Guiné-Bissau: Exige-se respeito!


Quando a 14 de Setembro de 2003, Kumba Ialá foi derrubado da presidência da República da Guiné-Bissau por um golpe militar, quase tudo e todos se deixaram embalar pelo factor lógico da previsão, enaltecendo até, a actuação dos militares, como tendo sido a única saída para mudar o rumo negativo traçado pela presidência e governação de Kumba Ialá e do PRS (Partido da Renovação Social) então no poder.


Por Fernando Casimiro “Didinho”

- 14-Apr-2004 - 14:32

Tive a oportunidade de escrever um artigo de opinião na devida altura, em que dava conta do oportunismo do poder militar patenteado nesse golpe de Estado, consumado a menos de 1 mês da data marcada para as eleições legislativas (12.10.2003), por Kumba Ialá.

Se é certo ter havido dois adiamentos da data do escrutínio, à terceira ficou o benefício da dúvida ou, a resposta para o golpe de Estado, classificado de exemplar, inclusivamente por ilustres governantes da CPLP, que só viram a substituição, necessária, de Kumba Ialá e não toda a jogada envolvente desse jogo.

O meu ponto de vista reflectia uma antecipação dos militares, para o facto de, em caso de eleições, havendo derrota do PRS partido no poder, haver mudanças e por conseguinte, haver reestruturação de fundo nas Forças Armadas. Os oficiais de alta patente, promovidos por Kumba Ialá, não estariam (nem estão) a favor da introdução de reformas de orientação governativa nas Forças Armadas.

Foi por isso que se deu o golpe de Estado de 14 de Setembro (e não por amor à pátria), para permitir que os militares partissem em posição privilegiada, numa alegada procura de consensos para a estabilidade do país, num tempo pré-definido.

Ora isto dava aos militares, 25 oficiais superiores que fazem parte do Comité Militar e também do Conselho Nacional de Transição, o estatuto de salvadores da pátria e assim sendo, o privilégio de intocáveis e porque não dizê-lo, donos do regime.

Foram os militares que impuseram a escolha do primeiro ministro do governo de transição, bem como foram os militares a pedir ao Bispo de Bissau, um nome para a Presidência da República. Se o nome de Henrique Rosa, proposto para  Presidente da república, mereceu consenso de toda a sociedade civil e partidos políticos, já o de Artur Sanhá, para Primeiro-ministro foi por imposição do Comité Militar, por haver contestação.

Formou-se um governo de transição com dois objectivos bem definidos: Solucionar o pagamento de salários em atraso e realizar eleições legislativas, num período até seis meses após a entrada em funções do governo de transição. Henrique Rosa, na qualidade de Presidente interino, trouxe uma nova esperança para o país, mercê de estratégias acertadas na sensibilização da comunidade internacional para a solidariedade com a Guiné-Bissau.

Os apelos foram ouvidos e os apoios foram chegando.

Entretanto era preciso o país dar sinais de normalização institucional e com a marcação das eleições legislativas para 28 de Março de 2004, era necessário a reactivação do Supremo Tribunal de Justiça, bem como a realização de eleições para a Presidência deste órgão de soberania.

Conseguiu-se tudo isso, por forma a que houvesse suporte jurídico para todo o processo eleitoral marcado para 28 de Março de 2004. A Comunidade Internacional, uma vez mais, louvou a iniciativa, sempre na expectativa de, os guineenses se estarem a reencontrar.

Por seu lado, o governo de transição dentro dos objectivos traçados, foi dando sinais de rigor na área da economia e finanças, tendo o Dr. Abubacar Demba Dahaba, ministro da tutela, muito contribuído para a visão positiva e realista de que, de facto, podemos e devemos fazer mais no conceito de: A Guiné-Bissau ser um investimento e os guineenses, os principais investidores desse investimento.

Aparentemente, conseguiu-se alguma estabilidade, tendo-se desvalorizado algumas "incursões" do poder militar, de forma a que se pudesse acreditar na efectivação das eleições legislativas. Eleições essas que chegaram a 28 de Março e, contrariamente ao espírito de esperança depositado pela maioria dos guineenses, cedo se transformou num acto desolador e de incertezas criando espaços para todo o tipo de especulações.

À data deste artigo, oito dias se passaram desde o início da votação, a 28 de Março, com irregularidades evidentes por mais que se queira minimizar e ainda sem resultados oficiais das eleições legislativas.

À Guiné, chegaram observadores internacionais (104) de vários países e organismos internacionais, com uma semana de antecedência, de modo a poderem ser enquadrados com o processo eleitoral. A Comissão Nacional de Eleições há muito que afirmara ter tudo a postos e tirando o factor financeiro, ou seja dinheiro para patrocinar os partidos nas suas campanhas, não houve reclamações de maior.

Ora, terminadas as campanhas a 48 horas da votação, tendo a véspera sido reservada à reflexão, tudo apontava para que no domingo 28 de Março e na hora prevista, se começasse o processo eleitoral em todo o país. Se um ou outro atraso se verificasse, não seria preocupante, dado às próprias dificuldades naturais do país.

Entretanto, se no interior do país as coisas iam funcionando, em Bissau, a capital, com mais meios técnicos, recursos humanos e logísticos, houve situações de atrasos na abertura das mesas de voto de oito horas e mesas que simplesmente não chegaram a funcionar.

A comissão Nacional de Eleições questionada pelo Primeiro-ministro, Artur Sanhá, declinou qualquer responsabilidade nos atrasos. O próprio Primeiro-ministro, foi quem transportou pessoalmente, (!!!) inúmeros materiais para as mesas de voto...

Já posteriormente, veio a apurar-se (?) que a responsabilidade do sucedido era da Comissão Regional de eleições de Bissau, tendo sido demitida a responsável da comissão. Milhares de pessoas ficaram sem poder votar no domingo, tendo a Comissão Nacional de Eleições prometido que na segunda-feira, 29 de Março, se iria dar continuidade ao processo. Decisão esta que rapidamente foi contrariada com a necessidade de se fazer o levantamento das mesas de voto que faltavam abrir, e por assim dizer, ter em mãos o número de pessoas que tinham direito ao voto.

Entretanto, no domingo à noite, já a extensa delegação de observadores internacionais, pela voz do Dr. Zeferino Martins, secretário executivo adjunto, da CPLP, constatava que as eleições tinham sido livres, justas e transparentes... Ora, aqui começou o verdadeiro atropelo às normas do respeito e consideração para com a Guiné-Bissau, e os guineenses.

Fazendo comparação com um ditado popular português, que diz que: Até o lavar dos cestos é vindima...

Nas eleições, até ao anunciar, mesmo que, provisório, dos resultados, também estamos perante eleições...!!! Se a declaração da missão de observadores, por um lado transmitiu ao mundo a ideia de tudo estar bem, por outro criou condições para legitimar este impasse, senão, vejamos: Os atrasos foram provocados por alguém para se aquilatar dos resultados no interior do país.

Os atrasos foram propositados e depois de se ter os números e sabendo qual o partido virtualmente vencedor, aproveitou-se da declaração da missão internacional para se estar à vontade nos desenvolvimentos posteriores, pois tinha-se dado nota positiva às eleições e a partir daí não se podia dar o dito por não dito.

Foi então, que depois de quase todos os partidos terem assumido os seus desaires e felicitado o PAIGC, como virtual vencedor, entra em cena o PRS, alegando irregularidades. Claro que as houve, é inegável isso, mas há instâncias próprias para se reclamar, dentro do pressuposto na lei eleitoral. Se numa base democrática o PRS, entendesse reclamar, estaria no seu direito, só que a reclamação tomou contornos intimidatórios, pondo em causa a segurança e a unidade nacionais.

Por outro lado, aparecem os 25 oficiais superiores do Comité Militar a interferir, condicionando o anúncio dos resultados com a análise das reclamações dos partidos, quando a lei eleitoral é clara quanto a isso e existe o Supremo Tribunal de Justiça para analisar essas reclamações. A Comissão Nacional de Eleições foi ultrapassada, o Presidente da República foi ultrapassado, o próprio Conselho Nacional de Transição desapareceu, prevalecendo o parecer prepotente e abusivo do Comité Militar...

O anúncio dos resultados foi adiado já por seis vezes. A Bissau chegou uma delegação regional da Comunidade de Estados da África Ocidental (CEDEAO), para tentar desbloquear a situação. Foi assinada uma declaração de compromisso por 8 dos 15 partidos que concorreram às legislativas. Declaração essa que não tem nenhum valor jurídico, muito embora seja um documento de compromisso, pois a lei eleitoral existe e tudo que se queira ou se possa negociar será depois do anúncio dos resultados e, partindo a iniciativa do partido vencedor.

Mais uma vez estamos perante uma jogada de interesses dos militares que protagonizaram o golpe de Estado a 14 de Setembro, porque com a mais que provável vitória do PAIGC, as mudanças nas Forças Armadas serão prioritárias, abrangentes e de fundo.

Quanto à Comunidade Internacional, espero que redefina a concepção de atribuição dos desígnios: JUSTAS, LIVRES E TRANSPARENTES, em futuros actos eleitorais tanto na Guiné-Bissau, como em qualquer outro país, como factor de respeito e consideração. E desde já fica a responsabilidade moral da Comunidade Internacional pelo desenrolar desta crise com tensão agudizada de dia para dia.

Os guineenses também têm a noção de liberdade, transparência e justiça e creio que nos países de suas excelências, a acontecer cenas do género, ninguém ficaria indiferente...!
  

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