DO BARRO À VIDA
A benção |
11.01.2010
Nota: O presente artigo foi publicado no n°36 de LATITUDES (*)
Cada ruga do seu rosto esconde uma mágoa secreta. A dobra das suas costas transporta o peso dos longos e fadigados anos da sua vida. Repetindo um ritual quotidiano, nha[i] Dona prepara a catchupa[ii]. Acocorada diante do improvisado fogão, abana as brasas do carvão para alimentar o fogo. A colher de pau repousa entalada entre a tampa e o caldeirão depois de ter dado uma volta ao manjar que fervilha ao lume. A serenidade estampa-se no seu rosto, acentuada por um sorriso cheio de doçura. Em que pensará nha Dona nesse preciso momento? Nas saudades dos filhos embarcados e dos netos que não vê crescer? Ou estará a dar graças a Deus por mais aquela refeição em tempo de seca prolongada?
Esta é uma das muitas figuras que brotam das mãos e do barro de Lurdes Vieira. Ceramista confirmada dá vida ao barro, materializando as recordações da sua infância e do imaginário colectivo de todos aqueles que, como ela, tiveram que deixar as suas ilhas em busca de um outro amanhã.
Lurdes Vieira é cabo-verdiana, nascida há oitenta e cinco anos no Mindelo e criada na Praia. Aos dezassete anos rumou com os pais e irmãos para a terra longe de Angola. Sem saber, com ela levava um tesouro que só veio a dar por ele ao dobrar a esquina das suas sessenta primaveras: as raízes da sua cultura gravadas no mais profundo do seu ser, tais amarras de um navio que não se quer deixar levar ao sabor das correntes marinhas... E é esse tesouro que Lurdes Vieira partilha hoje generosamente numa homenagem à sua terra e às suas gentes.
Revelando desde sempre uma sensibilidade para as artes manuais, que preencheram ao longo da sua vida os momentos de lazer da exímia funcionária pública que foi, a artista descobre muito mais tarde a arte de modelar o barro. E tudo aconteceu por acaso: um dia foi a uma olaria comprar material para os seus trabalhos. Cruzou com uma senhora que trazia um tabuleiro cheio de peças em barro para serem cozidas no forno do oleiro. Atraída e deslumbrada com aquelas figurinhas, comprou um pouco de barro para ver “ o que poderia fazer”... Uma nova fase da sua vida iniciava nesse momento com a confecção da sua primeira obra: o busto de um velho, que espantosamente revelou a capacidade artística de Lurdes Vieira no maneio do barro.
A partir daí o trabalho desta matéria preencheu a sua vida aperfeiçoando-se ao longo dos anos, enquanto desenvolvia uma obra que se pode considerar de cariz etnológico. É, na verdade, através do barro modelado, a que insufla o sopro da vida com o sentir próprio da sua arte, que Lurdes Vieira conta o quotidiano do povo cabo-verdiano, cuja riqueza está na crença de si mesmo, na sua força, coragem e determinação num combate permanente de sobrevivência. E tudo isto transparece na obra da artista. Ao trabalhar o barro, estampa a alegria e a tristeza, a ternura e a força, a determinação e a resignação, o vigor da juventude e peso dos anos nas expressões das suas personagens. Crianças, mulheres e homens enchem-nos o coração de ternura deixando-nos com vontade de conversar com eles por sentirmo-los vivos e tão próximos!
É um regalo para os olhos o rosto terno da Mãe crioula amamentando o seu filho ou o Menino bambudo[iii] adormecido nas costas da mamãe. Enche-nos de compaixão o Menino triste. E quem na hora di bai[iv] não gostaria de tomar a Bênção da avó para o proteger na desconhecida terra longe?
Apetece-nos dançar com as mulheres do Batuque[v] enquanto que nos nossos ouvidos ressoam o coro das vozes e o repicar da tchabeta[vi]. A Tocatina traz as recordações das serenatas em que a morna é rainha. O Par a dançar a mazurca, rigorosamente trajado à moda antiga, o Par a dançar o funan[vii] e o Par a dançar a morna[viii] embalam-nos nos movimentos dos seus corpos. E o tradicional ritual do Cola Sam Jom[ix] transporta-nos para a festa graças aos seus mais pequenos detalhes em que não faltam o par de dançarinos, o dançarino com o barco e as conchas de enfeite…
Como nos dá vontade de desafiar para uma partida os Jogadores de uril ou brincar com o Menino da bola!
Ah! E quem não gostaria de provar a saborosa Catchupa de nha Dona preparada com tanto carinho e com o milho que a Cutchideira[x] pilou logo pela manhã?
Quantos corações não baterão perante a beleza serena e a sensualidade da jovem Crioula !
E quem não se revê na sua infância diante da Contadeira de estórias ou a receber a Benção da mamãe ou da vovó?
Sobe-nos ao nariz o cheiro da Pitada de cancã[xi] e da Mulher grande fumando o seu canhoto[xii]…
A vendedeira de atum traz a nostalgia do pregão « Atum, atum ! ».
Apetece-nos dar uma mãozinha ao Homem da enxada que de sol a sol luta pelo seu pão contra o chão ingrato e a chuva ausente...
E quem não se reconhece naquela família repleta de filhos Escadas que Deus dá em que os mais velhos ajudam a criar os mais novos ?
Não ficamos insensíveis à cumplicidade do Velho casal, fruto de um longo percurso nem sempre ameno. E nas rugas do Homem das ilhas, o velho badio[xiii], lemos a vida árdua do seu povo.
São estas algumas das peças da obra de Lurdes Vieira. Cada peça é uma homenagem aos pilares de toda uma sociedade: à mãe, à mulher, à família, às tradições e lutas pela vida... E de peça em peça vai contando o viver do seu povo.
São cenas da vida que a ceramista retrata e imortaliza nestas figuras, sob o olhar cúmplice de Cláudio Vieira, seu companheiro de há mais de 56 anos. Cenas da sua meninice, certamente algumas já desaparecidas das tradições de hoje, mas que pertencem a um imaginário colectivo e ao património cultural de toda uma Nação. Cenas que, tal como ela, gerações de cabo-verdianos emigrados levaram consigo e transmitiram aos seus filhos e com elas as referências culturais das suas raízes. E Lurdes Vieira soube conservá-las intactas na sua memória, enquanto amadurecia em si essa arte de dar vida ao barro.
São formas, cores e expressões que brotam espontânea e naturalmente das mãos desta incontornável figura das artes cabo-verdianas que tem como uma das suas principais qualidades a humildade dos grandes seres.
[i] Senhora, dona.
[ii] Às costas.
[iii] Ritmo do batuque.
[iv] Hora da partida.
[v] Dança, canto e música ritmada por uma cadência marcada por batidas com as mãos em rodilhas feitas com tecidos, interpretados por mulheres.
[vi] Ritmo do batuque
[vii] Música e dança tradicional de Santiago, acompanhadas com ferro e gaita e mais recentemente com acordeão.
[viii] Música típica de Cabo Verde cantada com um acompanhamento de violino, viola e cavaquinho.
[ix] Ritual das festas juninas das ilhas do Barlavento.
[x] Mulher que pila o milho
[xi] Rapé.
[xii] Cachimbo.
[xiii] Natural da ilha de Santiago.
(*)LATITUDES, revista bilingue editada em Paris pela Associação Cahiers lusophones, tem o objetivo de criar um espaço de reflexão e de informação sobre o mundo de língua portuguesa e em particular sobre as comunidades dos países de língua portuguesa residentes em França, de modo a favorecer a valorização das suas culturas e aspirações. Cada número de LATITUDES comporta um tema central, reunindo artigos mais aprofundados, mas apresentando também outros temas e rubricas, tais como reportagens, análises sociais, atualidade cultural, ensino, expressão e criação. O francês e o português são as duas línguas utilizadas.
Ficha:
Editor: Association Cahiers Lusophones
Diretor da publicação : Daniel Lacerda
ISSN | 1285-0756
Ano de criação: 1997
Periodicidade: Trianual
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