Entre a reclamação e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, a persistente inconstitucionalidade da candidatura do Primeiro Ministro à luz da Constituição da Guiné-Bissau

 

 

 

Carlos Vamain *

cvamain@yahoo.com

13.03.2012

Dr. Carlos VamainMuito se tem falado nos últimos tempos, tanto nos meios jurídicos como nos meios políticos, sobre a constitucionalidade e a inconstitucionalidade da candidatura do Primeiro Ministro da Guiné-Bissau ao cargo de Presidente da República, tendo sido, igualmente, objecto de discussões apaixonadas e de pareceres favoráveis e desfavoráveis e, inclusive, de um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que não chegou, entretanto, de decidir sobre esta matéria por ausência de um pedido formal.

Decidi retomar este assunto, pois, anteriormente já havia formulado as minhas reflexões sobre este assunto nas páginas do Jornal Gazeta de Notícias (impresso e on line, respectivamente) na perspectiva de contribuir para uma discussão desapaixonada e isenta de qualquer tendência «mercantilista» intelectual. Afinal, pelos vistos, não é só na Guiné-Bissau que «se pensa com o estômago», no lugar e por conta do cérebro, mas também noutras paragens denominadas de «primeiro mundo» ou algo parecido.

Na verdade, um grupo de cidadãos suscitou uma reclamação, com fundamentos, nomeadamente, nos termos do disposto no Artigo 24º da Lei n.º 2/91, de 9 de Maio (Proibição de financiamento, nomeadamente, de partidos políticos por organismos autónomos de Estado, associações de direito público, institutos e empresas públicas, autarquias locais e pessoas colectivas de utilidade pública administrativa), conjugado com os Artigos 24º, n.º 2, da Lei n.º 3/98, de 23 de Abril (Que trata de reclamação apresentada contra a admissão de qualquer candidatura, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, manda notificar imediatamente o mandatário da lista contestada para, querendo, responder no prazo de 24 horas.)  e o Artigo 26º (por lapso) da Constituição da República (julgo tratar-se do Artigo 24º, relativo  à igualdade dos cidadãos perante a lei).

 

 

I.               Os argumentos das partes

 

Em suma, os peticionários, argumentam que: «Até à data, o Sr. Carlos Gomes Júnior, enquanto Primeiro Ministro e candidato às eleições presidenciais não foi exonerado e nem demitido das suas funções, conforme impõem os artigos 68º, al. g) ou o artigo 69º, al. b) e 104º, n.º 1, todos da Constituição, acrescido de que o Presidente Interino não o pode fazer nos termos do artigo 71º da mesma Constituição.», pedindo a rejeição in limine da candidatura do Sr. Carlos Gomes Júnior, na medida em que: «Admitindo a hipótese do actual Primeiro Ministro ganhar estas eleições sem ser exonerado das suas funções, então, teremos a concentração de poderes numa só pessoa, como Presidente da República eleito e o Primeiro Ministro em exercício, violando em flagrante o artigo 59º da Constituição da República, violando os princípios do Estado de Direito Democrático, pondo em causa as nossas conquistas democráticas.»

Notificado o mandatário do candidato em causa, este, na sua contestação afirma, em substância, que: «Ao contrário do que se diz no ponto 18 da «reclamação», em caso da vitória do candidato apresentado e apoiado pelo PAIGC, nas eleições do dia 18 de Março, o mesmo não acumulará as funções e os cargos de Primeiro Ministro e de Presidente da República, porquanto, uma vez eleito, ele apenas será efectivado no cargo de Presidente da República, após a investidura/posse. O que implicará a cessação das suas funções de Primeiro Ministro. Portanto, a questão suscitada não faz sentido nesta altura do campeonato. Trata-se, portanto, de um falso problema; um falso alarme. Jamais se registará a violação do disposto no artigo 59º da Constituição.» Finalmente, na sua óptica: «Por a «reclamação», ora contestada, ter sido subscrita por pessoas que não são candidatas, nem concorrentes às eleições de 18 de Março, coloca-se a questão da sua legitimidade. São portanto parte ilegítima, não lhes assistindo nem interesse, nem o direito de agir.», pede o indeferimento liminar e/ou a declaração da improcedência desta reclamação.

 

II.            A decisão do Supremo Tribunal de Justiça

 

Perante os argumentos das partes, o Supremo Tribunal de Justiça entende, em substância, que: «Em Estado de Direito Democrático, a liberdade de alguém de candidatar a um cargo público – no caso, ao cargo de Presidente da República – apresenta-se como crucial para se avaliar o grau de democraticidade de cada regime.» E, sem se fundamentar na Constituição da República, decide pela admissão da candidatura do cidadão Carlos Gomes Júnior para as eleições presidenciais antecipadas a realizar no dia 18 do próximo mês de Março do ano em curso Não sem chamar a atenção pelo seguinte: «Não se pode confundir o exercício do cargo de Presidente da República com a situação do candidato à Presidente da República – só o exercício do primeiro impede o desempenho de outras funções; e confundem cargos com funções: o que a Constituição não permite é o exercício simultâneo das funções de Presidente da República com quaisquer outras, não a confluência eventual de cargos – e a Constituição explica-o; note-se o exemplo do Presidente Interino: ele, não deixa de ser Deputado e Presidente da Assembleia Nacional Popular enquanto exerce as funções de Presidente de República Interino; o que se passa é que aquelas funções são suspensas para que possa exercer esta. Por último, confundem funções públicas e actividades privadas: não é o Primeiro Ministro Carlos Gomes Júnior, que é candidato, mas sim o cidadão Carlos Gomes Júnior; porque a candidatura às funções de Presidente da República faz parte da esfera privada; se assim não fosse, como seria possível permitir que um Presidente se recandidatasse – pois se está no exercício do cargo?; isso é possível porque temos de distinguir esfera pública do titular da sua esfera privada; a candidatura a presidência pertence à 2ª.»

 

III.         Análise crítica do Acórdão

 

Um dos princípios fundamentais em direito processual é o direito de agir na justiça. O que pressupõe a legitimidade das partes, por tratar-se de um direito de ordem formal, decorrente do exercício duma acção, que se sobrepõe ao direito substantivo, sem o absorver.

Ora, neste particular, a lei eleitoral, no seu Artigo 24º, n.º 1, dispõe que das decisões do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) relativas à apresentação de candidatura podem os candidatos ou seus mandatários reclamar para esse órgão no prazo de 48 horas após a publicação da lista dos candidatos admitidos por esta instância judicial.

 Esta suprema corte falha redondamente no seu papel de intérprete e de aplicador da lei, porquanto não devia conhecer o mérito da reclamação, no caso em espécie, pelo facto de ter sido suscitada por terceiros estranhos à relação processual e nem proceder ao julgamento «ultra-petita» tal como fez, ao julgar pedidos não suscitados pelos peticionários da reclamação. Pois, o pedido não suscitava a inconstitucionalidade da candidatura do Primeiro Ministro, mas tão-só do Senhor Carlos Gomes Júnior, com fundamentos nos Artigos 26º, 59º, 68º, al.g), 69º, al. b), 98º, 71º, n.º 4, 104º n.º 1, todos da Constituição da República, em conjugação com as disposições dos Artigos 13º e 24º, da Lei eleitoral (N.º 3/98, de 23 de Abril).

Poder-se-ia compreender melhor a atitude desta corte se tivesse fundamentado a avocação do direito de conhecer o mérito desta reclamação, caso houvessem fundados motivos na sua óptica, pois na minha existem, como poder-se-á verificar mais adiante, por força da disposição constante do Artigo 126º, nº 1, da Constituição da República, a saber: «Nos feitos submetidos a julgamentos não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados.»

Por outro lado, recorrendo-se ao adágio latino, «Ubi lex non distinguit, Nec nos distinguere debemus», o Supremo Tribunal de Justiça não deve proceder à distinção quando a própria lei não distingue. Pois, esta deve ser  a missão de qualquer intérprete.

Entretanto, causa estupefacção quando a egrégia Corte Suprema de Justiça, no exercício da sua «competência em matéria da constitucionalidade» vem afirmar, nomeadamente, que: «Não se pode confundir o exercício do cargo de Presidente da República com a situação de candidato à Presidente da República – só o exercício do primeiro impede o desempenho de outras funções; e confundem cargos com funções: o que a Constituição não permite é o exercício simultâneo das funções de Presidente da República com quaisquer outras, não a confluência eventual de cargos - e a Constituição explica-o;»

Ora, a Constituição da República da Guiné-Bissau, no seu Artigo 65º, dispõe que: «As funções de Presidente da República são incompatíveis com quaisquer outras de natureza pública ou privada.» Aqui, o constituinte guineense fixa o regime jurídico de incompatibilidade para o exercício das funções de Presidente da República. A função aqui, tida como acção de exercer actividade ou cargo (Cf. a definição dada pelo Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia d Ciências de Lisboa), no caso em espécie, de Presidente da República.

A incompatibilidade, significando, em bom português e, sobretudo, em direito, a impossibilidade legal de acumular funções ou cargos, colocar-se-á, com certa acuidade, na eventualidade de eleição do cidadão Carlos Gomes Júnior, enquanto Primeiro Ministro em funções da República da Guiné-Bissau. Uma resposta não solicitada pelos peticionários e, portanto, não dada nem pelo Supremo Tribunal de Justiça e menos ainda pelo ilustre professor catedrático de Lisboa, Dr. Jorge Miranda, que interviera no debate guineense a pedido do Governo da Guiné-Bissau.

Pois, por força do disposto no Artigo 65º, em conjugação com o disposto nos artigos 8º e 67º, todos da Constituição, estar-se-á perante uma flagrante inconstitucionalidade superveniente, na eventualidade de eleição do Primeiro Ministro candidato às eleições presidenciais. Um imbróglio jurídico-constitucional que o próprio Supremo Tribunal de Justiça devia ter evitado ao país, se tivesse cumprido o seu dever de ofício, nos termos e com o fundamento na disposição constante do Artigo 126º da Constituição da República, a saber: «Nos feitos submetidos a julgamentos não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consagrados.» Aqui, a inconstitucionalidade da candidatura do Primeiro Ministro torna-se clarividente e flagrante na medida em que, uma vez eleito Presidente da República, deve demitir-se das suas funções previamente à sua investidura prevista no Artigo 67º da Constituição e ser, em consequência, aceite pelo Presidente da República nos termos do Artigo 104º, n.º 1, c) e posteriormente exonerado à luz da Constituição da República da Guiné-Bissau.

Neste perspectiva, como o País se encontra num contexto decorrente do falecimento do Presidente da República e em que as funções presidenciais estão a ser exercidas pelo Presidente da República Interino que, por força do disposto no Artigo 71º, n.º 4 da Constituição da República, em conjugação com o princípio da legalidade imposto pela Constituição da Guiné-Bissau (Artigo 8º), a eleição do Primeiro Ministro deverá ser declarada inválida, do ponto de vista jurídico, por não se conformar com a Constituição do País, muito embora queira muita boa gente que, num país com fragilidades institucionais continuem os guineenses a pensar com a cabeça dos outros e a marchar com os seus próprios pés. Uma aberração.

Neste caso, tentou-se resolver os problemas constitucionais da Guiné-Bissau com o recurso à comparação com a situação ocorrida em 29 de Julho de 2000, em Cabo Verde, com o Primeiro Ministro Carlos Veiga, para se chegar à conclusão que o Primeiro Ministro da Guiné-Bissau também podia candidatar-se. Uma situação que nada tem de comparável em matéria da inconstitucionalidade com a realidade jurídico-constitucional da Guiné-Bissau confrontada, na actualidade, com a interinidade das funções presidenciais em decorrência da morte do Presidente da República. O que não ocorreu em Cabo Verde.

 Em conclusão, a administração da justiça, sendo feita pelos tribunais em nome do povo da Guiné-Bissau (Artigo 119º) devia poder corresponder às aspirações deste à uma vida tranquila e estável, com decisões bem fundamentadas na lei para o bem do Estado de direito democrático em construção no país. Uma situação que, infelizmente, não ocorreu de todo, tirando a referência incidental feita ao artigo 102º da Lei Eleitoral guineense para fundamentar a rejeição da inelegibilidade para as funções de Primeiro Ministro.

 Quando a justiça não cumpre o seu papel num Estado de Direito que se preze, só pode-se estimular o surgimento da justiça privada, sobretudo, num contexto de total descrédito em que esta está mergulhada na Guiné-Bissau.

 Em suma, torna-se patente a questão da inconstitucionalidade da candidatura do Primeiro Ministro, neste quadro constitucional da interinidade, deitando-se por terra todo e qualquer argumento, por não obedecer a lógica, nem o espírito e a letra da Constituição da República da Guiné-Bissau. Isto porque, em caso da eleição do Primeiro Ministro ao cargo de Presidente da República estar-se-á perante um imbróglio jurídico-constitucional em face do regime constitucional da incompatibilidade inultrapassável sem subverter, uma vez mais, a ordem constitucionalmente estabelecida na Guiné-Bissau.

 

ESPAÇO PARA COMENTÁRIOS AOS DIVERSOS ARTIGOS DO NÔ DJUNTA MON

VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!

www.didinho.org

   CIDADANIA  -  DIREITOS HUMANOS  -  DESENVOLVIMENTO SOCIAL