LITERATURA POPULAR DA GUINÉ-BISSAU
João Ferreira
Texto redigido em 1979
No clima cultural da Guiné atual, com mais verdade nos meios urbanos, a
tônica da expressão literária é engajada e ideologicamente comprometida.
Não há autores independentes nem editoração privada. Os escritores, quase
exclusivamente reduzidos a poetas, jornalistas e professores, vêm de uma
campanha e de uma luta nacional, onde o engajamento místico-revolucionário
e ideológico se tornou característica absorvente. A concepção de
Literatura no contexto de produção e de consumo ainda pressupõe uma
vinculação revolucionária com a realidade. A Literatura foi produzida na
fase da revolução como uma arma de combate e, após a independência, como
chama de consolidação revolucionária, sob controle dos órgãos do Estado,
especialmente pelo Conselho Nacional de Cultura de Bissau. São prova disso
os livros Mantenhas para quem luta- A nova Poesia da Guiné-Bissau (1977),
Antologia dos novos Poetas da Guiné-Bissau (1978) e o disco Djiu de
Galinha, de José Carlos Schwartz.
O processo de desenvolvimento da Guiné-Bissau pressupõe as bases de uma
revolução cultural. E não há dúvida de que o sistema implantado pelo PAIGC
partiu de uma cultura revolucionária inspirada nos preceitos de Almícar
Cabral e transmitidos e absorvidos por artistas e escritores dentro do
próprio sistema global da revolução.
O presente trabalho se apoia numa metodologia convergente que analisa
simultaneamente o dado cultural e o clima sócio-cultural do contexto.Dará
por isso uma atenção especial ao estudo das expressões culturais nativas
tradicionais e simultaneamente se voltará para a análise das expressões
culturais do período revolucionário, numa tentativa de apreensão conjunta
de um fenômeno local em suas manifestações sincrônicas.
O corpus fático, fenomenal e textual é necessariamente limitado, por ser,
nos termos em que se põe em seu conjunto, relativamente pioneiro.
Nossa recolha não é caracterizada pela sistematicidade abrangente de
campos. Isto só seria possível através de uma demorada e adequada operação
de recolha local. Na emergência, além de uma rara e quase inexistente
bibliografia e das poucas informações veiculadas pelos periódicos,
dispomos de fontes colhidas de narradores com formação de segundo grau e
universitária. Esses narradores nativos da Guiné-Bissau selecionaram de
sua antiga memória infantil determinadas histórias populares que ouviram
da boca da mãe, da avó, da tia, dos irmãos ou dos “grandes” da tribo.
Trata-se de narrativas populares orais, vivas, sonoras, alimentadas pelas
fontes perpétuas da imaginação. Literatura, afinal, forjada pela história
étnica local, pela história da revolução em contraste dialético com a
história da colonização.
Em seu conjunto, a literatura popular da Guiné-Bissau visa a expressão
através dos mitos, fábulas, contos, tradições, danças, canções e
provérbios. Em sua tônica tradicional e em sua conexão com a alma coletiva
e com a caracterização grupal, a literatura popular não tem autor
individual enquanto tal. Mesmo que o tenha tido em sua fase original, a
partir do momento em que a comunidade se apropriou da narrativa e a adotou,
refundido-a, variando-a ou adaptando-a, tornou-a popular,
despersonalizou-a, tornou-a intemporal e a-espacial.
A literatura oral dos povos da Guiné substitui o texto literário artesanal
escrito. A dinâmica cultural viva alimenta-se de narrativas orais do tipo
das que vamos apresentar. Nesta perspectiva, a literatura popular ganha
maior identidade no confronto com a literatura culta, escrita e artesanal.
E é exatamente no confronto dialético que melhor sobressaem suas
características. E enquanto popular, tradicional, anônima, persistente e
oralizada, ela entra na memória coletiva e, portanto, no folclore, mesmo
que contemporânea (1).
1. Formas da literatura popular guineense
Num quadro de agrupamentos étnicos variados que abrange as raças
litorâneas quase totalmente animistas (balantas, baiotes e felupes,
manjacos, papéis e mancanhas, bijagós, nalus e beafadas) e as raças de
origem neo-sudanesa, localizadas mais no interior do território
(mandingas: saracolés, sossos, jaloncas- e fulas: forros, fulas pretos e
futajaloncos) e ainda os descendentes de caboverdeanos, de colonos
europeus e sírio-libaneses, a expressão etnográfica, folclórica e popular
é, como pode presumir-se, rica e variada.
Limitados metodologicamente à literatura popular, reduziremos a expressão
desta às narrativas orais, sob a forma a nós acessível de contos e
fábulas, de provérbios e canções, procurando em nossa exposição uma
interpretação da alma popular dos povos da Guiné-Bissau.
1.1 Os contos populares
Nesta categoria englobamos os contos populares comuns, os fabulários ou
histórias de animais ou apólogos, de profundo intuito moralizante e também
as narrativas de mitos cosmogônicos. Não temos informações textuais sobre
contos mágicos de fundo animista, que são preservados dentro da memória
animista, fechados a sete chaves pelos grandes e pelos pais dos meninos
que recebem iniciação tribal na cerimônia do fanado.
Não possuimos pronunciamentos de estudiosos sobre a natureza, estrutura e
dimensão dos contos maravilhosos e de encantamento escondidos no círculo
fechado dos clãs e vedados a estranhos.
Os contos narrando a aventura do homem no espaço mítico dos irãs, uma
espécie de demiurgos ou intermediários benéficos e maléficos que
supervisionam o curso dos acontecimentos do mundo em relação aos homens-
serão imprescindíveis, no devido tempo, para compreensão correta da
expressão cultural dos povos da Guiné.
Na falta de um espaço total da narrativa popular guineense vamos
cingir-nos a algumas categorias protótipas.
1.1.1 Contos de fundo antropocosmogônico
Chamamos de contos antropocosmogônicos aqueles que envolvem na relação do
homem com o universo. Em nossa limitada coleta junto de narradores orais,
recolhemos uma narrativa que circula entre os papéis da ilha de Bissau
intitulada “O Nascimento do dia”.
1.1.2 Contos de animais
Identificam-se em parte com o gênero das fábulas clássicas, onde os
animais assumem o exemplo, o comportamento e a linguagem dos homens. Todas
as histórias de animais têm intencionalidade educacional. A estrutura
narrativa desenvolve uma linha de sabedoria sutil e maneirosa. Nela, os
entes humildes e fracos conseguem, pela esperteza e pela astúcia ou pela
inteligência, defender-se dos fortes, arrogantes e dominadores.
No índice do corpus textual, ainda inédito por nós recolhidos, temos os
seguintes contos de animais: 1. a cabra e a onça; 2. a lebre fardada; 3. a
lebre e a choca; 4. o camaleão; 5. a história do frintambá.
Todas estas narrativas se colocam no plano da fábula educativa, exaltando
a astúcia e a malícia como formas de equilíbrio para a vitória do fraco
sobre o forte. A vitória legitima tudo, embora normalmente a esperteza
seja apenas mental, sem recurso à violência. Vale a pena ler e analisar o
texto da lebre fardada para avaliação dos recursos da imaginação africana.
1.2 Os Djidius de tradição muçulmana
Se todos os povos antigos têm seu Cancioneiro caracterizado e seus
trovadores e menestréis como compositores e divulgadores da canção
popular, a Guiné-Bissau tem o djidiu que mereceu recentemente um estudo de
Ondina Ferreira, professora do Liceu do Sal, em Cabo Verde.
O Djidiu pertence à estrutura cultural tradicional de uma parte
significativa da Guiné, que são as comunidades islamizadas. Ele é um
divulgador da literatura oral e pode ser caracterizado como um trovador
andarilho, apátrida, que anda de terra em terra, exercendo sua missão de
poeta e de cantor.
Dentro das tradições dos povos islamizados da África do Norte, atua nos
países limítrofes da Guiné desde a Mauritânia até a Gâmbia, Senegal, Mali
e Guiné-Konakry. Figura tradicional entre esses povos nas cortes dos
régulos, antes mesmo da colonização européia, o djidiu, apesar de apátrida
por ofício tem exercido um certo dirigismo e serviço ideológico em sua
expressão trovadoresca. Assumiu funções de épico cantando as qualidades do
verdadeiro lutador e de moralista denunciando a covardia, a fraqueza e a
traição.
Segundo as tradições mandigas, cada rei tinha um djidiu para cantar,
elogiar, moralizar e aconselhar.
Na tribo, por suas funções constituía um grupo social aparte com uma
preparação iniciática feita pelo próprio pai. Histórias contadas pelo
progenitor deveriam ser musicadas pelo candidato a djidiu e cantadas
depois na casa da família ou no ambiente a que se refere a história para
consagração profissional e garantia de sobrevivência. As narrativas levam
na boca do djidiu uma intencionalidade ética procurando gerar normas de
comportamento moral. O djidiu não deixa de ter, portanto, conforme já
acentuou Ondina Ferreira (2), uma dimensão pedagógica. Portador da
linguagem mítica e simbólica, ele entra no social cantando lendas e sendo
um referencial mítico-profético das exaltações e das calamidades públicas
(fome, guerra, devastação, inundações).
“A estruturação da narrativa destinada a recordar uma catástrofe não
obedece, regra geral, a um esquema cronológico rigoroso. Contam um
episódio importante ocorrido durante esse período com a finalidade de
fazer viver a catástrofe na história.
O djidiu discorre sempre em código poético e através de uma linguagem
recheada de provérbios e de máximas sentenciosas” (3).
Largamente atuante antes e durante a colonização, passou a exercer seu
papel nas áreas rurais em festividades típicas (noivados, casamentos e
mortes). Como instrumento musical típico do djidiu serve o korá, espécie
de viola muçulmana, mas também são usados o nhanhero (tipo de violino) ou
a viola de três cordas, constituída, na parte cava, de oco de cabaça. Nas
festas pode haver acompanhamento de tambor e o djidiu pode ser ajudado por
coro de moças ou de meninas.
Não há dúvida de que a existência destes poetas trovadores e contadores de
histórias musicadas, que às vezes assumem o papel de violeiros repentistas
e de maestros e orientadores da programação festiva, dão ao ambiente
cultural da Guiné uma característica tradicional que faz lembrar a um
tempo os trovadores provençais e galaico-portugueses dos séculos XII, XIII
e XIV e por outro lado os trovadores árabes atuantes no sul da Espanha em
plena Idade Média (4).
2. O Cancioneiro popular da Guiné-Bissau
Não está feito o levantamento do Cancioneiro Geral da Guiné-Bissau. Mas o
pluralismo cultural de seus povos e a úbere tradição cultural que os
distingue tem um acervo inédito que dá para os etnógrafos e antropólogos
estudiosos da literatura popular.
De momento, apesar da carência de coletâneas e de estudos específicos,
acreditamos que teremos a seu tempo abundante material de cantigas
sociais, ritmos, canções de louvor e de exaltação, acalantos, cantos
sacros usados nas reuniões do fanado, letras usadas nos rituais dos
choros, nas consultas aos irãs nas balobas e nas festas e os cantos
guerreiros testemunhados pela tradição.
2.1 Cantos populares épicos e cantos guerrilheiros
As tradições tribais do território guineense têm vasto repertório de
cantos populares abrangendo as vivências quotidianas e a luta pela
sobrevivência das tribos.
Pela forma intensiva e programada como entraram na alma inter-tribal dos
guineenses, constituindo-se em vivência profunda e recente, os cantos
populares heróicos foram compostos e cantados na frente de luta, nas
florestas, nos casamentos e nas bolanhas das áreas libertadas pelos
guerrilheiros. Cantos oralizados que passaram a constituir um patrimônio
coletivo de consumo geral. São cantos veiculados em língua crioula, com um
índice de espontaneidade coloquial muito grande, transmitindo a realidade
da guerra, o motivo da luta e a esperança da libertação.
Após a vitória, muitos desses cantos se popularizaram e entraram no
repertório festivo da população.
Como amostragem, apresentamos o texto colhido de um narrador oral de
Bissau. É o canto de um guerreiro balanta (5):
Crioulo Português
Quim que
Quim cu tem terra? De quem é a terra?
- A nós cu tem terra. - A terra é nossa.
Quim cu na labra? Quem é que está lavrando?
-A nós cu labra. - Nós é que lavramos.
Quim cu na luta? Quem é que luta?
- A nós cu na luta. - Nós é que lutamos.
Luta cusa di quê? Lutar por que?
- Cusa di nó terra. - Lutar pela nossa terra.
Na estrutura expressiva e conteudística, este canto já absorvido pelo
consumo de massa, valorizado portanto, é semelhante à amostragem
apresentada por Mário de Andrade em 1969 sobre os cantos dos guerrilheiros
da Guiné-Bissau em seu livro La poésie africaine d’expression portugaise
(6). Entre populares e popularizantes, devemos incluir os cantos
guerreiros do poeta José Carlos Schwartz. Suas principais canções estão
hoje reunidas no disco “Djiu di Galinha”. Ele é poeta, compositor, cantor
e acompanhador de violão. São cantos carregados de chama que tornaram mito
jovem seu autor, transformando-se em sensação nas cidades da Guiné. O
segredo de José Carlos, conforme ele próprio explicou numa entrevista,
está no fato de terem sido utilizados provérbios da linguagem popular
acessíveis à compreensão do povo. Suas canções, conservando em parte a
mística da luta e da revolução, voltam-se após a independência para as
realidades quotidianas dentro de um processo político-cultural que
dominava experiencialmente. “Aipili”, “Minino de criação”, “Djiu di
Galinha”, “Porque chora o menino”, “É só saudade” e “Dgenabu” são canções
imorredoiras com letras, música, voz e acompanhamento sintonizados numa
Guiné pervadida por uma realidade central: a travessia da libertação e a
sensação de alegria misturada com a expressão vital do amor, do carinho,
da saudade, do sofrimento e da fraternidade.
2.2 Canções religiosas
A Guiné-Bissau é uma nação com larga plataforma animista (64%), seguida
pela ideologia religiosa islamita que domina cerca de 35% da população. É
fácil de entender o volume de cerimônias e de rituais com cânticos
religiosos como pano de fundo. Enquanto o Islam celebra suas festas
próprias com posturas, leituras e cânticos, o animismo é caracterizado
pelo culto aos irãs das florestas e por largas concentrações por ocasião
do fanado, do choro, do cansaré, assim como nas festas das sementeiras e
das safras e outras. Há pois um cancioneiro e até uma hinódia religiosa,
mágica, funérea e agrária muito significativa.
Devido ao caráter fechado da tribo que não permite divulgação de seus
segredos mágicos a elementos estranhos, não possuimos amostragem de
canções usadas no fanado, nas consultas aos irãs e em festas religiosas
iniciáticas típicas.
2.3 Canções tradicionais comuns
Sem possibilidade de analisar todas as vivências intensas dos últimos
vinte anos relativas ao processo de autodeterminação e excluído o
cancioneiro feiticista e animista de carácter religioso, pelas razões
expostas, resta-nos finalmente considerar as canções tradicionais comuns.
As populações da Guiné são alegres e expansivas e a poesia e a música são
para elas o recurso de consumo representativo. Em ajuntamentos populares,
nos funerais ou no choro, assim como por ocasião de aniversários,
casamentos e em festas tradicionais, agrícolas ou comemorativas, a música
surge em solos ou em corais, em coreografia ou não, acompanhada
normalmente de tambor, de bombolom ou de outros instrumentos conforme a
etnia ou a região, mantendo ao vivo um repertório de cancioneiro que
merece ser profundamente estudado e conhecido (7).
*****************************
NOTAS
(1)São importantes as palavras de Émile Dominique Nourry/ P. Santyves
citadas por Luis da Câmara Cascudo em Literatura oral no Brasil, Rio de
Janeiro, Livr. José Olympio, 2ª ed. 1978, p. 30: “O Folclore estuda a vida
popular, mas na vida civilizada. Não há folclore nos povos onde não se
pode distinguir duas culturas, a da classe instruída e a da classe
popular”. – Nos povos onde domina apenas o sistema tribal teria lugar a
Etnografia, não o Folclore ou demopsicologia.
(2) Ferreira, Ondina, o.c., p. 264b
(3) IDEM, ib. P. 264b – 265ª
(4) Ondina Ferreira salienta a importância do papel dos djidius durante a
guerra da independência nas áreas libertadas. Ib. o.c. 267b
(5) Cantado e narrado pelo guineense Macário Marques Perdigão Júnior,
estudante do Instituto Rio Branco, em Brasília, 1979.
(6) Os dois cantos aí publicados levam os nomes “Aux Portugais” e “La
Résistance” e foram identificados por Macário M. Perdigão Júnior como
cantos difundidos em crioulo nas áreas libertadas do tschom nalu,
acompanhados por tamborim, ao sul da Guiné.
(7) Entre os balantas, quando um homem, mercê da doença ou da idade se
aproxima do dim, reúne os parente e amigos e narra para eles todas as suas
façanhas, seus roubos de gado e de canoas, todas as suas valentias em
conseguir tudo isso. Em seguida, todos os circunstantes, parentes e amigos
da morança fazem um ritual de despedida em que cantam todos coletivamente
cantos da própria tribo. |
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