REFLEXÕES DE UM NACIONALISTA

VI

 

 

GUINEENSES BALI PENA  

OU A MINHA HERANÇA II

 

INTRODUÇÃO OU

A SEGUNDA LIBERTAÇÃO

 

 

“ (…) Também, não sei o que se passa, mas uma coisa é certa: é entre eles (os do Partido), e para nós (o povo) quanto mais se matarem, melhor…”

 

J. R., comerciante, morador do bairro de Chão de Papel no dia 14 de Novembro de 1980 a noite, comentando o matraquear de tiros que se ouviam por todo a cidade.

 

 

 

 

 

 

 

Fernando Jorge Pereira Teixeira *

teixeira_ferjor@hotmail.com

Queluz 25 de Maio de 2010

 

Estas amargas palavras de um homem que eu respeitava desde criança por ser um pilar da sociedade e um proeminente cidadão de Bissau de quem habituei a ouvir só coisas inteligentes e sensatas abismou-me pela sua crueza e definibilidade; nelas havia raiva, impotência e fatalismo. Não que eu desconhecesse o descontentamento que grassava na sociedade sobre os caminhos incertos que as “coisas” estavam a tomar, sobre a falta de todo o tipo de géneros alimentares (nessa altura eu e meu irmão tínhamos que acordar as seis horas para ir a bicha de pão pois não havia arroz em Bissau; e só conseguíamos óleo alimentar e açúcar no bairro de “Pilum”), sobre a própria degradação generalizado da situação social e politica no seu todo. Mas eu entendia ainda (embora de modo difuso) que para construir a “felicidade e progresso” do nosso povo era preciso consentir sacrifícios, pois outros antes de nós, também se sacrificaram e morreram para que pudéssemos ser livres: na Luta, nas prisões da P.I.D.E. e muito antes, nas permanentes lutas que o nosso povo travou nos séculos passados. Alem de que entendia que um processo revolucionário como o nosso (e dos outros PALOPS) pressupunha a mudança de toda uma concepção do mundo, tinha que forçosamente ser superior a questões meramente pecuniárias e de mercearia por assim dizer. Infelizmente não eram apenas questões ou contas de mercearia. Mas isso só soube, em toda a sua plenitude (com amargura e dor) só muito tempo depois.

Mas mesmo imbuído das minhas efémeras certezas e convicções, o divórcio total e inapelável - que apercebi-me nas palavras desse comerciante -, entre a nossa elite portanto (de que fazia parte esse senhor) e o Projecto Politico do “Partido Dirigente” da nossa sociedade, a tal “Força Luz e Guia” do nosso Povo era novo para mim. E o seu entendimento nesse instante foi como um clarão na noite, pois pelas amargas palavras proferidas num desabafo impotente, apercebi-me que o divórcio não era só entre a nossa elite e o Projecto do Partido Dirigente, a separação era mais profunda, era com o próprio Partido em si, independentemente do rumo que viesse ou não a tomar no futuro. Pois os agravos já tinham ultrapassado qualquer ponto de reconciliação possível. E quando as elites e o poder político são irreconciliáveis, todo o resto esta perdido, mesmo que uma grande parte do povo continue a confiar nas promessas (pois não serão mais que isso mesmo, promessas).

Nesse instante da noite ninguém sabia ainda que estava a decorrer um golpe de estado contra a direcção de Luís Cabral, que só dois dias depois viria a ser entendido de alguma maneira. E aqui isto é valido tanto para os golpistas como para o povo. O Golpe de Estado, na cabeça dos seus mentores, tinha como único leitmotiv a tomada do poder e ajuste de contas futuro. Nesse aspecto não diferiu de outros Golpes na África desse tempo que de certa maneira os inspirou e encorajou. As palavras bonitas como “liberdade”, “desenvolvimento”, etc., foram acrescentadas depois para a fotografia ficar composta. O Rafael Barbosa proeminente membro da nossa elite já tinha falado na rádio, mas o discurso foi mais confuso do que a sua própria cabeça nesse momento, pois como nós, ele também não sabia o que se passava realmente e partiu de princípio que era um movimento contra o Partido. Por isso falou de que o povo tinha tomado o poder… mas isso são contas de outro rosário.

Sem saberem de que se tratava verdadeiramente as pessoas festejavam, pois o importante era que haveria finalmente uma mudança e na verdade era isso que muita gente queria; e nesse aspecto os desejos da elite e de uma grande parte do nosso povo eram coincidentes. Eu pessoalmente também não sabia ainda de que se tratava mas intimamente, no fundo do meu coração me alegrei; Já tinha idade e compreensão suficientes para sentir que as coisas não poderiam continuar como estavam por muito mais tempo. Mas se calhar aquela compreensão de Tomasi Lampedusa: “certas coisas tinham que mudar para tudo ficar na mesma”. Já notava, nas bichas pelo pão de madrugada, que as pessoas estavam fartas e revoltadas. Ou quando tínhamos que ir ao bairro de Pilum à noite, quase escondidos, comprar manteiga ou açúcar nos Djilas, que com medo de denúncias ou da polícia, tinham que vender os seus produtos as escondidas. De facto havia um estado de hostilidade não declarada entre a sociedade no seu todo e o Partido. Este concentrado nos seus próprios problemas internos (luta pelo poder) nunca soube ler correctamente estes sinais.

Por isso mesmo e por sonharem com a liberdade por fim, a liberdade que esperaram e não tiveram com a Independência, nas ruas e bairros as pessoas regozijavam. No meu bairro de “Chão de Papel”, na Rua de Angola, Moçambique, Vitorino Costa e outras, as pessoas já dançavam. Eu e o meu amicíssimo Baifas ficamos a ver Kampuni, Nalete e outras meninas da vizinhança a dançar de genuína alegria. As raparigas da casa de Nha Quinta também dançaram e cantaram. Perto do estádio a frente de “Gã Lubo” as vivas eram sinceras e espontâneas. Na “Meteorologia” as pessoas desconhecidas apertavam a mão uns aos outros. A hora da “Segunda Libertação” tinha soado. Nesse momento festejava-se a nossa libertação das garras de um poder nefasto, das garras do Partido. Era a festa do povo de Bissau e em todos os Gãs do nosso povo os espíritos dos nossos mortos bateram palmas.

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Por isso ainda voltarei aos conturbados dias do “Reagustamento” por ter deixado por dizer algumas coisas que poderiam ajudar encaminhar o leitor para outros acontecimentos que na sequência deste foram despoletados e poder fazer a sua análise (dialéctica ou não) dos acontecimentos presentes e futuros. E nessa base tentar explicar a Guiné actual a partir de acontecimentos passados e raros testemunhos partilhados, utilizando instrumentos de análise que a ciência nos da; embora sabendo que esses instrumentos não bastam de forma algum para “nos explicar” (en tan que peuple) na sua totalidade, atendendo a nossa idiossincrasia peculiar. De facto, correndo o risco de me repetir, apenas constato que nas minhas cogitações, sou confrontado com situações e acontecimentos tais, que me parece que as vezes nem os métodos científicos, me bastam para nós decifrar – então que Guineenses – quem fomos, quem somos e quem seremos.

I

OS NOSSOS TURUBÃS

OU A REVOUÇÃO POR FIM

 

“Pátria di mi, Pátria de combatentes, ossantes na cê roson, decididos na sedo livre… Guineenses bali pena”

 

Adriano Ferreira (Atchutchi)

 

 

Não se deve conhecer a História para apenas se “ficar feliz” com a abnegação e heroísmo dos nossos antepassados, por mais importante que eles sejam para a sublimação do nosso amor-próprio como povo. A História é o instrumento mais importante para a consciencialização do povo a aderir ao projecto comum, por isso lhe dedico o tempo possível e preciso nas minhas modestas reflexões. Pois só lutamos, só estamos dispostos a morrer por algo que amamos e só amamos o que conhecemos verdadeiramente. E é minha convicção profunda que quanto mais os Guineenses conhecerem a História do seu País, mais o amarão e consequentemente estarão dispostos a lutar por ele. E amar a Guiné não é um “objectivo” ou apenas uma “obrigação moral”, é a base para todo o resto que um dia possamos pensar ou idealizar em prol dela e do nosso povo. No dia que a deixarmos de amar é o dia que deixaremos de existir como seres humanos com alguma dignidade e significado. Pois esta Guiné - embora criminosamente atrasada, destruída, desprezada, vilipendiada - é a nossa Pátria, que devermos amar acima de tudo e de todas as coisas.

Por isso tenho que continuar escrevendo - embora sabendo que já não possuo muito mais tempo - porque o meu maior desejo (na medida das minhas modestas possibilidades) é criar nos Guineenses um sentimento de pertença a um espaço “comum e a um conjunto de valores “comuns” e por força desse sentimento de pertença, criar uma ideologia baseado na crença profunda de que somos parte de algo grandioso, de um projecto comum, que nos ultrapassa como seres humanos individuais, mas que existiu antes de nós e continuara depois de nós, que é perene no tempo e na eternidade.

Pois nós hoje, como ontem os nossos antepassados, na longa procura do nosso povo, nem uma língua comum, que podia servir de sustentáculo a “ideia de Nação”, tínhamos. Tivemos que inventa-lo, não apenas para realizar trocas comerciais como é sustentado por estudiosos, mas porque o nosso orgulho de homens nos exigia uma língua só nossa - e não do colonizador. Exigia-nos uma língua de todos nós - e não de várias tribos. Em suma exigia de nós uma “nova cultura” consubstanciada numa “língua”, num “ser” e num “sentir” comum. É esta Nação que preconizo, limpa dos excessos e dos males do antigamente. Deve ser refundada assentando numa Ideologia Nacional de base ou um “consenso espiritual nacional”, mesmo que incipiente, mesmo que apenas “popular”, que sustente a própria “Ideia” da Nacionalidade.

 

Por isso para fazer a minha parte sou obrigado a socorrer-me da minha memória para fazer o meu leitor não apenas saber os factos, as datas e os nomes, mas faze-lo “sentir” o momento, o acontecimento de que falo. E quiçá, seguindo o meu exemplo e dos djidius do nosso povo, as pessoas reavivam a sua memória e escrevam sobre as suas experiencias pessoais e estas servirão para que a historia geral do nosso povo - aquele povo de quem o grande Adriano Ferreira (Atchuchi) disse com orgulho “Guineenses bali pena”. Aquele povo de quem vale a pena orgulhar; aquele povo que existe dentro de cada um de nós - não seja esquecida e perdida por fim (como as outras tantas páginas da nossa epopeia já perdidas na morte dos seus protagonistas) ou levadas pelos ventos e poeiras dos nossos harmatans e turubãs da nossa vida comum.

 

As nações jovens, como a nossa, precisam no seu imaginário colectivo, de âncoras que os segurem da correnteza impetuosa da história e do porvir. Essas âncoras estão acima das nossas opiniões pessoais, dos partidos, dos interesses particulares, das nossas efémeras miseráveis vidas, em suma são eternos.

 

Sei que para organizar e galvanizar um povo, independentemente de políticas económicas boas, temos que lhe dar algo mais. Algo espiritual, algo que lhe dê norte, que o faça orgulhar de ser parte de algo bom, frutífero e promissor; Algo que faça cada cidadão sentir no fundo do seu coração um calor intenso quando a sua Bandeira é içada; algo que desperte o seu espírito quando sentir os sons do seu Hino Nacional. Pois (como Jesus já dizia que nem só do pão vive o homem) ele precisa sentir orgulho nos seus heróis, nos seus dirigentes, nele próprio por pertencer uma comunidade de seres humanos com uma identidade comum, iguais entre si perante a Lei e o Estado.

Creiam que os acontecimentos sórdidos e vergonhosos com que hoje (e já durante muitos tempo) somos confrontados todos os dias não têm “mínima importância” para mim. São estertores de um mundo e de um tempo que estão condenados a desaparecer. A única coisa que interessa é como vão desaparecer. Mas esse dia há-de chegar. Por isso em verdade vos digo, nestes tempos conturbados, cada Guineense deve ser o tabernáculo da Nação. A minha crença profunda e imorredoira é de que a Nação existe e existira sempre onde se encontre um Guineense amante da sua pátria e do seu povo.

Mesmo arruinada, desautorizada e menosprezada em extremo, mesmo sendo hoje algo que nos revolte e envergonhe mais do que nos orgulhe, mesmo sendo a última das nações da terra, a nossa Pátria existe dentro do coração de cada um de nós e existira sempre enquanto houver um Guineense vivo. Pois cada Guineense é a própria Nação Guineense. Esta Nação, esta Pátria que um dia será amada por todos nós e respeitada por toda gente neste mundo. E nesse dia a centenária luta pelo reconhecimento do nosso povo chegara ao seu término. E nesse dia o nosso coração rebentara de alegria e poderemos dizer por fim Guineenses bali pena na verdade.

Esse dia será o dia da Revolução Guineense. Uma revolução que só poderá ser feita por dentro, A partir de um Estado forte. Um Estado verdadeiramente revolucionário, não no sentido antigo do termo, mas no sentido de que este Estado será o criador da Nação e num movimento dialéctico criar o próprio Povo. Pois se o Estado é o “instrumento” para a “realização” do povo, ele não “é” o povo, nem pode “se confundir” com o povo”. Mas quando o curso da natureza humana é orientado por um Governo nacionalista consubstanciado num Estado forte os conflitos sócias se atenuam e o desenvolvimento do povo é rápido e harmonioso. E isso é ou devia ser a única “raison d`état” válida entre todas as outras. Por isso a Revolução Guineense deve ser feita em nome da Nação, pelo povo, apoiado por um Estado nacionalista que será o gerador e catalisador dessa revolução. Devemos trabalhar para essa revolução agora.

 

II

O CRIMINOSO PROJECTO NACIONAL  

OU OS FILHOS DO IMPROVISO

 

“Séculos de dor e esperança!
Esta é a terra dos nossos avós!
Fruto das nossas mãos,
Da flor do nosso sangue:
Esta é a nossa pátria amada”

 

Para os que não sabem: estrofes do Hino nacional

 

 

A minha geração de uma maneira geral - e eu de uma maneira particular e extremada - tinha “pena” ou desgosto por o “Projecto Nacional” não estar a marchar como devia ser. Não porque éramos doutrinados de alguma forma, mas porque aos nossos olhos, pelas premissas que continha, parecia o “mais justo” e o “mais factível” de ser levado a bom termo, de todos os apresentados ao nosso povo em toda a sua centenária história.

Acreditávamos também nesse “Projecto”, porque a nossa primeira mundivisão foi forjada nele e por ele. Acreditávamos ainda porque mesmo comparativamente com Angola e Moçambique, por exemplo (que já estavam metidos numa guerra civil fratricida), o nosso processo parecia fazer algum sentido claramente definido; com mais prestígio internacional, com uma maturidade política e mesmo – não menos importante para mim - com um sentido histórico mais justo, claro e conciso; isto independentemente das dificuldades que se faziam sentir no dia-a-dia dos cidadãos, que se diziam serem conjunturais e passageiras.

Eu e os outros colegas analisávamos a situação do País, nos intervalos das aulas e nos fins-de-semana, nas férias e sempre que havia oportunidade, lamentando os erros que iam sendo cometidos em vários sectores da Governação. Erros que muitas vezes nos pareciam de palmatória; e o mais estranho era que se nós, ainda estudantes do Liceu, já os podíamos ver, como é que o Governo não? O que não sabíamos (nem podíamos imaginar) era que nessa altura o regime já tinha embarcado num projecto criminoso para qual não havia volta. Nesse preciso momento Guineenses estavam a matar Guineenses e a enterra-los em valas comuns em Jugudul, Cumere e outros sítios, num genocídio que nem os colonialistas nos seus mais criminosos sonhos ousaram apenas imaginar.

Estava-se a formar, praticando em seres humanos, uma legião de assassinos ideologicamente alienados, amorais, sem escrúpulos, para os quais a vida humana não tinha a sacralidade dada por Deus, nem a inviolabilidade dada pela moral dos homens e nem a protecção dada por um Estado de Direito (se bem que nós nunca fomos um estado de direito). A ideologia por detrás desses actos que condicionou essa maneira de pensar que era criminosa na sua génese ainda faz o seu caminho até hoje.

Falar da ideologia, dos actos e os resultados actuais me faz voltar atrás pelo caminho percorrido no sentido contrário da marcha histórica do meu povo; por isso não caminho teoricamente com vocês rumo ao abismo, mas estou voltando para trás até encontrar um “ponto de restauro” e fazer o “arranque” a partir desse ponto, para que o sistema volte a normalidade. Porque no fundo só precisamos da “normalidade”. Precisamos apenas de voltar a ser seres humanos normais num país normal. A nossa Revolução será a “revolução da normalidade”. Uma Revolução que nos faça ser homens e mulheres normais, com sonhos e desejos normais, como casar, formar uma família, ter uma casa onde viver com os filhos, escolas, cinemas, ter estabilidade espiritual e política, alguma água e luz.

Isto para vos dizer que quando abordo as “questões da história” da nossa terra, faço-o de espírito tranquilo. E não tenho medo das consequências teóricas ou práticas, embora saiba que as vezes as ideias são mais demolidoras e mortais que balas. Isto para dizer que aquilo que escrevemos ou dizemos tem que ser ponderado ao máximo. Sei que as palavras têm o “poder de matar” quando usadas de forma incorrecta. Por isso quanto a “questão Guineense” eu pondero bastante no que digo e a forma como o digo, embora as vezes tenha que optar, entre dizer o que devo ou dizer o que é necessário - aqui a necessidade deve ser entendida como uma categoria filosófica - para o meu povo e País.

 Mas como posso falar disso sem antes regressarmos a nossa infância e a infância da nossa Nação Independente? E saber quando começou a anormalidade? Tenho a consciência de que não posso analisar e falar disto tudo, de todo um processo revolucionário e histórico num pequeno artigo como este. Mas é um começo e espero que sirva de inspiração a outros, que como eu, ainda não digeriram a destruição da sua vida pessoal e mais importante da sua pátria. E que escrevam finalmente sobre o que lhes vai na alma e que por fim digam tudo que nunca disseram numa catarse libertadora e aglutinadora de vontades para a mudança tão necessária como salutar para o bem da nossa Pátria. Venham, por favor, comigo a minha infância a infância da minha Nação:

Há muitos e muitos anos, numa outra vida, num domingo de sol radioso, quando tinha entre os meus doze a treze anos, o meu pai levou-me a casa do meu tio Bacar Cassama que na altura desempenhava as funções de Chefe de Casa Civil do Presidente Luís Cabral. Afinal íamos lá como convidados para um almoço ou qualquer celebração familiar, mas na verdade era para eu conhecer a família. A mulher de Bacar Cassama, Ana, irmã do meu pai, tinha estado na Luta de Libertação como muitos outros membros da nossa família. E nós, ainda meninos, quando fugiram, não os conhecíamos. Fugiram para a luta quando tinha dois ou três anos e como o pai do meu primo Congré (chamado assim por ter nascido na Luta na altura do histórico Congresso de Cassaca), o “famoso” camarada Marcelo Almeida da delegação do PAIGC em Dakar, de quem tinha lido (Cabral falara dele numa das suas conversas com militantes) de quem ouvíamos falar na nossa casa. Meu pai perdeu irmã e familiares na luta como tia Georgina que nunca chegamos a conhecer.

Foi a primeira vez que entrei na Presidência da Republica; lembro-me que tinha uma curiosidade imensa como todos os meninos de saber o que estava por dentro desses murros brancos e altos. Mas sai dali “desiludido” por aperceber que não havia lá nada de especial. Não sei o que esperava encontrar realmente, mas tinha que ser especial. Pois o simples facto de ser a “Presidência”, o Centro nevrálgico da Nação, onde se tomavam todas as decisões mais importantes para a nossa vida (não nós esqueçamos que se vivia numa ditadura e por isso o cargo presidencial era muito poderoso), onde vivia o primeiro Magistrado da Nação, achava que devia ter algo que não havia em todos os outros sítios que já tinha estado no curto tempo da minha existência. Mas passeando e deambulando de um lado para o outro com os meus primos que viviam na casa de Bacar Cassama como o Mimoso e Tchotcho me lembro de umas poucas vivendas mal cuidadas, arvores caiadas de branco e alguns soldados (ex guerrilheiros) displicentemente fardados, sentados no passeio ao lado de algumas mulheres, a tomar fresco debaixo de uma arvore. Mais a frente, noutra porta havia mais um senhor e duas mulheres, das quais uma penteava (“tissia”) o cabelo da outra em plena rua, que também sentados responderam aos cumprimentos dos meus primos e perguntaram pelo pessoal da casa de Nho Bacar. Tudo numa informalidade e naturalidade incompreensível para mim. Foi a minha primeira desilusão infantil com “poder”. Esperava mais da “Presidência”…

Uma vez já no primeiro ou segundo ano do Liceu o nosso grupo musical foi convidado para dar um espectáculo em honra de qualquer Presidente Africano de visita a Guiné (Agostinho Neto?). Depois da nossa actuação o Presidente Luís Cabral recebeu-nos por cinco minutos no salão nobre do Palácio da Republica. Hoje não me lembro de nenhuma das suas palavras (e acreditem que me lembro ainda de algumas palavras que ouvi quando tinha seis anos de idade) mas parece que debitou lugares comuns como a necessidade de “pega teso” e ser continuadores de Cabral ou qualquer coisa assim; tudo que todos os Dirigentes do Partido diziam na altura quando conversavam com jovens. Lembro-me de lá haver um grande quadro em tamanho natural ou ligeiramente maior de Amílcar que dominava toda a sala, por estar não numa parede como habitualmente, mas por estar de pé numa espécie de pedestal feira de panos de “pinte” e flores, se bem me lembro. Também me desiludi, pois não é todos os dias que se fala com um Presidente e na altura ser Presidente, Ministro etc., era uma coisa extraordinária, tanto para o próprio detentor do cargo, como para todo o povo. E como ficamos todos calados sem saber o que dizer, eu, para não parecer-mos indelicados ou insensíveis, inocentemente perguntei quem tinha sido o pintor do belíssimo quadro… Foi a minha segunda desilusão como “poder”; Esperava que o Presidente disse-se algo transcendental que ficasse gravado na nossa mente de jovens com letras de fogo… Esperava mais do “Presidente”...

Uma vez mais, quando tinha meus treze anos, levei a minha falecida irmã Antonieta ao Hospital da Marinha (naquele tempo havia hospital da Marinha e do Exercito, que também ocasionalmente cuidavam de civis) para consultar com o Dr. Jorge que era o medico dela. No banco na varanda do pavilhão que servia de enfermaria, estavam sentados ao nosso lado dois “velhos” combatentes, também a espera. Um tinha uma perna amputada e usava canadianas. Alguns minutos depois parou uma viatura volvo e dele desceu um oficial aprumado e bem trajado que subiu as escadas rapidamente entrando na sala de espera. Um dos combatentes disse “Olha este, no mato corria de um lado para o outro” agora é Chefe. Um dia esta terra vai mudar …” o outro, sem a perna direita, concordou vivamente. Perguntei quem era o senhor e reponderam-me que era Umaru Djaló (na altura era Vice Presidente do Conselho de Estado e Chefe de Estado Maior das Forças Armadas). E eles contaram-me que ele gostava de dizer, para demonstrar a sua importância, “se bu bai na Civil ami i Vice-Presidente, se bu bai na Militar ami i Chefe de Estado Maior…” Verdadeiras ou falsas estas histórias reforçavam o sentimento de que estávamos entregues a gente simplesmente incapaz e incompetente, independentemente da sua honestidade ou dedicação pesssoal a causa.

As desilusões não tinham fim; os erros eram diários tanto no campo da economia como no da cultura. Havia decisões e leis aprovados nas reuniões e gabinetes que por si só destruíam todo um ramo de produção que leva anos a criar. Era o diletantismo no mais alto grau. Uma improvisação constante de governação. Mas nesse dia apercebi-me que os “camaradas” já não desiludiam apenas o povo, mas também os seus “próprios camaradas”. O descontentamento já tinha chegado - demasiado cedo - as fileiras do próprio regime; e perigosamente (em estados como o nosso) tinha já chegado ao próprio garante do regime que eram as Forças Armadas. Foi a minha terceira desilusão sistémica com o “poder”. Esperava mais do “regime”…

No glorioso Setembro de 1973 proclamamos a Independência de um Estado, fruto de um processo notável mas penoso e prenhe de contradições, que tinha culminado com o assassinato incompreensível, estúpido e brutal de Amílcar Cabral e invasão da República vizinha da Guiné por comandos portugueses com as suas conhecidas consequências. Esse Estado não tinha moeda própria, não tinha ministérios, nem uma capital. Só tinha um hino e uma bandeira emprestadas. Sem esquecer algo incomensurável que também tinha: a coragem e crença dos seus fundadores; fundadores que infelizmente não tinham uma ideia clara da natureza futura desse estado, nem como as coisas se iam processar. Mas tinham fé no improviso; ou na sua capacidade de improvisar, ignorando que construir uma Nação num território liberto de um domínio colonial secular (mesmo que essa libertação tenha sido o coroar de uma Luta de Libertação exemplar considerada unanimemente uma das mais bem sucedidas luta de guerrilha no mundo), é uma tarefa assaz complexa.

 

As teorizações sobre como e que caminho seguir e a pratica do improviso simplista, há que dize-lo, surgiram na euforia dos consecutivos sucessos militares e diplomáticos que o Movimento Libertador foi tendo, com “relativa facilidade”, tanto na frente interna como na externa antes e depois da Independência. Isso criou uma ideia falsa, de que ao Partido tudo é possível (e permitido). A humildade dos tempos de Cabral deu lugar a uma “folie de grandeur”, (o Partido é dirigido pelos “melhores filhos” da nossa terra) que veio traduzir-se num sentimento de omnipotência (“Força, luz e Guia do Povo da Guine e Cabo Verde”). Esse sentimento de “grandeza e possibilidades infinitas” esteve na origem, de entre outras coisas, dos megalómanos projectos de cariz económico de Luís Cabral e do mito de infalibilidade e invencibilidade do Partido no seu todo e dos seus dirigentes em particular.

Mas infelizmente o facto de terem feito a Luta não os dava nenhumas capacidades ou motivações extras para a Reconstrução; Pelo contrário muitos estavam desgastados por anos de Luta; Alem de que por terem participado durante treze anos numa luta sangrenta, tinham vários problemas pessoais e outros de varias índoles. Muitos tinham perdido tudo da sua anterior vida pessoal e tinham que começar do zero. Conhecer de novo os filhos que tinham deixado pequenos. Resolver problemas de casamentos interrompidos, heranças perdidas etc. Etc., só para falar de alguns dramas que havia. Muitos tinham a vida familiar destroçada. A maioria nunca tinha vivido numa sociedade normal com uma economia de mercado, com leis bem estabelecidas e rotinas de funcionamento do estado normal.

Enquanto essas teorias eram desenvolvidas tínhamos que acordar as seis da manhã para ir por fazer fila (bicha) para comprar pão para o almoço e quando se precisava de açúcar ou óleo tinha-se que ir compra-lo no bairro de Cupelão escondido como se fosse droga pois os “Djilas” eram impedidos de vender esses produtos que traziam de contrabando dos países vizinhos. Nunca se permitiu que o campesinato desenvolve-se e que no país houve-se um mínimo de produção suficiente, nem para alimentar o mercado interno que fará para a exploração. A política económica do Partido foi desastrosa, a mais desastrosa de sempre neste território que chamamos hoje Pátria. E pensar que já em 1854 a ilha de Canhabaque já tinha um importante comercio com a Inglaterra … e nessa altura já se bebia champagne nas trinta e tal “pontas” do Rio Grande… (Ah Guiné).

 

O sector agrícola foi o primeiro a entrar em colapso com a Nova Politica Económica, depois foi o comércio e exportação. Em seis anos a economia estava de rastos. E como a economia de um país nunca soçobra sozinha, arrastou tudo na sua queda: seja a saúde (hospitais pararam de prestar um serviço digno desse nome), educação (as escolas primarias, ciclos e liceus viram a sua qualidade de ensino cair bruscamente) os transportes (terrestres, marítimos e aéreos) entraram em bancarrota e por ai fora; e claro a pesca, o turismo, a pouca indústria que havia, a electrificação, etc., tudo que é normal haver num país normal. Depois foi a vez de destruir o povo e as elites, funcionalismo público, os professores, as famílias, a moral e a sociedade civil no seu todo. E assim foram alegremente destruindo tudo o que a sua vista alcançava ou punham as suas mãos.

 

Em questões elementares, que hoje qualquer simples cidadão é conhecedor, como os mecanismos de actividade básicas para o funcionamento de um estado moderno, como Orçamento de Estado, os diferentes sectores da economia como o primário, terciário, imposto sobre o rendimento, a noção do tecido industrial e a sua importância, dirigentes de vários sectores da economia, eram nulidades completas. A própria noção de separação de poderes em Legislativo, executivo etc., para alguns deles era algo totalmente incompreensível”. Sabemos hoje que o Líder da Luta, prematuramente desaparecido, não deixou definidas muita coisa que se deveria fazer sobre a futura Governação. E como é óbvio teve-se que improvisar. E nós como Nação somos fruto da imprevisão. E como povo somos filhos do improviso. E do improviso ou se sai bem ou se sai mal.

 

 

III

 

A CONSERVAÇÃO NACIONAL VERSUS

RECONSTRUÇÃO NACIONAL OU

APENAS SOBREVIVER PARA “MANDAR”

 

 

Ai dos revolucionários que não sonham.

A questão que se coloca é apenas saber como lutam para viabilizar o sonho”.

 

Amílcar Cabral

 

E na base dos pressupostos anteriores, na altura, ao Movimento (chamado Partido) parecia que a Construção da Nação - que erradamente foi definido como Reconstrução (não havia absolutamente nada para reconstruir pois as poucas infra-estruturas havidas não foram destruídas pela Guerrilha, pois Cabral não permitiu. Houve por ex. planos para destruir a ponte de Saltinho, mas Cabral não deixou pois sabia que depois seria muito difícil e caro reconstrui-la de novo) - era uma coisa simples, bastava continuar o que se fazia no tempo da Luta Armada e de alguma maneira “adaptar”. Portanto os mesmos homens que fizeram a Luta foram “adaptados” partindo de princípio que se foram capazes de fazer a Luta podiam fazer também a Reconstrução Nacional. Crasso erro que pagamos até hoje.

 

No País real falava-se amiúde sobre isso, embora na altura, poucos compreendiam ou tinham a mínima noção do que diziam. Teorizava-se que conseguir a Independência económica era mais “difícil” do que a política - para alguns, até era mais importante e determinante, pois segundo Marx era a “base que determina a superstrutura”-. Havia ideias para todos os gostos e imaginações. Havia quem era pelo Socialismo, havia quem aconselhava pragmatismo, lembrando o exemplo Cabralista. Mas tudo era muito mais complicada do que as teorizações simplistas frequentemente feitas sobre este sujeito.

Durante os meus anos de crescimento, vim depois a conhecer Dirigentes (como se dizia) do Estado. Alguns Comissários (não sei onde foram buscar este nome que até na Rússia já tinha caído em desuso) de Estado mesmo; e muitas vezes estivem em cerimónias fúnebre, casamentos e festas populares ou particulares onde eles também participavam. No geral sempre me desiludiram, embora ainda não conseguisse confundir o regime com certos militantes que tinham a “desculpa” e o “perdão” de terem estado na Luta a sacrificar a sua juventude e por isso não puderem estudar. Já na altura apercebia que eles não estavam preparados para a tal Reconstrução Nacional que tanto apregoavam; não estavam preparados nem para a “Preservação Nacional” (ou direi “Conservação Nacional”?) do pouco ou do quase nada que os colonialistas tinham deixado.

Conseguiram fazer uma Luta vitoriosa e admirável é verdade. Mas na verdade a Luta - qualquer luta armada de libertação é um processo de improviso; é na verdade uma improvisação permanente. Pois como não existem manuais para fazer uma Luta de Libertação, apenas opiniões de alguém que participou numa ou outra luta, era um processo sem instrumentos de avaliação - como já disse, mesmo assim podia ser feita e chegar a bom porto, improvisando. Apreendendo com os erros, com as mortes vãs etc. Mas a construção do país colocava as exigências em outros patamares muito mais elevados.

 

Pois já não se tratava de expurgar erros e fantasmas num Congresso qualquer onde toda a gente é militante desse mesmo Movimento. Aqui os erros não podiam ser recuperados e como tal nunca o foram. Os assassinatos criminosos, a aniquilamento total do tecido económico, a destruição de toda a estrutura mental e a mundivisão de todo um povo - e a sua substituição por uma mão cheia de nada -, nunca foram restaurados. Aqui não se podiam aprender com os erros e expurgando asneiras com autocrítica e criticas construtivas seja lá o que isso era.

 

Na verdade arisco dizer que a Luta não poderia ser feita de outra maneira; pois durante uma luta armada, certos conceitos que na vida normal das Nações têm um grande peso, são deturpados ou deixam mesmo de existir. Pode-se roubar ao inimigo sem que isso seja crime, pode-se matar impunemente (e também morrer) sem qualquer consequência de maior. A morte torna-se normalidade em vez de ser algo trágico. Pode-se (deve-se) matar e ser louvado por isso. O heroísmo não é uma doutrina, é a consequência de actos quase que normais. A obediência cega é norma. Por isso fazer uma luta é muito mais fácil num “determinado sentido” do que construir uma Nação em tempo da paz.

Tivemos ministros e dirigentes no aparelho de estado que nunca conheceram os simples fundamentos teóricos de um estado moderno ou os elementares rudimentos do seu funcionamento. Isso por várias razões, como nunca terem vivido em estados organizados ou estudarem as teorias certas ou básicas de uma administração pública. Infelizmente tivemos directores de empresas públicas que se calhar nem o significado etimológico da palavra empresa sabiam. Tudo alicerçado numa espécie de legitimidade herdada e sagrada que transformava simples homens em super-homens. 

Alguns como o Nino Vieira e Paulo Correia - para citar apenas os mais conhecidos e que vieram a desempenhar papéis importantes no nosso processus histórico - aceitaram estudar (o nosso professor de Português Sr. Capelo e um outro, davam aulas a Nino Vieira também); outros, para não ferir as “suas susceptibilidades”, foram mandados para Cabo Verde onde estudaram; uns mais velhos, doentes, incapazes ou mais obtusos não acharam isso necessário; de todas as formas “iam mandar para sempre”. Tirando o thymos, a parte “tímica” das suas almas, o sentimento de pertença a algo grandioso e o desejo inconsequente “de fazer por fazer” não havia mais nada.

Aqui vou inserir uma história que já tinha ouvido na minha juventude - mas que ao ler ontem, escrita por Norberto Tavares (Cote) segundo um relato de Lay Seck (que na altura era Presidente da Região de Gabu e Alto Dirigente do Partido/Estado), teve o condão de me avivar a memória; conto-a aqui para dar uma ideia aos Jovens como as coisas se passavam e passaram nesses primeiros tempos. É apenas uma história entre centenas: Na reunião anual de balanço das actividades e progressos do Presidente Luís Cabral com os Presidentes Regionais (a reunião na verdade era para fazer um balanço anual da governação dos Presidentes Regionais; o que foi feito, o que faltava fazer etc., em prol do desenvolvimento das Respectivas regiões. Pois os Presidentes recebiam do Orçamento do Estado verbas para serem aplicados no crescimento económico e social das suas Regiões e tinham que prestar contas) aconteceu um facto deveras curioso: quando chegou a vez de António Borges, Presidente da Região de Cacheu, ele tirou do bolso um envelope com as verbas que tinha recebido um ano antes e entregou-a dizendo que “estava completa, como o recebeu e não faltava um tostão” e “por isso ninguém podia dizer que tinha malbaratado o dinheiro do estado”.

Depois vim a conhecer pessoalmente este Dirigente e muitos anos depois, já licenciado e a trabalhar para Ministério das Obras Publicas, numa viagem ao exterior tive a fortuna de sentar ao lado dele (ia a uma conferência internacional de arquitectos e ele ia de ferias) e falamos de várias coisas durante umas duas horas e meia. Contei-lhe que quando ainda andava na quinta classe ele me mandou prender (eu, Saliu, Filinto, Helder e Mario); já não se lembrava do episódio, mas riu com gosto do meu relato. E vi que ele não era desprovido de inteligência ou outras capacidades que a anedota queria supor. Então porque é que ele agiu dessa maneira estranha? (Nessa altura muita gente, de forma diversa e em sectores diferentes, agia de maneira estranha). Ele agiu assim por algumas razões que explicarei, embora não nego que poderia haver uma dose de incompetência misturado com indiferença que o relato quer  sublinhar. Portanto, seja como for, este episódio serve para demonstrar duas coisas:

A primeira é o facto notório do impreparação para o cargo de Presidente Regional (o que motivou a anedota). A segunda era outro sentimento mais profundo. O presidente da Região com esse gesto queria dizer coisas que não podia dizer em voz alta, que tinha que ver com a sua dignidade por um lado e com o medo por outro. O problema é que, parece que nos anos anteriores, os Presidentes Regionais tinham sido acusados (e censurados) de terem usado mal o dinheiro dado (dotações do orçamento de Estado) pelo Governo Central as Regiões; isto apenas para não falar de acusações de seu uso indevido em benefício pessoal. Naquela altura já os mais altos Dirigentes do Estado andavam em guerras pessoais e ao nível dos órgãos internos do Partido, em vez de Governarem (também não sabiam governar diga-se). Já havia antagonismos entre Luís Cabral, Francisco Mendes, Nino vieira (para só citar alguns) e cada um com os seus partidários e facções de apoiantes.

Portanto o Sr. António Borges sabia que ninguém estava verdadeiramente preocupado com o desenvolvimento da sua Região, por isso era mais seguro trazer dinheiro recebido e entregar a quem de direito (nem imagino o que foi feito com esse dinheiro). Assim ninguém (nenhum inimigo dele, de qualquer facção) o poderia acusar de desvios. E isso, claro, para ele e para muitos, era mais importante do que desenvolver a Região de Cacheu. Alem de que, na verdade é muito difícil desenvolver as Regiões: tinha-se que envolver-se com projectos (integrados ou não, de desenvolvimento ou não, de cariz social ou macroeconómicos, sectoriais ou regionais, inter-regionais ou intra-regionais, ambientais, sustentáveis, etc. etc., uma dor de cabeça imensa; e alem de que dessa maneira sempre era possível, por mais honesto que se fosse, ser acusado por algum maldoso de dilapidar fundos do Estado. Assim, actuando dessa forma, a sua dignidade, a sua pele, o seu posto estava a salvo e não tinha medo de nada, pois ser acusado de não ter Desenvolvido a sua Região era o menos importante. Isso nunca fez alguém perder o seu lugar (curo). A incompetência nunca foi um motivo para demitir aalguem neste Estado. Já se tinha dado o início da inversão de valores na nossa sociedade. O que devia ser mais importante já era o menos importante. A normalidade estava a dar lugar a anormalidade paulatinamente.

O inicio do descalabro total do nosso País - independentemente de outros factores não negligenciáveis, - adveio da fatalidade de termos tentado desenvolver num antigo território, recém-libertado da dominação colonial, uma nova sociedade, “socialmente mais avançada”, sem primeiro erigir uma Nação. Podem me dizer que uma coisa não esta separado da outra, mas dir-vos-ei que é possível desenvolver economicamente um território, mesmo debaixo de domínio colonial e muitas vezes, por paradoxal que possa parecer, não apesar disso, mas por isso mesmo. Mas quando um povo é liberto desse domínio, já não pretende “apenas” desenvolvimento, mas acima de tudo o reconhecimento. E a dignidade de um povo não é um conceito abstracto, ela começa na qualidade dos dirigentes que se tem. Na qualidade das chefias que se tem. Quantas vezes, como povo, fomos envergonhadas interna e externamente pelos nossos governantes?

 

Por isso não é somente contraproducente ter dirigentes analfabetos, estúpidos, ridículos, desprovidos de conhecimentos e inteligência, como é mesmo criminoso e contra o povo. Tanto aquele que nomeia para dirigir o povo - numa determinada função - uma pessoa incapaz para o cargo, como a própria pessoa nomeada, deviam ser julgados e punidos pela lei. E a punição deve ser exemplar; isso dissuadiria os incompetentes de andar a fazer corredores para serem nomeados, como faria a quem tivesse no momento essa autoridade, pensar duas vezes antes de nomear um carreirista incompetente apenas porque é amigo, familiar ou da mesma cor política.

 

O que me faz confiar absolutamente no nosso povo é que já na altura, nós o povo, já estávamos de certa maneira mais adiantados que o Partido dirigente. O povo, a Juventude mais, embora contasse anedotas sobre os disparates dos seus dirigentes, lhes “perdoava” dizendo “Coitados não sabem o que fazem, não têm culpa, vieram do mato”, mas mesmo assim o povo trabalhava seguindo as “orientações do regime” porque ainda acreditava e por isso, como já disse, o regime no seu todo ainda não era posto em causa, apenas certos elementos e dirigentes do regime. É daqui o nosso envolvimento juvenil, pois independentemente das desilusões diárias, nessa altura a maioria de nós ainda acreditava no porvir maravilho prometido por Cabral.

 

Mas o acreditar fez com quem o povo inacreditavelmente não revoltasse nem uma única vez durante todos esses anos. Houve, é certo, momentos de cólera localizadas ou de desespero individual ou colectivo, prontamente (e brutalmente) silenciados, mas nunca se transformou num movimento de cariz mais ou menos nacional que fizesse pelo menos estremecer os poderes constituídos. Embora cada vez mais se cometiam injustiças e crimes sem fim.

 

Mas isto aconteceu também porque o próprio povo, que era o principal perdedor deste sistema (a vítima), ao acreditar acabava involuntariamente por participar dos actos que legitimavam o regime, sejam eles comícios, cerimonias oficiais nos dias de aniversários sagrados do Partido – como a Fundação do Partido, Proclamação da Independência, Assassinato de Amílcar, dia das FARP, o aniversário do 14 de Novembro depois, etc., que por sua vez foram transformados em feriados do País e festas do nosso povo – sejam eleições manipuladas para a Assembleia Nacional Popular, sejam em cooperativas agrícolas, de construção, sejam em projectos de desenvolvimento (que de desenvolvimento só tinham o nome) etc., etc. Ao participarem, as vítimas do regime perpetuavam-no, enquanto o sistema em si ganhava uma vida própria, independentemente do desejo de alguém de nele participar. Isso viria a ser manifestamente nefasto durante o sanguinário e criminoso ajuste de contas do Regime com os Comandos Africanos, Régulos e outros elementos do povo considerados nocivos.

 

Aqui vou dar um exemplo, um só em centenas, da “participação” do povo (da Juventude - neste caso - de que eu pela minha idade fazia parte na altura): Estudante do Liceu, um dia fui convidado a uma reunião onde o responsável Juventude do Partido no Liceu ou do Sector Autónomo se não me engano, nos falaram de uma Granja que o Grande Poeta Guineense José Carlos Schwarz que falecido com apenas 27 anos (um Jovem como nós portanto) tinha oferecido a JAAC, como preito e sua contribuição para o País que o viu nascer. Esse gesto calou fundo na minha alma. Dar toda uma granja (quando se tem irmão, mulher e filhos) a Juventude do Partido era de um altruísmo só comparável ao de Amílcar. O que se nos pedia, aos seus olhos, era simples: oferecer os nossos domingos e feriados (se calhasse) para ir lavrar nessa propriedade e assim com o nosso trabalho ajudar a dignificar o gesto de J.C.S. ; que jovem amante do seu País não se ofereceria como voluntário para tão nobre missão? Depois de três domingos ao sol a cortar e a mondar relva com catanas - nessa altura os Liceus e Ciclos Preparatórios tinham enxadas, catanas, baldes, mangueiras, etc., para as aulas de “trabalho produtivo” (infelizmente na maior parte das vezes eram trabalhos completamente “improdutivos” e até “daninhos” que deviam se chamar assim mesmo “aulas de trabalhos daninhos”. Eram trabalhos inventados todos os dias sem nenhum critério. As vezes metiam-se alunos em camiões para ir capinar na “volta Bissau” onde passavam o dia a comer caju, pois quando chegavam lá descobria-se que por ex: tinham esquecido enxadas no Liceu. E como o camião só voltava a tarde, era um dia de pick nick. Se alguém quisesse por uma certa ordem naquele caos e tentar saber porque é que não se levaram instrumentos de trabalho, ele viria a saber que o responsável do armazém não tinha ido trabalhar. Se insiste-se em saber porquê, este “responsável de armazém” diria que a sua filha tinha adoecido e tinha levado a criança ao hospital ou que tinha morrido alguém da sua família nesse dia e etc. e tudo ficaria na mesma) – percebi que aquilo era pura perda de tempo e energias. Qualquer estudante que ali se deslocava desde as dez da manhã até ao fim do dia percebia que aquilo era apenas um exercício de auto-glorificação gratuita. Ninguém sabia o que devíamos plantar, se era feijão “mancanhe” ou “fava”, couve ou cana-de-açúcar; Havia quem achasse que o melhor seria arroz que ao que parece o “Projecto chinês” podia oferecer. Ou mangos que iríamos buscar a Granja de Bissau; E nesse terceiro Domingo com um sol inclemente, com 40º a sombra, atirei para o chão a minha catana e disse que “para mim chega” e depois de alguma discussão com os outros fui-me embora. Alguns perceberam meus argumentos e seguiram o meu exemplo, outros (a maioria) ficaram. Eu, a verdade seja dita, como não era membro da JAAC - era simpatizante, sim havia essa categoria - era mais livre nas minhas decisões, mas mesmo assim na segunda-feira tive uma forte discussão com o “responsável” da J.A.A.C. do Liceu (António Sedja Man) e outros militantes a quem a minha atitude não agradou e por ser um “mau exemplo” para os outros atendendo de quem partia.

 

Fiz-lhes ver que a minha decisão não era de carácter político, era movido por puro pragmatismo e bom senso; e que nenhum lavrador lavra uma vez por semana e nós não sabíamos lavrar, éramos simples estudantes, diletantes e estávamos a destruir toda uma propriedade com as nossas improvisações. E no fim nenhum resultado sério obteríamos. Alem de que nem sabíamos o que faríamos no futuro com a produção (isto é se algum dia houvesse algo parecido com uma produção). Propus alugar isso a algum agricultor e com o dinheiro da renda fazer algo pela Juventude. Mas nessa altura o bom senso e o pragmatismo não eram valorizados. Claro que continuaram a fazer o mesmo até verem que não dava nada, mas nessa altura eu já tinha ido estudar no estrangeiro.

 

Mas será que eu era mais inteligente o que os outros? Claro que não. Será que eu já entendia que as coisas estavam erradas na sua origem? Claro que não. Se me tivessem convidado para dar a minha contribuição em outro projecto (como veio a acontecer) que entendesse que era útil ao meu país, não hesitaria um instante, iria outra vez com muito gosto.

 

Não abandonei o projecto Granja J.C.S. por achar que ele era mau (achava a ideia de jovens trabalharem para o seu país nesse contexto excelente) só a sua concretização prática que me parecia errada. Ainda não entendia que a própria ideia, a ideologia, o futuro preconizado eram errados por si só, independentemente da maneira de o fazer. O conceito base era errado e criminoso. Como era errado todo o conceito por baixo da nossa liderança económica. Mas esta história é apenas uma entre milhares para se entender como as coisas se passavam nesse tempo, por isso não me vou alongar sobre o mesmo. Pois esta maneira de fazer as coisas, esta filosofia, esta concepção do mundo, era omnipresente; não era excepção, era a regra. E o nosso povo participou em milhares de experiencias sem nenhum resultado, em nome de um futuro grandioso, acreditando que estava a ser liderado por gente que sabia concretamente por que caminho seguia. Porque na verdade o Partido possuía quadros que tinham o dever de previrem que como a governação era feita só podia levar a bancarrota total do país. Mas nada fizeram sobre o que era realmente importante: Enquanto o povo era sacrificado, obrigado a sofrer até ao limite, com privações de toda a ordem, com filhos morrendo nos hospitais sem medicamentos, com fome, com falta do mínimo para sobreviver, vegetando abaixo do limite mínimo para o ser humano definido pela Organização das Nações Unidas, perdiam tempo em discussões idiotas sobre quem era “burmedjo wak” e quem era “preto nock”. Parvalhões. Mas se fossem só parvalhões… mas também eram criminosos. Uma espécie de criminosos sem noção… Mas disso falarei mais tarde.

 

Uma vez (sentados na praça dos Heróis Nacionais, no banco que fica em frente a sede Nacional do Partido), numa discussão teórica com os meus companheiros do Liceu sobre a “bondade intrínseca” das decisões do partido, depois de termos analisado e dissecado um certa decisão política do Governo em todas as suas vertentes e implicações, chegarmos a conclusão gnosiológica que era injustificável sob qualquer prisma e moralmente indefensável, um dos meus companheiros (acho que foi o Adul Ghadri Djaló, que já não vejo há mais de dez anos) me disse algo que consubstanciava a toda a confusão ideológica nas nossas cabeças com relação ao Regime; Depois de esgotar os argumentos e ser obrigado a concordar com os meus pontos de vista, com a capitulação patente no olhar, o Adul Ghadri (meu pobre irmão tanto tempo longe da sua família e da sua morança) me disse: Mas o Partido deve saber o que anda a fazer. Não pode ser que todo o Comité Central e o próprio Bureau Politico estejam errados. Talvez nós não conseguimos discernir a amplitude das coisas, mas eles sim. Eles não vêm apenas árvores (como nós), eles vêm a floresta inteira. Na verdade este meu companheiro como todos nos, tínha a necessidade premente de acreditar em algo. A nossa mente não podia aceitar que estávamos a ser dirigidos por uma cambada de doidos. Se nós éramos seres humanos com capacidades de pensar, analisar e discernir o certo do errado, vivendo numa sociedade que acreditávamos justa e equitativa, como é que os nossos dirigentes não?

 

Hoje, depois de tantos anos passados, esta dor, de nos terem enganado miseravelmente, de nos terem feito acreditar, de ter acreditado no sonho, não deixa o meu espírito descansar e não me deixa ser feliz um dia ao menos. Por isso o meu ódio é imenso. Por terem destruído impunemente um Pais uma nação e um povo. É desta dor que vos falo quando digo que é a dor com que vou morrer. Com esta dor vivo silenciosamente, com esta dor rio, canto, danço, choro, conduzo, namoro, olho o por de sol, sinto o cheiro maravilhoso da terra molhada pela chuva quando ando pelas ruas e campos da Guiné. Com esta dor silenciosa durmo todas as noites e acordo todos os dias; esta dor, volvidos tantos anos, ainda me faz acordar durante a madrugada a desejar profundamente que o meu país voltasse ao ponto de partida e fazermos tudo de novo, correctamente, cuidadosamente como devia ter sido feito: Amarmos o nosso povo acima de tudo, amarmos cada criança, cada adulto, cada velho, que chora por não terem nada, nada de nada, nada além do desespero e desilusão infinda.

 

Infelizmente para Adul Ghadri e para nós todos, o Partido não sabia o que andava a fazer. O Conselho Superior de Luta (Comité Central actual) também; e muito menos o Bureau Politico ou lá como se chamava nesse tempo (C.E.L.?). Não enxergavam nem as árvores, para não falar da floresta. Estavam totalmente a leste, perdidos ideologicamente, economicamente e socialmente, cometendo ainda por cima crimes atrás de crimes.

 

 

IV

 

CAPITÃO ABEL SOARES DA GAMA

OU TENENTE RAUL TEIXEIRA OU

 OS NOVOS HEROIS DO NOSSO POVO

 

 

“Li o seu artigo sobre a mudança dos Signos da Nação, onde você falou de todos os comandantes e heróis da Luta, de que gostei muito… Mas houve um erro imperdoável que não podia deixar de vir até aqui te dizer: Não falas-te do maior de todos os guerrilheiros, não falas-te de N`bana Cabra…”

 

N., meu amigo de Mansoa

 

      Amadora, Agosto de 2009

 

Quando a Luta de Libertação terminou, como já disse, conheci alguns nossos familiares que nela participaram sem nenhum benefício posterior, como aqueles que morreram antes do seu fim. Mas não é por não terem morrido que eram menos gloriosos que os outros, pois se a morte na Luta faz do combatente herói, os sobreviventes também eram os nossos heróis, os heróis vivos. E desses lembro-me hoje com saudade, pelas suas juventudes e amor à sua pátria, do Tenente da Marinha de Guerra Raul Teixeira e do Capitão do Exército Abel Soares da Gama; ambos sobrinhos do meu pai e portanto primos meus que participaram na epopeia de Cabral (os que ajudaram Amílcar a cumprir o Juramento). Eram ambos muito jovens na casa dos vinte ainda e cheios de promessa, de vida e aventura. Raul morreu cedo, muito cedo, triturado pela besta de faces vermelhas em que transformou-se o nosso País. Ainda me lembro dele como se fosse hoje, alto e magro, no seu garboso uniforme branco da marinha, impecável e sorridente. Para mim (ainda com os meus doze anos) era o protótipo de herói vivo que volta da Guerra como o Odissseu da mitologia grega. Quando nos vinha visitar, como a educação mandava, para prestar respeito a minha mãe, sua tia, ficava o dia inteiro na nossa casa e a meu pedido, contava-nos maravilhosas histórias da Luta de Libertação, do heroísmo do nosso povo, da nossa gente orgulhosa, com um orgulho que lhe fazia brilhar os olhos, embora já nessa altura sofresse dificuldades enormes e o salário dele nem dava para sustentar a mulher e as duas filhas pequenas. Coisa de que nunca falava, pois para ele era tabu criticar o Partido ou os Dirigentes. Isso não aceitava nunca.

 Acho que na nossa casa encontrava uma certa paz de espírito que já não achava nos quartéis, pois pessoa dócil e amável, tinha tanta esperança no seu País, no futuro do nosso povo que, quando a minha mãe lhe dizia com pena: “mas Raul, você já com o Quinto ano do Liceu quase completo, podias ter ficado e já hoje ter ido estudar e ser alguém; abandonas-te tudo e fugis-te para o mato (a fuga desses sobrinhos do meu pai trouxe-lhe alguns dissabores com a Administração colonial. Eles tinham fugido com outros rapazes de Chão de Papel, sem se despedirem da família. Até hoje não sei se o meu pai foi informado antes de eles fugirem) assim sem mais sem menos… o que ganhas-te com isso? Deixava a minha mãe falar, ralhar e revoltar-se com a sua triste sorte (pois ela já sabia da vida difícil que ele tinha). Depois ele ria, ria com gosto, num riso cristalino como o de uma criança, num sorriso desprendido, que me fazia rir também sem saber porque, maravilhado apenas. Depois sorria calado, um sorriso onde queria significar quão inocente era a minha mãe (e eu calado sem ousar respirar escutava outra vez as palavras dele que já sabia de cor) e sendo a bondade em pessoa, ingénuo e crédulo perguntava: E a Independência tia? A Libertação do nosso País? A construção da felicidade do nosso povo? A vida de Amílcar? Tia Lourdes, entende que tudo Isso é de longe muito mais importante e grandioso do que o meu destino pessoal, a minha vida ou da minha família…

 Quando ele dizia isso apetecia-me bater as palmas, sentia um orgulho imenso nele, nesse jovem que acreditava tanto no nosso porvir e no nosso povo. Mas ficava apenas a olhar para ele e a sofrer intimamente por não poder haver mais no futuro uma outra Luta de Libertação onde eu poderia quando fosse grande também lutar ao lado de Amílcar para Libertar o nosso povo. E quando o meu Pai chegava do trabalho a primeira coisa que lhe perguntava era porque não foi a Luta também. Ele me dizia que não pôde fugir para a Luta como o Raul porque já era mais velho, casado e tinha filhos (eu e meus irmãos) e não poderia abandonar a minha mãe assim sozinha. Mas eu achava que mesmo assim devia ter feito esse sacrifício, mesmo que passássemos fome, sozinhos, com a nossa mãe. Ele ria e dizia-me para não criar mitos e nem endeusar nada nem ninguém. Hoje percebo de que falava, mas lembro que olhava para mim de uma forma estranha, sem entender esse meu entusiasmo pela Luta, pelos Heróis, pela Nação…

 Minha mãe ouvia o Raul em silêncio e respeitava os seus pontos de vista, mas mesmo assim “não entendia”, pois sabia que ele sofria dificuldades imensas (as vezes ela é que tinha que dar óleo alimentar, arroz ou peixe) para sustentar a família. Pois quando depois do almoço, a minha mãe lhe dizia para ficar também para o jantar, ele recusava e preferia levar para casa alguma coisa para ajudar a família. De facto nessa altura nos quartéis havia penúria e os artigos alimentares eram apropriados pelas chefias e desviados para os familiares desses. Os salários reais eram insuficientes e os soldados só podiam sobreviver através dos produtos alimentares que eram vendidos a preço reduzido dentro dos quartéis. Isto é quando havia e quando não era desviado pelas chefias.

As dificuldades foram tantas que ele e a mulher acabaram morrendo (a minha mãe pensa que de fome e penúria entre outras coisas) cedo, na flor da idade e deixando as filhas ao Deus dará. Ano passado no mês de Maio vi em Bissau duas das filhas do bem-aventurado Tenente Raul Teixeira, já adultas, mulheres feitas, bonitonas e casadoiras, isso me alegrou de sobremaneira mas mesmo assim fiquei triste por ele não as ter podido ver assim adultas, depois de tantos sacrifícios. Gostava de um dia lhes contar como era o pai deles, esse combatente da Liberdade que não obteve nada de nada pelos anos que passou lutando; nem o reconhecimento simples. São estes “heróis vivos” que o próprio Partido não deu valor em tempo de paz; heróis que o próprio partido desprezou e não deu dignidade. Dar dignidade não é dar dinheiro e mordomias, “dar dignidade” é permitir - criando bases para tal – sem distinção alguma de pertença partidária ou tribal, que cada ser humano se desabroche e se desenvolva material e espiritualmente até onde as suas capacidades pessoais intrínsecas o permitam.

 É daqui também a revolta e o ódio profundos do meu pai: das irmãs, dos sobrinhos, de tantos familiares mortos na Luta e depois dela ingloriamente. Meu pai que foi a enterrar Raul Teixeira, não assistiu a morte do seu outro sobrinho o Capitão do exército Abel soares da Gama. Ele tinha falecido em Portugal uns anos antes por culpa da Guerra de 98.

Quando o Capitão Abel Soares da Gama, meu primo, nosso herói, morreu há uns três anos, quis o destino que eu estivesse em Bissau e fui (em representação do meu pai, o mais velho da família, com a minha velha mãe ao “Choro”, prestar o meu respeitoso tributo a esse outro herói esquecido do nosso povo. Quando chegamos a “Cobon di Bandé” a casa do seu pai – casa essa que o meu pai tinha herdado e declinou (por tradição da tribo papel, o meu pai, que era sobrinho, era o herdeiro das três casas do pai do Capitão Abel Soares da Gama; mas a quando da morte do tio Domingos (pai do Capitão Abel) e foram ter com ele para assumir a herança recusou e disse que deviam ser para os filhos. E nada o demoveu dessa decisão embora os próprios filhos do defunto o tentaram convencer que estava errado e devia por respeito aos nossos ancestrais aceitar a herança. Lembro que todo este episodio me fez muita graça. E um dia depois de ouvir todos os seus argumentos para a recusa e rebate-los pelo simples prazer de discutir ele me disse que independentemente de tudo “simplesmente não era justo” os filhos não herdarem bens do seu Pai e ele sobrinho herdar. O seu sentido de justiça falou mais alto do que a sua pertença tribal. E isso me bastou. Ele, já era da geração destribalizada, nunca aceitou esse costume envelhecido do nosso povo, que considerava resquícios de um passado remoto que tínhamos que ultrapassar para o bem do nosso próprio povo) - e olhei para a miserável catre em que o seu corpo estava estendido e as minhas lágrimas foram apenas de ódio, de profundo ódio. Não de pena, porque heróis “ka ta misquinhado” ou como disse Adriano Ferreira: “tia Isabel Soares ka bu miskinha bu fidjo matcho”.

Não chorei pela sua partida, pela sua morte miserável, sem cuidados médicos capazes. Chorei pela sua perda e pela perda de tantos e tantos iguais a ele que não conheci e nem conhecerei; Destruídos em vida em nome de um ideal falhado, trucidados numa maldade imensa. Podemos no nosso perfeito juízo, perdoar quem destruiu um país e uma nação que são de todos nós sem nenhuma excepção? Podemos sendo patriotas absolver quem destruiu os sonhos de várias gerações do ser humano Guineense, do povo Guineense no seu conjunto? Há maior crime que este? Algo pode suscitar maior ódio que isto? Se houver me digam para abrandar o meu coração por fim e morrer em paz.

 

Por isso quero que se entenda quem é o Guineense, como viveu a sua vida pessoal e comum ao longo de séculos de resistência e ao longo destes poucos anos de Independência quando por fim “foi livre”. Quero entender como ele foi maleado, condicionado, reprimido, complexado e por fim quebrado na sua essência como ser humano para deixar de ser um homem digno como os seus gloriosos antepassados para se tornar neste simplório que tudo aceita. Quero que entendam como a sua alma foi vilipendiada e pisada e para se transformar neste ser amorfo que na maior parte das vezes, durante a sua inteira existência, vive no medo e na vergonha.

 

Quando o primeiro Guineense morreu na gloriosa Luta de Libertação, foi a primeira vez que alguém morreu pela Guiné inteira e não apenas pelo “chão dos seus antepassados”. E é esse sacrifício, o sangue derramado que consubstancia uma transformação qualitativa (que depois pelo numero de mártires combatentes seria quantitativa), revolucionária, que nos faz pela primeira vez na nossa História, mártires defensores da nossa Terra e não do nosso Chão como os nossos avós. E com isso deixamos de ser Mancanhes, Nalus e Beafadas para sermos apenas Guineenses.

 

É este o significado último da gesta de Cabral, a nossa transformação em Guineenses por obra e graça de um sacrifício comum ajuramentada com sangue. Por isso quando digo que Cabral fez de nós Guineenses não é retórica - não é simplesmente uma opinião fundamentada no phatos de uma heroicidade incomensurável -, é um facto histórico, social e (saindo da realidade profana) espiritual. Pois os Heróis da Luta são de facto mártires guineenses no sentido nacional e não mártires de uma ou outra tribo. E é aqui que reside a génese da minha compreensão e do meu pensamento sobre a Questão Nacional que espero que entendam, embora saiba que as minhas limitações não me ajudem a explicar melhor, para que me entendam cabalmente. Como me faz falta o Filinto Augusto…

 

Estes imortais, Vitorino Costa, Pansau Na Isna, Justino Lopes, Rui Djassi, Quinta, Osvaldo Vieira, Simão Mendes, Titina Silá, António Nbana, Lino Correia, Canhe Nan Tungue, Aerolino Cruz, Seco Alor, Corona, Corca Só, Guerra Mendes, Francisco Mendes e tantos outros que não conheci - mas que me doe o coração não poder dizer os seus nomes – que deram a sua vida, morrendo no credo imortal do bravo Domingos Ramos, que na hora derradeira da sua vida, sabendo que ia entrar nos vales da morte, escreveu com o seu próprio sangue estas belas palavras, dirigidas ao homem que lhes deu o orgulho de viverem e morrerem se preciso for, pelo ideal mais sagrado que existe, o da libertação da Pátria do jugo do opressor. Nunca é demais lembrar essas imortais frases que terminam assim:

 “… é assim a Luta de Libertação, camarada Amílcar, uns têm que ficar pelo caminho… ”. Este jovem tinha entendido para além da ordinária compreensão humana que na Luta de Libertação jogava-se o destino de um povo, perante o qual, a vida humana pela sua pequenez e transitoriedade não tinha significado algum.

 

São estes heróis que durante anos não homenageamos nem com palavras e nem (principalmente) com actos. E pior, esquecemos de contar aos nossos filhos e netos quem eles foram, onde e porque morreram. Deslembramos de dizer aos nossos descendentes que eles eram os descendentes directos dos míticos heróis do nosso povo que nos séculos passados nos dignificaram.

Por isso entendo que é meu dever falar obrigatoriamente um pouco do nosso passado comum, da nossa epopeia e dos nossos heróis, porque acreditem que uma Nação sem memória, sem heróis, sem orgulho de ser, não existira por muito tempo. Os nossos heróis dignificaram a nação com o seu combate e a sua dedicação à causa comum; e por fim com o sacrifício supremo que pode ser pedido a um ser humano, deram as suas vidas por esta Nação. Com as suas mortes, o seu sangue derramado, tornou-se o adubo e a semente, de onde emergiu esta flor que é a Guiné Independente. Por isso digo que estes heróis não devem ser esquecidos, por serem um dos pilares mestres em que assenta a nossa percepção da Nação.

Eram estes os “novos heróis” do nosso povo, esses da Luta de Libertação; eram já heróis diferentes dos antigos na sua própria essência. Eles - através da visão de Cabral – já não lutavam pelo “seu chão” - o chão tribal -, de cada tribo em particular, mas lutavam pelo “chão de todas as tribos”. Eles são um novo tipo de heróis. Herói que não tem tribo e nem chão: o herói universal, atribal de todo o nosso destribalizado povo. Por isso vós exorto a amarem os vossos compatriotas Guineenses sem olharem a pertença tribal de cada um. Amarem apenas porque são Guineenses como nós e por terem sofrido tanto como vós, por serem parte de um povo digno e orgulhoso. Porque daqui a centena de anos os nossos netos caminharão juntos nesta terra e serão o fruto do que fizermos hoje em dia.

V

A ILEGITIMIDADE E O GERME DA DESTRUIÇÃO 

OU COMO HERANÇA: O TRIBALISMO, O RACISMO, O ÓDIO, A POBREZA, A MORTE, A DESTRUIÇÃO

 

 

Legitimidade não significa justiça ou direito em sentido absoluto; é um conceito relativo, que existe nas representações subjectivas dos povos.

Max Weber

 

 

 

O Regime que vigorava no nosso País durante este tempo de que vos tenho falado era em alguns aspectos similar a outros ditatoriais em África mas com diferenças substanciais. Todos esses regimes saídos das Lutas de Libertação Nacional eram alem de totalitários, baseados em partidos de massas, ideologicamente coesos, que lhes davam uma pseudo-legitimidade para criarem sociedades novas. Isso os fazia serem mais arrojados e destruidores do que as outras ditaduras Africanas personalizados por um só homem como o caso de Mobutu no Zaire, Bokassa na R. C. Africana, Idi Amin Dada em Uganda, etc.

 

Estas outras ditaduras africanas eram essencialmente criminosas e ou genocidas na sua essência, mas depois da morte do seu criador deixam geralmente de existir. Pois no fundo a as governações destes últimos regimes não iam além da manutenção de certos serviços básicos herdados do Colonialismo como os hospitais, fornecimento de electricidade e água, alguma função pública; e por cima desses serviços um simulacro de ordem musculada assente em alguns mecanismos do poder como a polícia e o exército para a preservação de uma ordem social assente nas tradições mais retrógradas das suas sociedades e tribos, que na falta de uma ideologia nacional eram baseadas em chefes tribais. Ou como dizia Amílcar Cabral “Alguns estados africanos independentes conservaram as estruturas do Estado colonial. Em alguns países, apenas se substituiu o homem branco pelo homem negro, mas para o povo tudo ficou na mesma. (...)”.

 

Falo desses regimes comparando-as aos Regimes saídos das Lutas de Libertação Nacional, para se entender a essência criminosa da nossa. Pois só depois de estarmos de acordo, um acordo de consenso nacional (e não apenas pela constatação e compilação de factos) de que houve neste País, depois da Independência, um regime criminoso e genocida que ao contrario do dos Nazis (que “exterminavam outros povos”), o nosso absurdamente exterminava o seu próprio povo.

 

Estes regimes, iguais ao nosso, pecavam pela incapacidade gritante de promover um desenvolvimento social e económico sustentável para as suas sociedades; e muito menos organizar e aglutinar o povo num projecto nacional comum que por sua vez sustentasse esses regimes do ponto de vista formal e ou ideológico que permitisse o desenvolvimento de uma base de legitimidade formal, plausível e a longo prazo. Com isto quero demonstrar que independentemente das formas de que se revestiram as revoluções, golpes ou levantamentos que puseram fim a estes regimes, em última analise, o que destruiu a maior parte destes regimes fortes foi uma falta de legitimidade gritante.

 

Eles fundamentavam a sua legitimidade na capacidade de proporcionar ao povo um padrão de vida melhor e mais elevado do que o Colonialismo; o que manifestamente não conseguiram e com isso a sua legitimidade foi totalmente abalada. Não só aos olhos do povo como e aos seus próprios olhos (pelo menos nos daqueles militantes que eram honestos) e consequentemente, dentro dos regimes começavam a aparecer fissuras. Só os próximos do poder melhoraram as suas condições de vida. E isso levava com que a lealdade ao regime fosse baseada naqueles poucos que tinham acesso as benesses do regime, a quem chamei simpaticamente de situacionistas, pois não passavam de bandidos.

 

Estes regimes tinham uma fraqueza endógena que os levava a uma radicalização permanente. Por isso atacaram todas as fontes que podiam competir com a sua autoridade, incluindo partidos, movimentos, associações, igrejas, jornais etc., e assim criar uma clientela nacional que apoiava o regime embora este não pudesse satisfazer as suas aspirações pessoais tanto pratica como morais. A sua falta de legitimidade advinha de que nenhum regime pode perdurar sem uma legitimidade clara dada por algo palpável e renovável permanentemente, sejam eleições, plebiscitos ou satisfação de realizações infra-estruturais ou económicas.

 

Também faço a comparação com os regimes como o nosso porque estes eram mais complexos do que aqueles em todos os sentidos. Estas eram possuidoras de uma doutrina nuclear que lhes dava todos os instrumentos ideológicos e práticos para manietar e subjugar uma nação ad aeternum. Tinham uma ideologia, um passado heróico e uma legitimidade de certa forma irrefutável que lhes permitia controlar todos os aspectos da vida da Nação no geral e a própria actividade humana particular de cada cidadão, através de aparelhos policiais mais ou menos sofisticados. Alem disso embora sendo ditaduras, eram uma espécie de ditaduras bondosas (é isso que fazia com que países democráticos e humanitários como o Reino da Suécia davam o seu inocente apoio a um regimes criminoso). Ou como os posso definir? Ditaduras Progressistas? Pois partia-se de princípio que só eram ditaduras por necessidade, para proteger o povo e sob o mandato do povo. Era como se fossem obrigados a ser ditadura; pois se eles eram os legítimos e únicos representantes do povo como podiam ser ditadores? Eles eram apenas “a lança rutilante da Nação”, a espada do povo para implementar a Ditadura do Povo sobre os reaccionários, os contra revolucionários e afins.

 

Quem podia resistir a esta weltanschauung? Ainda por cima baseado numa certa (imensa) legitimidade, adquirida durante a Luta de Libertação que não era pouca coisa na manietação de um povo nobre como o nosso que respeita a coragem e dignidade. Isso foi determinante. A única legitimidade a que se apegavam como pão para a boca provinha do factor “Luta de Libertação”, pois o factor “Independência”, teoricamente (segundo certas teorias) poderia ser conseguido (depois?) mesmo sem as Lutas de Libertação. Facto este que a meu ver não retira nenhuma gloria a Luta de Libertação Nacional no nosso caso. Mas mesmo esse factor era mais uma questão aceite e consensual dentro das suas fileiras porque nesse assunto havia unanimidade por ser de interessa de todos os militantes. Embora o povo também “aceitasse” essa legitimidade, ela tinha que ser renovada quase todos os dias com “actos certos”. O que era manifestamente impossível para o militante de base que estando em contacto diário com o povo permitia este aperceber-se que faziam cada vez mais coisas erradas.

 

O entendimento “das coisas”, a “compreensão” da vontade do povo pelo Partido, a sua suposta capacidade de prever e resolver todos os problemas, era algo que não se punha em causa; Nem se podia - era um dogma. E isso levou a que se cometessem muitos erros e crimes.

As analises do “porque das coisas” estavam sempre certas, e mesmo que as decisões estivessem “erradas” (de um certo ponto de vista), se na sua origem, foram tomadas pelo Partido (ou em seu nome por um militante), passavam a ser “certas”. E se a decisão ou o acto era tão bárbaro que fosse indefensável até pelo próprio Partido, então (como o Partido é infalível), o militante -“mal tomado” - que o tomou ou cometeu (podia ser condenada ou até expulsa (em teoria) do Partido, por ter actuado contra os ensinamentos (objectivos) do Partido e por ter actuado fora das estruturas. Mas o Partido em “si” não podia errar. Nunca. E tão pouco ser posto em causa. Não nos esqueçamos de que “Bardadi di Partido ka ta pirdi “.

 

Como já disse no meu texto anterior, era algo acima da compreensão humana. As Leis estavam deturpadas. O Partido era portanto a “própria Justiça” emanada do Povo. Hoje sabemos aonde esta deriva ideológica nos levou anos depois. Pois a Lei não pode existir sem a protecção de indivíduos contra um estado que age de modo cruel na implementação da sua ideologia. E todas estas histórias que vos conto - penso que cada um de vocês conhece outras quiçá mais dolorosas que as minhas - são a demonstração real e não teórica da implementação dessa ideologia.

O meu amigo Filinto Augusto veio a sofrer os efeitos desta ideologia na sua mente - e como Domingos Badinca, que tinha sofrido no seu corpo os efeitos de uma outra ideologia, caiu (cada um cai da sua maneira. O que interessa é a natureza da queda) - e tombou no esquecimento. Pois ainda no rescaldo da morte de Paulo Correia e outros, ele e diversos estudantes no Leste Europeu foram obrigados a voltar para o País para serem interrogados no âmbito de uma alegada conspiração estudante contra o Partido e Estado. Outros até foram presos como o Delfim da Silva.

Eu, na altura estudante na Rússia, aconselhei-lhe vivamente por carta a não voltar a Guiné (ele me escrevia regularmente) nesse momento. Ele contou-me, anos depois, que amigos Búlgaros aconselharam-lhe o mesmo, mas ele sabendo-se inocente e com no regime - ainda acreditávamos que havia justiça na nossa terra e que “quem é inocente não deve temer”. Infelizmente o nosso acordar foi amargo e brutal - tinha voltado, cometendo um grosseiro erro. Depois dos interrogatórios, audições etc., ao conseguir voltar para Bulgária, teve uma profunda crise mental da qual nunca mais se recuperou; depois dessas férias forçadas, nunca mais foi o mesmo (nunca mais me escreveu – também não podia - até o fim dos nossos estudos).

Um médico Guineense, pertencente ao Serviço Nacional de Saúde Português, que estudou também na Bulgária (Braima Banjai de seu nome), depois de ler o meu texto “A minha Herança” fez questão de me visitar e contar que, quando ainda jovem estudante, soube que o Filinto Augusto estava doente apenas porque numa aula de Psiquiatria, entre os doentes trazidos para exemplificação pelo professor, estava este. Entendo que isso aconteceu há vinte e tal anos atrás, mas mesmo assim, saber este pormenor na semana passada, foi destroçador para mim. Esperei que ele saísse para derramar livremente estas lágrimas de dor e impotência que chegam atrasadas vinte e tal anos…

Para os que me escreveram a perguntar por ele, saibam que Filinto Augusto conseguiu, apesar das dificuldades inerentes a sua doença, licenciar-se em Filosofia, mas ele era mais do que isso, muito mais do que um simples licenciado. Só direi que hoje (já não o vejo há exactamente doze meses) Infelizmente não consegue ler nem compreender um livro qualquer ou um simples artigo de jornal. Esse filósofo - não digo licenciado em Filosofia apenas (para mim há uma diferença mais substantiva entre ser licenciado em Filosofia e Filosofo, do que por exemplo entre licenciado em Engenharia e Engenheiro) - tivesse tido tempo e condição poderia escrever um tratado sobre “o nosso caminho”. Acreditem que poderia faze-lo… Aproveito aqui ainda para dizer aos que me perguntaram sobre o destino actual dele, que ainda continua doente. Mas tenho fé em Deus que um dia ele voltara a ser o que era. Que um dia “mundo tem di rábida ba bu sedo alguim dentro di bu rosson”… ,

Desculpem este interregno, mas acredito que as histórias de vida de Guineenses dizem mais sobre a nossa sociedade do que a cronologia dos actos oficias ou governamentais. Alem de que a minha história, a história do Filinto Augusto e de milhares de Filintos do nosso povo, não me pertencem e nem a eles, pertencem a todos nós e o menos importante é quem as conta. Pensem nas vossas histórias, contem as vossas histórias e será um começo; pois temos que recomeçar tudo de novo. Tenho pena de não conhecer e poder contar a história dos primeiros nacionalistas Guineenses dos tempos modernos fundadores do P.S. (1948) MLGC, MLG, PAI, Ming, PAI-MLGC, FLING, UNGP como José Ferreira Lacerda, Benjamin Correia, Henrique Coelho Mendonça, Mário Lima Wanon, Fernando Fortes, Elisee Turpin, Júlio Almeida José Francisco Gomes, Luís da Silva Tchalumbé, Carlos Domingos Gomes, João da Silva Rosa, Domingos Pina Araújo, Rafael Barbosa, François Kankola Mendy, Cesário Carvalho de Alvarenga, Benjamim Pinto Bull e tantos outros ainda antes ou depois deles, pois a historia da vida deles é a história do nosso País. As vezes, lendo a História do meu povo, descubro-me a perguntar onde estão os Victores Robalos, os Benjamins Correias ou Rafaeles Barbosas de hoje? Empresários a sério e políticos capazes de verdade…

Lanço aqui um desafio aos nossos jovens para que estudem as histórias de vida de cada um desses vultos da nossa história, sem esquecer os míticos heróis do povo de que já falei. E a história individual de cada um de nós, a história de vida dos nossos avós, pais e filhos no seu conjunto são as paginas esquecidas da nossa história como povo. São estas páginas que faltam nesses volumes que são a História do Povo da Guiné. E é a sua leitura que ajudara a Nação a sobreviver nestes tempos tão adversos.

 

O que mais me revolta é que tudo isto que tentei demonstrar acima levou a um aviltamento total do povo. Este povo, ainda hoje humilhado e desprezado pelos seus dirigentes, que entendem que podem engana-lo e manipula-lo impunemente (sempre) na hora de votar; este povo que é desprezado no mundo inteiro pelo seu atraso e letargia, pois de outra forma ele permite tudo isso? Este povo que é abandonado pelos seus próprios intelectuais que o acham cúmplice passivo e de todos os desmandos que vão sucedendo nesta terra. Este povo um dia vai demonstrar que todos estavam errados. E não haverá pedidos de desculpa que bastem. É este povo que é necessário resgatar da sua escrava condição e faze-lo forro na sua própria terra.

 

Coitado do nosso povo que tinha que suportar esta “libertação”. De um povo orgulhoso, digno e lutador passamos a pacíficos, ordeiros e sofredores. A humildade, simplicidade e sofrimento tornaram-se nas características mais amadas pelos guineenses. Actualmente os Guineenses gostam de pessoas simples, e quanto mais a pessoa é “simples” mais é elogiado e amado. Recomenda-se as pessoas que sofram estoicamente como se isso fosse um dever honroso e daí nossos ditados como “sofridur ta padi fidalgo”. E ser humilde, muito humilde, independentemente da bondade do acto ou do momento de demonstrar essa pretensa humildade.

 

E até agora a sanha destrutiva prossegue, ainda fruto e consequência dos actos do passado. E muita gente culpada deste descalabro ainda continuam a querer nos dar conselhos e a indicar caminhos que devemos trilhar.  Alem de que podia até “aceitar” de certa maneira, que como já disse antes “(…) que o País não tivesse sido desenvolvido económica e socialmente pelos diferentes governos que se sucederam, conquanto tivessem preservado um povo consciente e orgulhoso de sua identidade e pertença a esta Pátria.” Nem isso permitiram! Arruinaram o país com a sua falta de visão e liderança. Levaram o país a bancarrota. Acabaram com a sociedade civil, com os quadros, com os sonhos, com o sustento de das pessoa. Destruíram a família, a cultura, o amor de todo um povo pela sua pátria e o porvir de milhares que andam perdidos por este mundo fora. E por fim levaram o país a uma guerra civil fratricida.

 

Por hora, impotente que sou - como todos vós -, apenas vos digo que toda esta politica cega, ignorante, inconsequente, nefasta e inimiga do seu próprio povo - que caracterizou estes dois odiosos regimes de má memoria -, até a destruição total do Estado em 1998, por Ansumane Mané e os revoltosos, só podia ter como resultado isso mesmo: A aniquilação total.

 

A destruição total do nada. Num niilismo completo, destruíram até a sua própria origem; destruíram o legado do empreendimento mais sagrado que o nosso povo: a Gloriosa Luta de libertação Nacional.

 

Estes regimes não criaram nada e não deixaram nada como legado ao nosso povo. Nem desenvolvimento urbano, nem desenvolvimento cultural, económico ou literário. Foi o tempo da não criação. Foi o tempo de “nada vezes nada fora”, como o nosso sábio povo diz.

 

O estado actual da Nação é o resultado mais acabado desta política que não respeitava nada e ninguém. Não respeitavam a liberdade. Não respeitavam o ser humano. Não respeitavam a vida humana. Não respeitavam a Deus. Eram regimes que tinham intrinsecamente o germe da sua própria destruição.

 

No fim apenas deixaram como herança a morte, a destruição, a pobreza, o ódio, o tribalismo, o racismo, o desespero, a diáspora de todo um povo corajoso e digno que ainda hoje não pode viver em paz e tranquilidade na sua pátria como todos os povos do mundo.

 

Atenciosamente

 

Arq. FERNANDO J. P. TEIXEIRA

 

 * Licenciado em Arquitectura (Rússia 1991). Pós graduado em Urbanismo (ISCTE)

 


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