A SAÚDE DOS GUINEENSES NA GUINÉ E NA DIÁSPORA

Prof. Joaquim Tavares

Prof. Joaquim Silva Tavares (Djoca)

joaquim.tavares15@gmail.com

07.09.2010

 

 

Editorial de Setembro

 

Mais um mês de Setembro e mais um renovar de esperanças, embora a cada ano que passa, devido às muitas e imensas desilusões ao longo de 37 anos, os sonhos se tornem cada ano menos audaciosos.

Espero, do fundo do coração, que as coisas melhorem e que o novo Hospital Militar construído pelos chineses seja finalmente aberto para servir as nossas populações. Não é qualquer dia que um Hospital de 200 camas é disponibilizado a um País para servir os necessitados: temos de aproveitar a oportunidade e tirar o maior rendimento possível das suas capacidades. Um hospital com 200 camas, em qualquer parte do mundo, é um hospital de média a grande dimensão e o segredo da sua boa gestão/utilização, está na sua liderança e organização. Não percamos esta oportunidade!

Tem sido muito excitante esta minha transição para o novo hospital (o “Wild, Wild West hospital”, como lhe chamo; comparado com o antigo hospital, ”o Beverly Hills”); Como tudo na vida, há sempre duas faces da mesma moeda e assim é em relação a estes 2 hospitais:

1-     Wild, Wild West

 A - Aspectos positivos

a) Uma diversidade enorme de casos clínicos interessantes e raros, que constantemente nos obrigam a estudar, ler, consultar websites, consultar vários especialistas para se chegar a diagnósticos e/ou tratar casos complicados - um maná para o médico curioso e que está sempre ansioso por aprender.

b) Possibilidade de aperfeiçoarmos cada vez mais os nossos skills/técnicas clínicas e cirúrgicas.

 

B - Aspectos negativos

a) Excepto para os cuidados intensivos e intermediários, 2 doentes no mesmo quarto (menos privacidade para os doentes e familiares).

b) Serve uma população constituída essencialmente por minorias (black, hispanics, asians) e que devido a situações económicas precárias, só vão ao hospital quando estão nas últimas e muitas vezes, já é muito tarde para os salvar

c) Casos clínicos mais traumáticos, intoxicação com todos os tipos de álcool e drogas; depois da meia-noite, nos serviços de urgência, vêem-se cenas dignas de “ER”,” Trauma”, com todos os excessos que só os americanos sabem ostentar.

 

2-     Beverly Hills

A - Aspectos positivos

a) Todos os quartos são individuais e os doentes, se não houver nenhuma contra-indicação médica, escolhem o menu para as refeições.

b) Devido às posições socioeconómicas dos doentes, eles e os seus familiares lêem e consultam livros e websites sobre patologias e o médico tem que lhes explicar de A a Z, o porquê de qualquer exame requerido ou de qualquer cirurgia; exigem reuniões diárias com os médicos que estão a tratar dos familiares. Isto aliás, é obrigatório aqui nos states, mas nos hospitais “wild wild west”, por carências informativas, educativas dos pacientes/familiares, como que renunciam desse direito…

 

B - Aspectos negativos

a) A monotonia de casos clínicos, que convida qualquer médico não motivado a ficar parado no tempo, o que é o pior inimigo de qualquer médico que se preze.

b) Alguns doentes, como são “milionários’, podem ser muito inoportunos e petulantes, o que pode causar certos atritos quando se quer que obedeçam a certas restrições.

 

Um caso que queria compartilhar com todos porque ilustra os muitos obstáculos com que guineenses na diáspora se deparam no dia-a-dia:

Não estive directamente envolvido no caso, mas uma internista colega que estava a tratar da doente contou-me:

Uma enfermeira, originária das Filipinas, entrou num quarto para atender a uma chamada duma doente; mal ela entrou no quarto, a paciente protestou: só quero ser tratada por enfermeiras de raça branca; a enfermeira voltou para a estação e comunicou o pedido à enfermeira chefe (charge nurse); esta foi ao quarto e depois de conversar com a paciente, disse-lhe que o hospital iria tentar acomodá-la (liberdade de expressão, direito do paciente, etc.); enquanto estavam a tentar solucionar o problema, entra esta minha colega (nascida nos states, mas de pais paquistaneses), que sem saber de nada, entra no quarto: olha, sou a doutora tal e vou tomar conta da senhora: ”Eu só quero ser tratada por pessoas brancas e americanas; não quero ninguém que fala com sotaque”: a minha colega calmamente respondeu: nasci em Nova Iorque e o meu sotaque é de Brooklyn; mas a senhora tem todo o direito de escolher a sua médica e vou tentar acomodá-la; dito isto, ela saiu do quarto e foi para a estação de enfermeiras.

Como a paciente tinha um problema gastroenterológico (hemorragia), o médico de urgência já tinha chamado o gastroenterologista para consultá-la; eis que o Dr. M (um médico originário da Nigéria) entra no quarto, sem saber da situação, começou: sou o Dr. M, especialista de gastroenterologia e pediram-me para ver a senhora; a paciente quase que entrou na estratosfera: o que é isto? (what the F... is this?): I asked for a white person and they are  getting darker and darker (está a ficar cada vez mais escuro); Transfer me immediately to another hospital!!!

Como daquela de uma famosa actriz de cinema (SS) que se embriagou num dos hotéis aqui em Las Vegas, perdeu os sentidos e foi parar nos nossos serviços de urgência; quando acordou e viu residentes e flebotomistas a tentar tirar sangue para análises, não imaginam a quantidade de obscenidades que saíram da boca dela…

Isto para ilustrar as dificuldades de todos os tipos pelas quais nós na diáspora passamos, mas não desistimos, porque estes obstáculos transformam-nos em seres humanos altamente preparados para triunfar e brilhar.

A propósito: um artigo/estudo numa das mais conceituadas revistas médicas dos Estados Unidos concluiu que doentes tratados por médicos formados no estrangeiro e que agora praticam nos Estados Unidos (depois de cumpridos todos os requisitos), têm mais chance de sobrevivência e melhores resultados clínicos, do que doentes tratados por médicos formados nos Estados Unidos.

A minha leitura deste artigo:

1) Médicos formados fora dos Estados Unidos praticam por vários anos nos países de origem (cirurgia e não só) antes de emigrarem para os Estados Unidos.

2) Geralmente, só o creme da nata, os melhores médicos, emigram ou são recrutados para os Estados Unidos (mais possibilidades de avanço profissional, mais compensação monetária, menos opressão política, etc.).

3) O medo de falhar (fear of failure), que para mim é o maior catalisador: sabemos que estamos a ser observados através do “microscópio”, e damos o máximo de nós para exceder todas as expectativas; e assim vamos continuar até ao último suspiro.

 

Um outro ponto que queria abordar: quando se tenta implementar leis, fazer com que as pessoas/colegas sigam as regras, há sempre resistência; eu e mais 3 especialistas de cuidados intensivos, fomos encarregados pelo novo hospital, de “sanear” as unidades de cuidados intensivos: com o decorrer dos anos, muitos colegas especialistas acomodaram-se demasiado (deixaram de entubar, de colocar linhas venosas centrais e arteriais, e de estudar para recertificação em cuidados intensivos); mas ainda consultavam doentes nos cuidados intensivos; na última semana, enviamos uma nota oficial a todos os médicos sobre os requerimentos para praticar nos cuidados intensivos e muitos (80%) dos colegas “intensivistas” não estão satisfeitos: até estão a envolver senadores, dirigentes autárquicos, etc. Mas não vamos transigir: para salvaguardar a integridade dos doentes, não vamos mudar os requisitos para praticar e consultar nos cuidados intensivos (ter o diploma de recertificação a cada 10 anos, como prova de competência, todos têm que o ter; fazer um mínimo de entubações e outras cirurgias por ano). Vou perder muitos “amigos” com este decreto, mas temos que ser coerentes e justos na vida: quando me perguntam porque é que estou disposto a perder “amigos” por causa desta polémica, a minha resposta: “se um meu familiar estivesse numa unidade de cuidados intensivos, gostaria que o mais competente dos intensivistas tomasse conta dele; devo fazer o mesmo para outros pacientes, porque os familiares deles também desejariam o mesmo”.

Para o fim-de-semana, vou finalizar os meus comentários sobre 3 casos clínicos (fotografias) que me enviaram de Bissau.

Para o Secuna: extraordinário artigo brother; puseste toda a tua alma nele e valeu a pena.

Parabéns e és prova viva de que temos homens brilhantes na Guiné!

Ainda há esperança.

Para todos os colegas Médicos, só 5 palavras: Estudar, Estudar, Estudar, Estudar, Estudar...

Joaquim Silva Tavares, MD, FACP, FCCP, FAASM

Djoca

 

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