CABRAL  HOJE

 

Amilcar Cabral (Abel Djassi)

 Por: José Carlos Cocamáro  

José Carlos Cócamaro

São Paulo, Brasil

20.01.2007

Todos os anos faço a mim mesmo esta pergunta: a que estado ou nível de desenvolvimento socioeconómico e sociocultural estaria hoje a Guiné - Bissau com Amílcar Cabral, vivo, fisicamente?

Esta pergunta traz-me sempre à memória o que disse em Dezembro de 1984, em Bissau, o delegado do partido comunista cubano, referindo - se a Amílcar Cabral.  Citamos: "Não sabem os que o assassinaram, a inteligência, o valor, a personalidade e a sensibilidade humana que mataram.  Há mortos que não estão nas suas sepulturas, não cabem nos seus túmulos, rompem - nos, e seguem nas suas batalhas, não morrem, transformam - nos em selvas para novas guerrilhas. E assim, tampouco, os que o assassinaram sabiam que estavam a imortalizá-lo para a eternidade; estavam a multiplicar a sua história". Fim de citação.

Alguns quadros guineenses da minha e da nova geração, com quem tenho compartilhado a minha preocupação sobre o desenvolvimento do nosso país e manifestado a minha absoluta convicção de que o nosso país, a Guiné-Bissau, estaria hoje num nível médio de desenvolvimento se Cabral estivesse vivo mostram-se  reticentes, para não dizer cépticos. Mas o pior de tudo,  é que esses conterrâneos fazem da sua ignorância  intelectual, política e quiçá patriótica, ciúmes com a personalidade intelectual de Amílcar Cabral, o que não deixa de ser uma piada, se não fosse trágico. Eu atribuo esse cepticismo à falta de conhecimento da personalidade de Amílcar Cabral e das premissas consignadas nos programas maior e mínimo do PAIGC, observados fielmente por Cabral, em obediência aos Princípios do Partido.

A figura de Amílcar Cabral é a essência da nacionalidade guineense. Ela confunde-se com os anseios do povo da Guiné-Bissau. Portanto, requer da nossa parte, da parte de todos os guineenses, uma profunda reflexão sobre a importância e necessidade de cada vez mais conhecermos a natureza genuína   da personalidade ímpar de Amílcar Cabral, como patriota consequente, como uma sensibilidade humana acima de tudo, como cientista político extremamente hábil, um sociólogo na substância da palavra, pois conhecia profundamente o seu povo e estudava com interesse outras realidades. Um intelectual de rara capacidade teórica e prática, um filósofo de grande envergadura. Um escritor lúcido e estudioso esmerado das realidades de outros povos, para delas extrair exemplos adaptáveis ou não à realidade do seu povo.

Cabral era um cidadão consciente, com o senso extraordinário das suas responsabilidades como dirigente. Por isso era exemplarmente fiel aos princípios.

Rejeitava terminantemente o oportunismo. E, nas questões estratégicas, recusava-se a  fazer concessões, o que significa dizer que ele não transigia na defesa dos interesses sagrados do seu povo.

Rejeitava também o empirismo cego, considerando que, a assimilação crítica dos conhecimentos da experiência dos outros era fundamental para a nossa luta. No entanto, advertia para a necessidade de se tirar da experiência de cada povo, aquilo que podemos adaptar às nossas condições reais, para assim evitarmos esforços e sacrifícios desnecessários.

Rejeitava o dogmatismo, pois compreendia perfeitamente que a teoria revolucionária não é um modelo estático, não é uma petrificação ou cristalização dos conceitos e tão pouco é uma resposta acabada para dar solução aos problemas que a vida nos apresenta, mas sim uma guia para a acção, com base na análise efectiva da realidade concreta de cada situação concreta.

Amílcar Cabral tinha uma visão clara do pós-independência.

Por isso, na medida em que a luta avançava, incutia no espírito dos combatentes e do povo as exigências do pós - independência. Isso não só com base no seu pleno conhecimento da realidade socioeconómica do seu país e do seu povo, mas também com base nas experiências de outros povos que conquistaram a sua independência e viram as suas aspirações ridicularizadas por uma independência nominal e foram submetidos a uma dependência económica, sendo novamente subjugados, sob novas formas de colonização e de exploração.

Cabral partia das premissas da nossa luta, às quais era fiel: Libertar o país da dominação colonial portuguesa e construir o bem-estar do povo. Com base nisso, Amílcar Cabral advertia para que, uma vez libertados da opressão colonial portuguesa, nós não cometêssemos e tampouco tivéssemos o direito de cometer os mesmos erros feitos por muitos países africanos independentes. Disse a esse respeito : "Nós, africanos, temos fama, por causa do nosso subdesenvolvimento, de que não há nenhum a quem se dá responsabilidades sobretudo de meios, dinheiro e outras coisas, que não roube. E as coisas que se têm passado nos países africanos independentes de facto, metem-nos medo. Mas também coisas que se têm passado com os nossos camaradas, mesmo, alguns. Isso faz-nos medo, medo grande, camaradas. Devemos  lembrar aos camaradas, responsáveis e combatentes em geral, que também é furtar, quando, por exemplo, apanhamos coisas do inimigo, justamente na guerra, não falando das coisas que tomam ao nosso povo nas tabancas, isso não é justo, mas apanhar coisas do inimigo justamente na guerra e esconder, ficar com elas, isso é roubar e começar a fazer trabalho de bandidos".

Cabral era um intelectual lúcido,  franco e honesto no sentido verdadeiro da palavra. Cumpriu integralmente, com denodo e  lealdade, o seu juramento. Entregou-se de corpo e alma ao serviço do seu povo, à libertação do seu povo, na Guiné e Cabo Verde. Ao serviço da África e da humanidade. Recusou a alienação de qualquer natureza. Abdicou-se das regalias que a inteligência e competência lhe proporcionaram no exercício da sua profissão de engenheiro agrónomo de capacidade extraordinária, não só admirada, senão também respeitada pelas autoridades coloniais portuguesas. Renunciou-se a tudo, em obediência à sua consciência, simplesmente para fazer a sua parte no quadro da libertação do seu povo na Guiné e em Cabo Verde. E, jamais foi movido por interesses materiais de âmbito pessoal.

Na sua obra, "Análise de alguns tipos de resistência", no capítulo de desenvolvimento da resistência política, Cabral disse: "Se alguma vez na minha vida, voltar a ter na nossa terra, na Guiné ou em Cabo Verde, a vida que eu tinha antes... E, mesmo, se os dirigentes da nossa terra amanhã, na Guiné ou em Cabo Verde, viverem tão bem como eu vivia em Portugal, isso quererá dizer que o nosso país é muito rico. Devemos estar vigilantes, para os não deixarmos, os nossos dirigentes viverem assim, porque é uma vida demasiada boa, para um país pobre que tem que trabalhar muito ainda.

A nossa luta na Guiné é para a nossa gente no mato, em primeiro lugar, gente que viveu durante séculos e séculos dentro de uma tabanca, sem conhecer para além de 5 quilómetros da sua casa, gente que não sabe o que é uma escola, o que é um medicamento para curar as doenças que lhe enchem o corpo."

A sensibilidade humana de Amílcar Cabral, fez dele um defensor implacável dos direitos da pessoa humana. Tinha fé inequívoca na capacidade humana, inclusive na sua regeneração, pois entendia que todo o ser humano pode ser recuperado para voltar a ser útil à sociedade a que pertence. Para ele, cada erro, cada tropeço, cada fracasso, era um ponto de partida para a reflexão, era um exemplo do qual deveria ser tirada a devida lição para as acções futuras, porque o erro e o fracasso são sinais evidentes de que algo está fora do curso normal das coisas. Portanto, é preciso corrigir e ter cuidado para não cometer os mesmos erros que levaram ao fracasso e à frustração.

Amilcar Cabral não se caracteriza tão somente pelas suas qualidades intelectuais excepcionais ou por ter sido um político extremamente hábil. Além de ser um exímio administrador pragmático, ele encerra em si as qualidades de um grande estratega militar, entre os melhores. O principal teórico e pragmático da luta político-armada de libertação nacional, homem convicto, o mais luminoso intelectual e dirigente africano da sua geração e do nosso tempo.

Entendia que, a dicotomia: teoria e prática eram indissociáveis. Pois, sendo verdade que a teoria sem prática é uma perda de tempo, não há no entanto nenhuma prática consequente sem teoria. A esse respeito ele disse: "Temos que procurar ser práticos no nosso trabalho, temos que incutir no espírito dos nossos camaradas a ideia do prático. É preciso deixar de complicar as coisas. Ou então, perder no nosso espírito a interpretação mágica da realidade, quer dizer, nós temos ainda certas maneiras de pensar que se nos sentarmos e discutirmos muito bem um assunto, em que todos estão de acordo, pensamos que a coisa está feita, ficamos contentes como se tivéssemos de facto essa coisa feita e se for preciso até fazemos uma festa, porque a discussão foi muito boa. Mas acaba a discussão, cada um sai satisfeito da vida, porque vão fazer um bom trabalho, mas não tratam de fazê-lo porque está-lhe na cabeça. Antes de começarmos a fazer uma coisa, devemos estudá-la bem, para sabermos se vale ou não a pena fazê-la e não começar a fazê-la para depois deixar. Portanto, perfeição, aproveitar bem o tempo e ter o sentido prático das nossas realizações, capacidade de realizar até ao fim cada obra, cada coisa que temos para fazer, é muito importante camaradas, fundamental na nossa cultura, camaradas".

A base teórica, a assimilação crítica de outras experiências e conhecimento concreto da realidade do país, são os fundamentos dos quais Amílcar partiu para a elaboração de uma estratégia e táctica, justas que,  pela coerência, renderam-lhe admiração e inúmeras vitórias, tanto no campo político quanto diplomático.

E, não obstante a sua modéstia em insistir frequentemente no facto de apenas falar das condições subjectivas e objectivas do seu país, o seu legado e a sua herança teórica transcenderam os limites nacionais para serem admirados, lidos, estudados e assimilados criadoramente por muitos países afectos à defesa da causa dos povos oprimidos e à sua projecção  internacional.

Amílcar Cabral não pertencia somente aos povos da Guiné e de Cabo Verde, e tampouco à África, pois a sua contribuição teórica e pragmática na luta pela libertação do seu povo, na luta dos povos pela liberdade e pelo bem-estar da humanidade, ultrapassaram as fronteiras africanas e fizeram dele uma figura do mundo - um património da humanidade.

Muito cedo, Amílcar Cabral entendeu que as ideias são um instrumento de acção que só valem quando produzem efeitos práticos. Compreendeu que o pragmatismo é um conceito doutrinário que adopta como critério da verdade o valor prático que tenha efeitos positivos e seja útil ao ser humano como um todo. Começou a exercitar esse princípio, ainda em Cabo Verde, como estudante liceal. Lançou um programa radiofónico, na cidade da praia. Em Portugal, como estudante de agronomia, no Instituto Superior da Agronomia de Lisboa, Amílcar Cabral contribuiu muito para a formação do núcleo dos estudantes africanos, oriundos das colónias sob a dominação portuguesa, muitos dos quais, incluindo o próprio Cabral, constituíram o embrião dos dirigentes que mais tarde dirigiriam a luta comum de libertação nos seus respectivos países, contra os colonialistas portugueses.

É importante recordar que Amílcar Cabral contribuiu muito no quadro do desenvolvimento da luta comum dos países africanos sob a dominação colonial portuguesa, sobretudo de Angola e Moçambique. Citamos: "Nós mesmos como PAIGC, trabalhámos muito para a unidade dos movimentos em Moçambique, para a criação da FRELIMO. Mas nós mesmos, PAIGC, ajudámos a formar o MPLA em Angola. Não é nenhuma vaidade, não, publicamente mesmo, é sabido, os filhos de Angola sabem-no. Para servir os interesses do nosso povo, camaradas. Nós mesmos corremos riscos em Angola, em reuniões clandestinas. No momento em que vários angolanos estavam já presos pela PIDE. Foi preciso ir a Angola fazer reuniões. Arranjamos contrato como agrónomo e fomos para Angola e aproveitamos para reunir camaradas, para discutir com eles o novo caminho que devíamos seguir todos na luta pelas nossas terras. Debaixo do controle da PIDE, camaradas. E depois de outros trabalhos que já tínhamos feito em Angola. Para quê? Para servir o povo da Guiné e Cabo Verde, camaradas. Nós não tínhamos a mania de servir o povo de Angola, porque os próprios filhos de Angola servem bem o povo de Angola, embora nós, na nossa consciência de homens, tanto fazia para nós servir em Angola, como servir em Moçambique, como servir na Guiné ou Cabo Verde."

Ora, se nós pararmos um pouco para pensar sobre o porquê de nós, sendo um país pequeno, com uma população relativamente pequena, no quadro da luta dos povos africanos sob a dominação colonial portuguesa, termos estado na vanguarda, podemos concluir que não foi por mera sorte ou por coincidência. Nada disso. Foi o fruto de um trabalho preliminar feito por Amílcar Cabral, quando no exercício da sua consciência e da sua profissão, soube aproveitar proficuamente a oportunidade que a administração colonial, sabendo da sua competência profissional como engenheiro agrónomo, incumbiu-lhe a missão de realizar o recenseamento agrícola da Guiné. Não sabia no entanto que estava a oferecer-lhe uma excelente oportunidade ímpar de se fazer uma radiografia completa, não só de toda a estrutura fundiária atrasada da Guiné, senão também uma possibilidade  única de se proceder a um estudo minucioso da situação sócio-económica do país.

Em 1953, Amílcar Cabral, do norte ao sul e do leste ao oeste dirigiu e efectuou o recenseamento agrícola da então chamada província da Guiné. A  recensão agrícola da Guiné, com a iniciativa e competência do próprio Cabral incluiu a pecuária, o socioeconómico e o sociocultural. Foi um verdadeiro e o mais profundo estudo sobre as condições  subjectivas e objectivas  da população e do povo da então província Ultramarina da Guiné. Cabral tomou contacto "in loco" com a precariedade das forças produtivas atrasadas do país e, consequentemente, com as condições precárias de vida das populações. Foi testemunha ocular "in situ" de muitas injustiças, dos abusos, da humilhação, dos suplícios, da exploração, da opressão política, económica e cultural que os colonialistas portugueses exerciam sobre as populações guineenses. E nunca se conformou com tais procedimentos brutais e retrógrados dos colonialistas, pois, sentia no âmago  o sofrimento do seu povo.

Sem dúvida alguma, foi com base nesses conhecimentos profundos da realidade do povo da Guiné e da sua relação opressiva com os colonialistas portugueses, que Amílcar Cabral traçou as suas linhas mestras de acção ulterior. Traçou as metas para o desenvolvimento da nossa luta político-armada para a libertação do nosso país e a sua consequente reconstrução, construção e desenvolvimento sustentado no pós-independência.  É de realçar que a via armada de libertação nacional foi a última e única alternativa encontrada por Cabral para levar o seu povo à independência, diante da relutância do governo fascista português em conceder a autodeterminação e a independência por meios pacíficos. No entanto, a via armada esteve intrinsecamente ligada a  acções políticas habilmente executadas por Amílcar Cabral. E foi graças a essa dupla-acção que o PAIGC infligiu sempre duros golpes ao inimigo colonialista, tanto no terreno dos combates quanto no campo político-diplomático. 

Não há dúvida alguma de que Amílcar Cabral já tinha em mente o seu plano macroeconómico, o plano para o desenvolvimento do nosso país tão logo que conquistássemos a independência. Esse plano tinha como alicerce  a agricultura. Eis o que ele disse : "No caso concreto da nossa terra, todos vocês sabem já, é a agricultura hoje, agricultura amanhã e ainda agricultura talvez mais tarde. Desde já temos que fazer o máximo esforço para avançarmos com a nossa agricultura, elevando a consciência política dos nossos agricultores, mostrando-lhes que o caminho da agricultura é o primeiro para o sucesso e para o avanço do nosso povo, desde já. Mas também  é o caminho que pode abrir ao nosso povo a oportunidade para desenvolver a indústria amanhã, para criar uma situação de vida mais elevada, mas temos em primeiro lugar que tirar o rendimento devido da nossa agricultura.

Noutras terras, certas pessoas diziam que a agricultura era a arte de se tornar pobre, mas alegremente, sem cuidados.

Na nossa terra, talvez a agricultura seja a arte de ficar pobre para toda a vida, se de facto não mudarmos o tipo de agricultura na nossa terra, se não fizermos uma verdadeira revolução no plano agrícola na nossa terra, que tem condições muito boas para a agricultura, tanto na Guiné como em Cabo Verde, apesar de haver períodos de seca em Cabo Verde, o que não é razão nenhuma para desastre na agricultura na nossa época, com tantas conquistas da ciência de hoje e que devem estar à disposição de todos os homens do mundo. Temos a certeza de que há terras nossas que podem produzir duas, três, quatro, dez vezes mais do que aquilo que produzem hoje, se a técnica, for melhorada, se se tratar a terra como deve ser, se se seleccionar as sementes, se se cuidar das plantas como deve ser, se trabalharmos muito e bem. Muitas terras nossas, se tiverem adubos, estrumes, se se juntar a agricultura com a criação de gado como deve ser, podemos aumentar a nossa produção de maneira extraordinária e dentro desse quadro da agricultura, a produção de gado, a criação de gado em grande, gado de raça, podemos fazê-lo, aves de capoeira de todas as raças, podemos fazê-lo. Isso se de facto trabalharmos com vontade, se de facto nos decidirmos muito, se cada homem se dedicar ao trabalho com vontade. Não podemos avançar na nossa terra, se criar galinhas for deixar galinhas no mato e apanhá-las quando for preciso para comer ou vender. Isso não é criar galinhas, é colher como quem colhe tchabeu ou fole no mato.

A Guiné, no quadro africano em geral, é uma das terras que tem maior densidade de gado, portanto, estamos a ver que, devemos desde já, orientar a nossa vida nesse caminho, de, ao lado da agricultura e exactamente para a agricultura poder avançar bem, desenvolver a nossa pecuária."  

Quero abrir aqui um parêntesis/parêntese para dizer que, a propósito do que Cabral preconizou, no mundo hoje globalizado, muitos países dispõem  de tecnologias muito avançadas, das quais podemos fazer o uso para modernizar a nossa agricultura e pecuária, tornado ambas mais produtivas, uma vez que elas ainda se revestem de características rudimentares e de subsistência. Entre muitos países com características semelhantes às do nosso país, destaca-se o Brasil. É um país muito avançado no domínio da tecnologia agrícola e pecuária. Pode ser um parceiro profícuo, não só em matéria da transferência da tecnologia agropecuária, mas também, no processo selectivo das sementes e grãos e, quiçá no fornecimento parcial dos insumos agrícolas (máquinas e equipamentos). Isso, além de outras áreas que carecemos e que o Brasil é relativamente auto-suficiente, citando como exemplos, diversos sectores da produção da energia, desde a hidroelétrica a renováveis. E que, por ironia do destino, um desses sectores é coordenado e dirigido por um pesquisador e conceituado quadro guineense (Orlando Cristiano da Silva) ao qual não pedi autorização para citar o nome, pelo que peço desculpas.

Portanto, isso significa dizer que o Brasil pode ajudar-nos a implementar os ideais agropecuários de Amílcar Cabral no nosso país. Isso claro, de acordo com as condições reais do nosso país. Mas, vale aqui salientar que no Brasil, as áreas plantadas não são ''bolanhas'', portanto, a agricultura moderna, muito produtiva, não se faz necessariamente na ''bolanha''. Devemos tirar isso da nossa cabeça. Ela se faz em quaisquer terrenos de solos aráveis, às margens dos rios ou não, servindo-se do sistema da irrigação e das águas das chuvas tal como nós conhecemos.  

É de lembrar ainda que, a China, um dos maiores produtores mundiais de arroz, senão a maior produtora, foi a primeira parceira da Guiné-Bissau nessa área. É preciso no entanto, reactivar e tirar proveito dessa cooperação em prol do nosso país.       

Cabral apontava a importância da criação de cooperativas, considerando o sistema cooperativo como o caminho mais curto para o desenvolvimento da agricultura e da economia. Citamos: "Na Guiné, a pouco e pouco, temos que ser capazes de criar cooperativas, aumentando, em primeiro lugar, a cooperação entre famílias, e procurando amanhã os melhores militantes para pegarem nas cooperativas em conjunto para desenvolverem o Sistema Cooperativo, que, quanto à nossa ideia, é o caminho mais curto para desenvolvermos a agricultura e a nossa economia dentro da nossa terra amanhã."

Amílcar Cabral falava da agricultura com uma autoridade de quem realmente conhecia profundamente a área.

Não podemos perder de vista um facto notório: Amílcar Cabral era uma figura muito admirada e respeitada no meio académico em Lisboa, Portugal, pelo extraordinário conhecimento sobre a agronomia, sua área de formação. Entre várias assistências que ele deu em Portugal no âmbito da ciência agronómica, destacamos as seguintes: Colaborador extraordinário da Junta de Investigação do Ultramar; Colaborador do Professor Titular da Cadeira de Conservação do Solo do Instituto Superior de Agronomia em Lisboa, para os Estudos do Solo de Angola. Colaborador Permanente do Professor Titular da Cadeira de Agricultura Tropical Solo do Instituto Superior de Agronomia para os Estudos da Tecnologia do Solo de algumas regiões em Angola. Assistente Permanente na Cadeira de Entomologia Agrícola (Zoologia-estudo dos insectos). E membro efectivo da Sociedade de Ciências Agronómicas de Lisboa, Portugal.

No âmbito geral do desenvolvimento do nosso país no pós-independência, Cabral chamava a atenção para vários assuntos, entre os quais: a necessidade do partido gerir  as antigas empresas agrícolas da administração colonial portuguesa, como embriões de uma futura propriedade estatal; a necessidade de fomentar a poupança, combater o roubo, a corrupção, evitar o esbanjamento, pois dizia: "As coisas que têm passado nos países africanos independentes, de facto, metem - nos medo".

Destacava a importância da planificação como condição necessária para ordenamento e controle das actividades, embora advertindo contra a mania dos planos grandiosos. Chamava a atenção para a necessidade de desenvolver e estimular o mercado e melhorar o Sistema de Comunicações e de Transporte, comparando os dois últimos ao sistema circulatório do sangue no corpo humano. Citamos: "Outro aspecto importante, evidentemente no quadro da nossa economia é a questão de transporte. Hoje é difícil discutirmos esse problema porque estamos em guerra, em plena guerra, e nós destruímos a economia do inimigo, destruindo estradas e seria bom que destruíssemos mesmo todas as possibilidades do inimigo se mexer nas estradas ou nos rios da nossa terra, que infelizmente ainda não destruímos tudo. Isso é bom para nós por um lado, mas também é mau para nós por outro lado, porque a nossa economia, se a queremos desenvolver em certas áreas, não podemos fazê-lo porque não temos estradas. Não temos tempo para alcatroar estradas, etc. Mas desde já devemos pensar este problema para amanhã na nossa terra. E temos que pensar seriamente nas vantagens que há em defender os meios de transporte, fluviais, quer dizer, de rios, porque a nossa terra na Guiné, é rica nos canais, caminhos da água, para fazermos o escoamento dos nossos produtos e criar novas possibilidades para isso amanhã. E ao mesmo tempo possibilidades de garantir uma ligação entre o nosso continente e as nossas ilhas de Bijagós e ilhas de Cabo Verde. Porque só numa terra em que as ligações são como a circulação do sangue no corpo de um homem, é que de facto essa terra pode avançar. O Sistema de Transporte, de Comunicações, é tão importante para um país avançar como são importantes os vasos sanguíneos, as artérias, etc., no corpo de um homem. Temos que pensar nisso bastante, desde hoje, e nós este ano também pensamos nisso".

Portanto, as referências e citações de Amílcar Cabral que deram o corpo a este artigo, não deixam dúvidas quanto à autenticidade do seu projecto para o desenvolvimento do nosso país após a libertação completa da dominação colonial portuguesa. São provas evidentes de que, Amílcar Cabral, tendo a certeza absoluta de que nenhum acto criminoso dos colonialistas portugueses conseguisse parar o ímpeto do povo guineense para se libertar, passou a preocupar-se e sobretudo a preparar o povo guineense para as tarefas da reconstrução e construção do país na etapa pós-independência.

O "amanhã" a que Cabral se refere é exactamente o pós-independência. E, não dar crédito às suas próprias palavras, seria mais uma vez, entre  muitas, assassiná-lo postumamente.

Negar que, com Amilcar Cabral vivo, em quaisquer circunstâncias geopolíticas, o nosso país hoje, seria um país diferente do que temos, é a mesma coisa que dizer que ele, Cabral, não foi o arquitecto da nossa independência. É negar o óbvio. É considerar que Cabral, que deu provas de ser um fino analista da dinâmica da realidade do país, seria incapaz de adaptar a sua análise à evolução do país e do mundo, permanecendo-se numa abordagem estática dessas realidades. É pensar que Cabral, tal como aconteceu com a maioria dos dirigentes do PAIGC, deixaria de continuar a estudar, analisar e a reflectir sobre as vias e formas de concretizar o desenvolvimento nacional a partir da sua própria realidade e inserido num contexto internacional em pleno movimento. E isso seria negar a própria essência da natureza intrínseca que Cabral demonstrou possuir. E, tal como ele dizia, para caracterizar o impossível, é "fazer as águas do Geba voltarem ao Oceano Atlântico". É, em suma, mostrar o desconhecimento pleno da Personalidade de Amilcar Cabral, diante dos seus objectivos maiores: libertar o povo da dominação colonial portuguesa e colocar todos os meios do progresso científico ao alcance do Homem, construir o bem-estar para o povo da Guiné e de Cabo-Verde. 

É oportuno neste 34º aniversário do bárbaro assassinato de Amílcar Cabral, reflectirmos sobre o seu rico e inesgotável legado ao nosso alcance e dele extrairmos elementos que orientem as nossas acções presentes e futuras no quadro do imprescindível e premente desenvolvimento da nossa querida Guiné - Bissau.

Viva o legado de Abel Djassi!

PROJECTO GUINÉ-BISSAU: CONTRIBUTO - LOGOTIPO

VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!

Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO

www.didinho.org