Existe ou não Existe a Etnicização da Democracia na Guiné-Bissau?

(Ponto de Vista)

 

Unidade kila ki força di tudo povo.

“Super Mama-Djombo”.

 

 

 

Por: Rui Jorge  da Conceição Gomes Semedo *

 

rjogos18@yahoo.com.br

Rui Jorge Semedo

22.10.2008

 

De 16 a 17 deste mês de Novembro tive a oportunidade de estar ao lado de pesquisadores guineenses e estrangeiros de referência, durante o encontro: Diálogo Aprofundado sobre Questões de Pesquisa e Política. Realizado pelo Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África, (CODESRIA), de parceria com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), que contribuiu positivamente no meu processo de aprendizado. Aliás, é sempre louvável qualquer iniciativa do género, visto que a realidade que  nos é peculiar limita-nos a oportunidade de discutir, analisar, propor, escutar ou participar de debates científicos sobre o País. E, às vezes, quando acontece o evento, fica restrito apenas a uma elite pensante o privilégio de desfrutar do conhecimento que está sendo construído.

O debate foi extremamente rico, mas faltou fazê-lo chegar às populações. Conforme salientamos, é indispensável a realização de eventos do género para a comunidade acadêmico-científica, no entanto, é muito útil compartilhar ou fazer a massa acompanhar como são as coisas. Tendo em consideração de que  a nossa sociedade, infelizmente, incorporou um índice muito elevado de analfabetismo e, consequentemente, apresenta enormes dificuldades de acesso à informação. Sei que é difícil mobilizar mecanismos, mas em termos de sugestão, talvez seria importante começarmos a pensar nisso.

Entre temas abordados, o que continua a martelar a nossa mente é o debate sobre a questão étnica na Guiné-Bissau, ou seja, a influência que este componente tem hoje no nosso país, principalmente, no funcionamento das regras democráticas. Sobre esse assunto, a maioria dos intelectuais e pesquisadores presentes no evento, não reconhecem que existe o “etnicismo” na Guiné-Bissau, mas, admitem a existência do voto étnico. Consideração que a nosso ver resume na clara negação do óbvio; ou seja, as pessoas reconhecem que existe a doença, mas negam a existência da fonte causadora.

Bem, pela minha embrionária experiência no campo da ciência, ainda desconheço a existência de situações semelhantes a essa, e, acredito que o voto étnico presente na democracia guineense tem a sua origem na postura dos partidos. E essa postura é o resultado de um processo de patologias comportamentais que se manifestaram em vários momentos da nossa história. Alias, vários trabalhos produzidos por pesquisadores guineenses e estrangeiros descreveram a nossa trajectória social e a tentativa de construir a Nação guineense iniciada pelo PAIGC na década dos anos 50. E essa estruturação social conhecida como Unidade Nacional ainda não completou o seu ciclo, em razão das frequentes contradições oportunistas que contribuíram não só no assassinato de Amílcar Cabral, no desmembramento do pacto Guiné e Cabo-Verde, nos outros subsequentes transformações étnico-politicas desastrosas, como também contribuíram na estagnação do País.

E a abertura democrática que a princípio seria uma oportunidade para consolidar a obra de Cabral – Unidade Nacional – está sendo usada por novos actores, neste caso por partidos políticos, como um elemento para explorar as contradições sociais e políticas existentes para conquistar o poder à margem do legalmente pré-estabelecido. Com isso, muito subtilmente começou-se explícita ou implicitamente o aproveitamento do peso étnico ancorando-o às pretensões políticas. Entretanto, sabe-se que o maior erro que uma sociedade pode cometer é negar os seus problemas. Por exemplo, o Brasil passou mais de um século a negar que é um país racista e desigual, e esse facto só veio oficialmente a ser reconhecido pela primeira vez, durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso, no entanto, fez pouco para corrigir o problema. Só a partir de 2003, no início do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva é que começou a ter acções concretas, como as políticas de Acções Afirmativas, cujo objectivo é fazer correcções nos históricos problemas da sociedade brasileira. No caso da Guiné-Bissau, uma sociedade igualmente multi-étnica com contradições bem patentes, percebe-se que os políticos e intelectuais hipocritamente advogam a não existência de comportamentos étnicos de carácter divisionista no seio dos partidos políticos.  

Os procedimentos que indicam para a presença de tendências étnicas na nossa democracia e que são responsáveis pelo voto étnico podem ser resumidos em três pontos: primeiro, o modo como é feito o processo de selecção dos candidatos à Assembleia Nacional Popular – os indivíduos são seleccionados na maioria das vezes para concorrer num determinado círculo eleitoral em função do seu grupo étnico; segundo, o uso de trajes tradicionais que façam os eleitores identificar facilmente o candidato como um dos elementos do grupo; terceiro, a concentração de indivíduos do mesmo grupo étnico numa legenda. Além desse comportamento de carácter político-partidário existe outro de cunho social, que é reproduzido em linguagens semelhantes a essas: os muçulmanos não vão mandar aqui na Guiné-Bissau (raça fundinho ka na manda li); os “burmedjus” em referência aos descendentes de cabo-verdianos, libaneses, portugueses etc., não vão mandar aqui; os balantas historicamente foram marginalizados das rédeas do poder, agora chegou a sua vez de mandar ou; Bissau é a terra dos papéis e deve ser um papel a mandar aqui.

Esses indicativos comportamentais, pelo menos no nosso modo de ver, além de preocupantes, guardam desdobramentos nefastos a uma convivência social pacífica entre os grupos que compõem a nossa sociedade. Por isso, um pesquisador social deve fazer uma leitura dos factos por além das aparências, ou seja, a sinceridade da observação é fundamental para se compreender por que é que todas as manhãs o fulano se dirige à cafetaria para tomar café? Será que é cultural, é por questões de status social, é por vício ou é para relaxar a mente e encarar os desafios laborais? Não estou a dizer e nem quero dizer que estou certo, mas triste quando ouço intelectuais a defender peremptoriamente que não existe “etnicismo”, no comportamento dos nossos actores políticos. Defender esse argumento, é como quando um médico pega numa pessoa com sintomas de tuberculose e diz que ela está com gripe. Não faltam dados que comprovam uma forte tendência étnica na nossa democracia, basta irmos aos arquivos da Comissão Nacional de Eleições (CNE), para observarmos que Martelo Có foi eleito em Biombo, Stera Djaló em Gabú, Catana M´Bana em Mansoa, Garrafão Té em Canchungo e por aí fora…Apesar de tudo, somos da opinião de que o “etnicismo” ainda não está exacerbado na disputa política, e pode ser controlado se a classe política, a sociedade civil e os pesquisadores reconhecerem a sua existência no nosso meio. É “verdade que não temos partidos étnicos”, só que, não se pode negar que temos partidos a fomentar ou instrumentalizar o “etnicismo”.   

Hoje nos serviços civis e militares, não sou eu que o digo, é a realidade que bate nos nossos olhos, os responsáveis procuram colocar sempre junto a eles, para além de pessoas ditas de sua confiança, elementos da sua etnia para se sentirem mais seguros. Perante essa situação e outras que nos desafiam qual deve ser o nosso papel como intelectuais? Escamotear a realidade ou desvendá-la?   

 

*Mestrando em Ciência Política na Universidade Federal de São Carlos, SP, Brasil


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