Eu, “Menino Talibé”

 

Selo Djaló *

djaloselo@hotmail.com

02.02.2011   

Selo DjalóNo meu tempo de “karenden” (estudante de Corão) íamos buscar, sobretudo na época do frio, “kara”(raminhos secos de árvores) - para nos aquecermos e termos iluminação durante as aulas matinais e noturnas – e lenha – todas as quartas-feiras, para a cozinha -, nas matas de Cussana e Mancalã. Ai de quem faltasse com esse dever! Não raras vezes, éramos corridos, sob ameaças de valentes sovas, pelos que aí residiam, com o pretexto de que a terra era deles. Era ver-nos a perguntar para que os nossos pés serviam.

Íamos também a “bolanha” (arrozal) e ao “lugar” (campo de amendoim) do nosso “mestra” (mestre).

As aulas da tarde decorriam na varanda da casa do “mestra”. Trajávamos farrapos, sobretudo os calções, que apresentavam não um “olho”, mas muitos para gáudio das formigas, uma vez que nos sentávamos (nós os meninos) no chão duro, as mais das vezes, sobre as casas das formigas. Não se faziam rogadas, vingavam-se, aplicando-nos dolorosas injecções nos traseiros. As meninas estavam a salvo por terem um tratamento preferencial. Para a “escola do branco” vestíamos melhor, o que suscitava críticas. Muitos colegas cedo abandonaram a “escola do branco” porque só contava para este mundo, advogavam os mais velhos.

O ensino do Corão baseava-se essencialmente no decoranço. Lia-se em voz alta  e memorizava-se os “suratos” (capítulos) do Corão. A interpretação e compreensão do que se lia ficava para mais tarde, para os mais avançados, prestes a concluir o curso.

O nosso “mestra” tinha uma memória de elefante. Ai de quem faltasse as aulas!

O “karmoquê” (professor) era venerado até pelos pais dos “karendens”. O aluno que quisesse ser alguém na vida via-se na necessidade de trabalhar para o seu “mestra”, a exemplo das esposas, que, para terem filhos abençoados pela fortuna, tinham de cuidar do marido com desvelo (pura política dos homens, diria o místico indiano Osho). Aliás, não se pode divorciar do professor para o resto da vida.

Era eu um aluno aplicado. Dava-me bem com o meu “karmoquê”. Nesse tempo, que eu me lembre, não havia “meninos talibés” a deambular pelas ruas, à caça de trocados ou coisas que tais a favor do seu “karmoquê”. Que havia pedintes, havia, em número até bastante negligenciável, e eram de outra natureza ( comportando deficientes, velhos, doentes…) Nada que se compare com o actual cenário da cidade capital Bissau, principalmente, às sextas-feiras, no seu mercado principal, a Feira de Bandim. A vaga de pedintes remete-me para a paisagem humana da capital senegalesa, Dakar, que vivenciei em 2001, a minha primeira estada no país vizinho. Jamais experimentara nada semelhante. Fora para mim, desde logo, uma experiência chocante. “Não haveria instituições para os valer?” Perguntara-me.

Curiosamente, não me lembro de alguma vez ter cruzado com um “menino talibé” no interior do nosso país. Pelo contrário, o sistema parece ser o mesmo de sempre. Ou seja, “karendens” a trabalharem para o seu “karmoquê” em troca de bênção. Em Bissau, como ficou dito, a música já é outra. À falta de “bolanha” e de “lugar”, os “karendens” retribuem com o que vão amealhando, soando as estopinhas, percorrendo as ruas de alto a baixo.

Moral da história: adianta que os pais paguem pelos filhos (tipo propina), poupando-os da canseira? Parece que não. A filosofia continua a ser a mesma de sempre, ou seja, terão de ser os próprios formandos a “pagarem” os estudos de uma forma ou de outra, se quiserem ser bem sucedidos na vida. Aí é que reside o cerne de toda a problemática dos “Meninos Talibé”: meninos que se vêem obrigados a dar, literalmente o litro, em nome de amanhãs que cantam.

Em conclusão, diga-se que a educação (sobretudo dos pais) é a chave para parafrasear o saudoso músico sul-africano Lucky Dube. Um pai educado (leia-se, escolarizado) dificilmente aceitaria tal prática. O Estado, claro está, tem uma palavra a dizer. E a mentalidade, essa, terá de mudar a bem da pequenada. Mãos à obra.

* Pós-graduado em Relações Internacionais pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade Técnica de Lisboa (UTL); co-produtor e co-apresentador do programa o “Prazer da Leitura” na Sol Mansi.

 

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