sobre a vida do Zé que a TCV vai passar no dia 27 de Maio em homenagem ao Zé Carlos. Zé Carlos não teve a oportunidade de presenciar a edição de suas obras, mas o melhor que pode acontecer a um criador é ver a sua obra reconhecida pelos seus, por aqueles que lhes eram próximos e dar a oportunidade aos mais jovens de conhecer um artista que soube combinar harmoniosamente poesia e música numa arma que desperta a consciência de cada um. Um abraço forte ao Didinho da parte da Teresa, viúva do Zé Carlos.


Nené-Tute

25.05.2007

Querido Didinho

O teu convite, foi um desafio...daqueles que não deixa indiferente nenhum daqueles que amam a Guiné-Bissau e continuam a alimentar "teimosamente" um sonho que se torna cada vez mais difícil de vislumbrar no horizonte:

- Uma Guiné para os Guineenses onde abunde a Paz, a Justiça o Progresso, a Unidade... valores para os quais muitos deram a vida e continuam a dar dia-a-dia das mais diversas formas e nas mais variadas “frentes” de combate.

Dizia, que o teu convite é irresistível, por isso, uno-me a muitos outros como uma ínfima voz para dizer um Djarama  à medida do coração do povo da Guiné-Bissau ao nosso saudoso irmão José Carlos.

Sou muito nova e filha do período do pós independência da nossa querida Guiné-Bissau, por isso não conheci José Carlos… tudo o que sei dele e que aprecio bastante, é fruto da leitura e reflexão das suas músicas/poemas e escuta dos testemunhos (a nossa riqueza = tradição oral).

Sempre admirei muito José Carlos… uma das vozes sonantes da música guineense. Há todo um programa fundamentado de educação e de vida nas suas músicas… nos seus poemas… que os nossos governantes podiam aproveitar para o enriquecimento da nossa literatura… para um enquadramento nos programas de Português e das artes…afinal, é nossa cultura que aí é retratada… se não valorizamos o que é nosso quem o valorizará?

Pensando em José Carlos, lendo-o e escutando-o, sinto-me rejuvenescida e profundamente orgulhosa de ser guineense, porque Guiné tem filhos:

Creio firmemente que a Guiné, tem novos “José Carlos”… É preciso dar-lhes espaço e condições para que sejam aproveitados para o bem do nosso povo e de todo o mundo, esta aldeia global da qual fazemos parte.

Um bem-haja ao José Carlos e a todos os guineenses anónimos que, com o seu trabalho e esforço, vão dando nome à nossa Guiné!!!

José Carlos, és um herói!

José Carlos, és nosso modelo!

José Carlos abó i «nô spidju»!!!

José Carlos, a Guiné-Bissau orgulha-se de te ter como filho!


Victor Gomes Pereira

Texto de apresentação do CD - José Carlos Schwarz "Udjus ke odja"

Depois de uma heróica luta contra o colonialismo português nas fileiras da clandestinidade do PAIGC, a figura de José Carlos Schwarz tornou-se ainda mais conhecida pela sua dimensão de pioneiro na criação musical, como poeta, compositor e cantor. O que o viria a tornar, aliás, por causa da marca indelével que a sua obra imprimiu na música moderna guineense, a sua verdadeira alma.

Num período de 15 anos, este jovem oriundo da sociedade bissauína, desde muito cedo começou a revelar os seus talentos artísticos a solo, para o que uma inigualável evolução viria a influenciar de modo decisivo a juventude guineense. O jovem músico começaria com um espírito aberto a integrar vários grupos com tendências da música pop/rock e rithm & blues, com uma acentuada influência nas raízes da música afro-americana, não sem antes, se aperceber de um verdadeiro processo de revalorização por que tinha que passar a música guineense. Com esta tomada de consciência, J. C. H. Schwarz fundou, juntamente com alguns músicos um ou dois grupos experimentais, mas sem sombra de dúvidas, será a orquestra Cobiana Djazz, aquela que viria a tornar-se um marco mítico na história da cultura e da música contemporânea guineense.

A temática explorada por José Carlos, era essencialmente de cariz intervencionista, o que aliás explica, apesar de todas as vicissitudes, a sua actualidade. Quer seja o amor, a mulher, a criança, ou a postura da liderança política, todas estas situações, eram alvo de atenção crítica dos poemas deste talentoso músico revolucionário, que infelizmente nos deixou ainda na flor da idade. Em termos discográficos, este artista deixou-nos com um legado de 3 álbuns (José Carlos et le Cobiana Djazz - Vol. 1 e 2, Djiu di Galinha), que apenas foram editados após a sua morte ocorrida a 27 de Maio de 1977, quando ainda tinha 27 anos, deixando esposa e dois filhos menores.

O saudoso malogrado, não só, ainda é relembrado com muita emoção por todos aqueles que tiveram a felicidade de o conhecer, e que com ele partilharam momentos inesquecíveis e ímpares da cultura, como também por todos aqueles que se deliciaram e foram fortemente influenciados pela sua obra.

A dinâmica que impregna a obra de José Carlos Hans Schwarz, não deve e não pode ser ignorada, porquanto, se ao povo reconhece-se o direito de o conhecer, acrescidamente os que com ele partilharam momentos inesquecíveis, deve-se-lhe a homenagem da memória e ao Estado guineense, que tanto lhe deve a sua construção, existe a inquestionável obrigação da promoção da sua obra.


Waldir Araújo

Texto de apresentação do CD - José Carlos Schwarz "Boca ke Papia"

Caro Zé Carlos,

Sei que, onde quer que estejas, estarás com o mesmo espírito da ideia com que fiquei do que foi a tua vida. Um espírito aberto e alegre, mas intranquilo.

Uma vida curta e energicamente dedicada a dar voz aos que não tinham força para falar mais alto. Aposto que, estejas onde estiveres, estarás com a tua guitarra e a tua voz a intervir.

A intervir a favor de uma causa qualquer. A favor de uma nobre causa qualquer. Não te conheci e, portanto, não fazes ideia de quem tem a ousadia de dirigir-te esta humilde carta. Mas eu explico. Nasci a 27 de Maio de 1977, em Bissau. Sim, naquele dia tristemente fatídico em que partiste de uma forma inesperadamente brutal. Naquele dia em que um acidente de aviação ceifou uma jovem vida que ainda tinha muito para dar à nossa Guiné e que muitas saudades deixou. Talvez por isso - e por muitas outras razões - os meus pais deram-me o teu nome: José Carlos. Cresci e explicaram-me que apesar de ser um nome comum, tinha um valioso significado porque era uma homenagem a uma pessoa invulgar. Quis saber então mais sobre o que foi a tua vida, o sentido das mensagens das tuas músicas, a tua coragem e tudo mais. E tudo isso ninguém me disse. Tudo isso encontrei nos velhos discos de vinil que o meu pai guardava religiosamente.

Nas tuas músicas descobri que cantaste a epopeia de uma gloriosa luta de libertação nacional. Que louvaste os nossos heróis e as suas bravuras.

Que condenaste como ninguém um colonialismo atroz e impiedoso. Mas também sei que quando chegou a aurora da independência, a tua voz não se calou. Não se calou perante qualquer atitude que consideravas contrária á razão de ser dessa luta. Pelo contrário, a tua voz subiu de tom para denunciar as injustiças.

O tempo foi passando e eu continuei a ouvir a tua música. Mas algo mudou. E o que mudou foi a forma como passei a entender as mensagens. É que elas não estão assim tão distante da realidade actual. Aliás, em certas situações, estão tão próximas do nosso tempo que custa a acreditar que foram escritas há tantos anos. As pessoas de que falas ainda estão entre nós. É verdade, Zé Carlos, acredita.

Noutro dia encontrei APILI. Sim, aquela mulher que esteve sempre junto do seu companheiro no mato durante a guerra. O mesmo homem que acabaria por abandoná-la mal chegara a independência, trocando-a por uma mulher mais jovem "KI SIBI ENTRA, KI SIBI SAI".

APILI está hoje uma mulher velha e cansada, mas não guarda rancor. Continua corajosa e batalhadora. Imagina, é ela o pilar de uma numerosa família da qual se orgulha e pela qual é capaz de dar a vida "PA CALÉRON KA FRIA". E o tal companheiro, o tal camarada que a abandonou, regressou. Hoje, caído em desgraça, é na casa de APILI que vai comendo para sobreviver.[Neste momento deves estar a pensar no sábio dito popular que musicaste: "VOLTA DI MUNDO I RABO DI PUMBA"].

Pois é, Zé Carlos.

Passaram-se muitos anos mas a terra ainda não encontrou descanso.

Depois da tua partida, a guerra voltou. Voltou e semeou a divisão entre irmãos, assombrou-nos e deixou feridas por cicatrizar. Deixou muitas "MINDJÉRIS DI PANO PRETO" e a tua pergunta "KE KI MININO NA TCHÓRA?" ainda faz sentido. Mas a vida continua. E este povo não desiste, tu bem sabes!

Afinal, como dirias, "I CASSA KI NO MISTI KUMPU".

Tenho 28 anos e hoje dou aulas numa pequena escola aqui em "DJIU DI GALINHA". Aqui, onde tentaram em vão calar a tua voz. Aqui onde aguardo pela concretização de uma promessa de bolsa de estudo. E enquanto isso, vou partilhando o pouco do saber com os mais novos. Como decerto farias.

Quando vou a Bissau, vejo os teus companheiros de outrora. Se pergunto por ti, "I SON SODADI", respondem. Os anos passam, mas eles cá resistem, alguns já de cabelos grisalhos e olhos embaciados. Estão longe de querer partir.

Às vezes penso que é porque querem levar-te respostas para perguntas que decerto farias num futuro encontro.

O meu pai diz-me que não partem porque "CAMINHO LUNDJU INDA DI ANDA"...

Bem, fico por aqui amigo, a sala está cheia de gente que veio para dar-te um abraço, portanto, HORA DI CANTA TCHIGA!


JOSÉ CARLOS SCHWARZ: A CULTURA COMO INSTRUMENTO LIBERTADOR

 

 Fernando Casimiro (Didinho)

didinho@sapo.pt

26.05.2007

Amilcar Cabral dizia que a luta de libertação nacional era um acto de cultura, um argumento de peso que convenceu o mundo perante a implementação da luta armada contra o colonialismo português. Era preciso passar das palavras aos actos e mostrar ao colonialismo que o nosso povo estava disposto ao mais alto sacrifício, o da sua própria vida, para conseguir a sua independência e, por conseguinte, a sua liberdade.

Uma luta armada que foi "imposta" pela recusa do governo colonial em negociar as independências da Guiné e de Cabo-Verde, propostas pelo PAIGC.

Amilcar Cabral foi e continua a ser a referência primeira da consciencialização quer de guineenses, quer de cabo-verdianos. Foi Cabral quem também sensibilizou e motivou José Carlos Schwarz.

Zé Carlos ensinou-nos que do genial  argumento que Amilcar Cabral utilizou para convencer o mundo sobre as razões de o PAIGC ter optado pela luta armada, se podia acrescentar algo mais numa tónica libertadora conjuntural, ou seja de um tempo definido, que se começou por chamar de pós-independência e no qual Cabral já não fazia parte.

Se o país era independente, se já não havia governo colonial, se se dizia que éramos um povo livre, então era preciso afirmar os propósitos que fizeram com que os melhores filhos da Guiné e de Cabo Verde dessem suas vidas pelas independências destes dois países e povos irmãos.

Zé Carlos cedo pressentiu o desvio das linhas de orientação nas estruturas do PAIGC e portanto, com reflexo nas governações quer da Guiné, quer de Cabo-Verde.

Os tempos eram outros, não se podia convencer o mundo para a necessidade de uma nova luta armada tal como Cabral conseguiu, mas, Zé Carlos descobriu que da tese de Amilcar Cabral se podia aplicar uma nova fórmula, convergente no aspecto cultural, para um propósito libertador, tal como Cabral soube aliar a luta de libertação nacional à cultura, primeira definição identitária do nosso povo.

Zé Carlos estruturou e revolucionou a cultura guineense. Foi ele quem introduziu o intervencionismo, através das suas músicas, sensibilizando e alertando guineenses e cabo-verdianos, sim, cabo-verdianos também, porque Zé Carlos era fiel ao princípio da unidade da Guiné e de Cabo-Verde, idealizado por Amilcar Cabral e, quando morreu, era esse princípio que defendia, tal como está registado nas suas músicas, pelas passagens referentes à Guiné e Cabo-Verde.

A intervenção cultural era no momento, tal como hoje se impõe, a forma de luta viável e necessária para a libertação de consciências e por assim dizer, da criação de um Homem novo por que Cabral sempre se esforçou.

A cultura passou a ser um instrumento libertador, pois que, simbolizando a identidade do nosso povo, é também a sua arma mais eficaz. Zé Carlos cedo se apercebeu disso e incutiu a mística revolucionária de forma contagiante, sem margem para indiferenças ou insensibilidades, visto abordar na sua luta, aspectos globais, tais como o amor, a criança, a mulher, as injustiças, a miséria etc.

Tornou-se incómodo e esse sinal deu mostras de quão positivo estava a ser a sua luta: a cultura como instrumento libertador de consciências.

A morte surpreendeu-o aos 27 anos e fez resignar as consciências que tinha conseguido libertar e iluminar, para alívio dos novos colonialistas da terra, que já não eram  brancos (nem são, porque ainda hoje andam por aí) mas sim, filhos da própria terra!

Tal como Cabral teve seguidores, assim Zé Carlos os tem e cabe a eles revitalizar a sua luta, não deixando que a indiferença se transforme no nosso mal comum como povo e nação!


Julião Soares Sousa

In Memoriam

Em homenagem a José Carlos Schwarz...

 

Na lonjura dos anos

choro uma alma amordaçada

mas de voz de livre

voz de melodias perfeitas clamando justiça

aquele tempo de espera infinda

de labaredas de fumo melancólico

em que a terra se mergulhou 

 

Na lonjura dos anos

choro por quem a morte venceu

mas vive dentro de mim

nestes dias de novos desencantos

agora que a terra emudeceu

para sempre

 

Na lonjura dos anos

proscrito na ilha distante

sucumbiram também

os olhos e a memória

do poeta-cantor

cheios «Do Verde (verde, verde!) do meu País» 

«Verde seja a esperança

do regresso breve»

Julião Soares Sousa1, in Um Novo Amanhecer, Minerva/Coimbra, 1996




Esta homenagem a José Carlos Schwarz tem o apoio da Discoteca Balafon que faz a distribuição de 2 CDs com músicas do Zé Carlos, produzidas e editadas por Teresa, Naman e Remna Schwarz, cujos exemplares foram-me oferecidos pelo seu gerente, José Augusto Tavares, a quem agradeço a gentileza.

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