JOSÉ CARLOS SCHWARZ: A CULTURA COMO INSTRUMENTO LIBERTADOR

 

Por: Fernando Casimiro (Didinho)

didinho@sapo.pt

26.05.2007

Amilcar Cabral dizia que a luta de libertação nacional era um acto de cultura, um argumento de peso que convenceu o mundo perante a implementação da luta armada contra o colonialismo português. Era preciso passar das palavras aos actos e mostrar ao colonialismo que o nosso povo estava disposto ao mais alto sacrifício, o da sua própria vida, para conseguir a sua independência e, por conseguinte, a sua liberdade.

Uma luta armada que foi "imposta" pela recusa do governo colonial em negociar as independências da Guiné e de Cabo-Verde, propostas pelo PAIGC.

Amilcar Cabral foi e continua a ser a referência primeira da consciencialização quer de guineenses, quer de cabo-verdianos. Foi Cabral quem também sensibilizou e motivou José Carlos Schwarz.

Zé Carlos ensinou-nos que do genial  argumento que Amilcar Cabral utilizou para convencer o mundo sobre as razões de o PAIGC ter optado pela luta armada, se podia acrescentar algo mais numa tónica libertadora conjuntural, ou seja de um tempo definido, que se começou por chamar de pós-independência e no qual Cabral já não fazia parte.

Se o país era independente, se já não havia governo colonial, se se dizia que éramos um povo livre, então era preciso afirmar os propósitos que fizeram com que os melhores filhos da Guiné e de Cabo Verde dessem suas vidas pelas independências destes dois países e povos irmãos.

Zé Carlos cedo pressentiu o desvio das linhas de orientação nas estruturas do PAIGC e portanto, com reflexo nas governações quer da Guiné, quer de Cabo-Verde.

Os tempos eram outros, não se podia convencer o mundo para a necessidade de uma nova luta armada tal como Cabral conseguiu, mas, Zé Carlos descobriu que da tese de Amilcar Cabral se podia aplicar uma nova fórmula, convergente no aspecto cultural, para um propósito libertador, tal como Cabral soube aliar a luta de libertação nacional à cultura, primeira definição identitária do nosso povo.

Zé Carlos estruturou e revolucionou a cultura guineense. Foi ele quem introduziu o intervencionismo, através das suas músicas, sensibilizando e alertando guineenses e cabo-verdianos, sim, cabo-verdianos também, porque Zé Carlos era fiel ao princípio da unidade da Guiné e de Cabo-Verde, idealizado por Amilcar Cabral e, quando morreu, era esse princípio que defendia, tal como está registado nas suas músicas, pelas passagens referentes à Guiné e Cabo-Verde.

A intervenção cultural era no momento, tal como hoje se impõe, a forma de luta viável e necessária para a libertação de consciências e por assim dizer, da criação de um Homem novo por que Cabral sempre se esforçou.

A cultura passou a ser um instrumento libertador, pois que, simbolizando a identidade do nosso povo, é também a sua arma mais eficaz. Zé Carlos cedo se apercebeu disso e incutiu a mística revolucionária de forma contagiante, sem margem para indiferenças ou insensibilidades, visto abordar na sua luta, aspectos globais, tais como o amor, a criança, a mulher, as injustiças, a miséria etc.

Tornou-se incómodo e esse sinal deu mostras de quão positiva estava a ser a sua luta: a cultura como instrumento libertador de consciências.

A morte surpreendeu-o aos 27 anos e fez resignar as consciências que tinha conseguido libertar e iluminar, para alívio dos novos colonialistas da terra, que já não eram  brancos (nem são, porque ainda hoje andam por aí) mas sim, filhos da própria terra!

Tal como Cabral teve seguidores, assim Zé Carlos os tem e cabe a eles revitalizar a sua luta, não deixando que a indiferença se transforme no nosso mal comum como povo e nação!

Nau, n ka na seta

Si bu sta dianti na luta


Waldir Araújo

Texto de apresentação do CD - José Carlos Schwarz "Boca ke Papia"

Caro Zé Carlos,

Sei que, onde quer que estejas, estarás com o mesmo espírito da ideia com que fiquei do que foi a tua vida. Um espírito aberto e alegre, mas intranquilo.

Uma vida curta e energicamente dedicada a dar voz aos que não tinham força para falar mais alto. Aposto que, estejas onde estiveres, estarás com a tua guitarra e a tua voz a intervir.

A intervir a favor de uma causa qualquer. A favor de uma nobre causa qualquer. Não te conheci e, portanto, não fazes ideia de quem tem a ousadia de dirigir-te esta humilde carta. Mas eu explico. Nasci a 27 de Maio de 1977, em Bissau. Sim, naquele dia tristemente fatídico em que partiste de uma forma inesperadamente brutal. Naquele dia em que um acidente de aviação ceifou uma jovem vida que ainda tinha muito para dar à nossa Guiné e que muitas saudades deixou. Talvez por isso - e por muitas outras razões - os meus pais deram-me o teu nome: José Carlos. Cresci e explicaram-me que apesar de ser um nome comum, tinha um valioso significado porque era uma homenagem a uma pessoa invulgar. Quis saber então mais sobre o que foi a tua vida, o sentido das mensagens das tuas músicas, a tua coragem e tudo mais. E tudo isso ninguém me disse. Tudo isso encontrei nos velhos discos de vinil que o meu pai guardava religiosamente.

Nas tuas músicas descobri que cantaste a epopeia de uma gloriosa luta de libertação nacional. Que louvaste os nossos heróis e as suas bravuras.

Que condenaste como ninguém um colonialismo atroz e impiedoso. Mas também sei que quando chegou a aurora da independência, a tua voz não se calou. Não se calou perante qualquer atitude que consideravas contrária á razão de ser dessa luta. Pelo contrário, a tua voz subiu de tom para denunciar as injustiças.

O tempo foi passando e eu continuei a ouvir a tua música. Mas algo mudou. E o que mudou foi a forma como passei a entender as mensagens. É que elas não estão assim tão distante da realidade actual. Aliás, em certas situações, estão tão próximas do nosso tempo que custa a acreditar que foram escritas há tantos anos. As pessoas de que falas ainda estão entre nós. É verdade, Zé Carlos, acredita.

Noutro dia encontrei APILI. Sim, aquela mulher que esteve sempre junto do seu companheiro no mato durante a guerra. O mesmo homem que acabaria por abandoná-la mal chegara a independência, trocando-a por uma mulher mais jovem "KI SIBI ENTRA, KI SIBI SAI".

APILI está hoje uma mulher velha e cansada, mas não guarda rancor. Continua corajosa e batalhadora. Imagina, é ela o pilar de uma numerosa família da qual se orgulha e pela qual é capaz de dar a vida "PA CALÉRON KA FRIA". E o tal companheiro, o tal camarada que a abandonou, regressou. Hoje, caído em desgraça, é na casa de APILI que vai comendo para sobreviver.[Neste momento deves estar a pensar no sábio dito popular que musicaste: "VOLTA DI MUNDO I RABO DI PUMBA"].

Pois é, Zé Carlos.

Passaram-se muitos anos mas a terra ainda não encontrou descanso.

Depois da tua partida, a guerra voltou. Voltou e semeou a divisão entre irmãos, assombrou-nos e deixou feridas por cicatrizar. Deixou muitas "MINDJÉRIS DI PANO PRETO" e a tua pergunta "KE KI MININO NA TCHÓRA?" ainda faz sentido. Mas a vida continua. E este povo não desiste, tu bem sabes!

Afinal, como dirias, "I CASSA KI NO MISTI KUMPU".

Tenho 28 anos e hoje dou aulas numa pequena escola aqui em "DJIU DI GALINHA". Aqui, onde tentaram em vão calar a tua voz. Aqui onde aguardo pela concretização de uma promessa de bolsa de estudo. E enquanto isso, vou partilhando o pouco do saber com os mais novos. Como decerto farias.

Quando vou a Bissau, vejo os teus companheiros de outrora. Se pergunto por ti, "I SON SODADI", respondem. Os anos passam, mas eles cá resistem, alguns já de cabelos grisalhos e olhos embaciados. Estão longe de querer partir.

Às vezes penso que é porque querem levar-te respostas para perguntas que decerto farias num futuro encontro.

O meu pai diz-me que não partem porque "CAMINHO LUNDJU INDA DI ANDA"...

Bem, fico por aqui amigo, a sala está cheia de gente que veio para dar-te um abraço, portanto, HORA DI CANTA TCHIGA!


Victor Gomes Pereira

Texto de apresentação do CD - José Carlos Schwarz "Udjus ke odja"

Depois de uma heróica luta contra o colonialismo português nas fileiras da clandestinidade do PAIGC, a figura de José Carlos Schwarz tornou-se ainda mais conhecida pela sua dimensão de pioneiro na criação musical, como poeta, compositor e cantor. O que o viria a tornar, aliás, por causa da marca indelével que a sua obra imprimiu na música moderna guineense, a sua verdadeira alma.

Num período de 15 anos, este jovem oriundo da sociedade bissauína, desde muito cedo começou a revelar os seus talentos artísticos a solo, para o que uma inigualável evolução viria a influenciar de modo decisivo a juventude guineense. O jovem músico começaria com um espírito aberto a integrar vários grupos com tendências da música pop/rock e rithm & blues, com uma acentuada influência nas raízes da música afro-americana, não sem antes, se aperceber de um verdadeiro processo de revalorização por que tinha que passar a música guineense. Com esta tomada de consciência, J. C. H. Schwarz fundou, juntamente com alguns músicos um ou dois grupos experimentais, mas sem sombra de dúvidas, será a orquestra Cobiana Djazz, aquela que viria a tornar-se um marco mítico na história da cultura e da música contemporânea guineense.

A temática explorada por José Carlos, era essencialmente de cariz intervencionista, o que aliás explica, apesar de todas as vicissitudes, a sua actualidade. Quer seja o amor, a mulher, a criança, ou a postura da liderança política, todas estas situações, eram alvo de atenção crítica dos poemas deste talentoso músico revolucionário, que infelizmente nos deixou ainda na flor da idade. Em termos discográficos, este artista deixou-nos com um legado de 3 álbuns (José Carlos et le Cobiana Djazz - Vol. 1 e 2, Djiu di Galinha), que apenas foram editados após a sua morte ocorrida a 27 de Maio de 1977, quando ainda tinha 27 anos, deixando esposa e dois filhos menores.

O saudoso malogrado, não só, ainda é relembrado com muita emoção por todos aqueles que tiveram a felicidade de o conhecer, e que com ele partilharam momentos inesquecíveis e ímpares da cultura, como também por todos aqueles que se deliciaram e foram fortemente influenciados pela sua obra.

A dinâmica que impregna a obra de José Carlos Hans Schwarz, não deve e não pode ser ignorada, porquanto, se ao povo reconhece-se o direito de o conhecer, acrescidamente os que com ele partilharam momentos inesquecíveis, deve-se-lhe a homenagem da memória e ao Estado guineense, que tanto lhe deve a sua construção, existe a inquestionável obrigação da promoção da sua obra.

MEMORÁVEL JOSÉ CARLOS SCHWARZ

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