A tradição e a mutilação genital feminina (MGF)

 

 

Sandra Cardão *

http://psicologiasos.blogspot.com

caminhodapsicologia@hotmail.com

24.04.2010

A tradição tem sempre duas faces de desigual valor: uma positiva que nos traz o familiar, a ligação ao pensamento colectivo, que simplica a forma como olhamos e organizamos o mundo; outra negativa, que nos faz manter hábitos que chegam ao ponto de causar mal aos seres vivos. Ou seja, com a tradição há ideias, práticas e costumes que são passados de geração em geração dentro de uma dada cultura/sociedade que são positivas, porém, olhando para o reverso da medalha, para a sua faceta menos positiva, a tradição toma um lugar omnipotente dentro de uma dada cultura, sempre que se torna inalterável contra todas as evidências do contrário. Não nos podemos esquecer que a tradição muitas vezes surge por um dado interesse em que as coisas se passem de uma dada forma. Por exemplo, no tempo do colonialismo, certas formas de sucessão hierárquica podiam ser chamadas de “tradição” a fim de favorecer certos candidatos em detrimento de outros. Outro exemplo vem-nos da tradição de alguns povos rurais pobres que entregam as suas crianças ao cuidado de famílias abastadas das cidades. Essas crianças são muitas vezes sujeitas a trabalho infantil para ajudar no seu sustento. Temos ainda o exemplo da mulher ocidental que durante séculos se limitava a ficar em casa enquanto o marido trabalhava. Enfim, há vários exemplos de tradições que deixaram de o ser, ou que estão em vias de extinção.

Todo este preâmbulo para chegarmos a uma tradição que infelizmente ainda persiste em cerca de uma vintena de países africanos, de países do Médio Oriente e da Ásia, contando com as colónias de imigrantes destes países no exterior. Esta tradição recebe no ocidente o nome de Mutilação Genital Feminina (MGF).

A mutilação genital feminina é uma prática assente em costumes religiosos e/ou socio-culturais enraizados, mas que causam um sofrimento horripilante à vitima, criança, adolescente, mulher. Independendo das fases de desenvolvimento, do credo religioso, ou da cultura, a MGF causa danos físicos e psicológicos graves ao longo de toda a vida.

O acto em si consiste na crua amputação/extracção/ablação de parte ou da totalidade dos órgãos sexuais da mulher. A Amnistia Internacional ainda informa que: “Há vários tipos, que por sua vez têm gravidades diferentes. Segundo as várias tradições são removidos o clítoris ou os lábios vaginais. Uma das práticas de maior gravidade – chamada infibulação - consiste na costura dos lábios vaginais ou do clítoris, deixando uma abertura pequena para a urina e a menstruação. Aproximadamente 15 % das mutilações em África são infibulações.  A MGF é levada a cabo em várias idades, desde depois do nascimento até à primeira gravidez, tendo a maioria lugar entre os quatro e oito anos.”  A remoção de parte ou da totalidade do clitóris também se denomina por clitoridectomia.

Se a criança, adolescente, ou mulher sobrevivem ao acto, mais tarde ou mais cedo irão confrontar-se com os riscos graves que esta prática comporta para a sua saúde física e mental, seja qual for a idade, credo ou religião.

De acordo com o panfleto informativo da Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular, do Ministério de Educação português, sobre a MGF, entre os riscos imediatos para a saúde (dor intensa, sangramento excessivo, choque séptico, infecções…), e os riscos para a saúde a longo prazo (dor crónica, cicatrizes dolorosas, maior vulnerabilidade a doenças sexualmente transmissíveis e complicações no parto), contam-se os sérios e graves danos psicológicos:

-   “Medo ou receio de ter relações sexuais;

- Ansiedade, depressão;

- Perturbações psicossomáticas com quadros de sintomatologia como insónia, pesadelos, perda de apetite, perda de peso ou ganho de peso excessivo, pânico, dificuldades de concentração e aprendizagem, e outros sintomas de stress pós-traumático incluindo perda de memória.”

Do ponto de vista de muitas etnias e povos, esta prática representa o ritual de passagem da infância à idade adulta, o que inclui a circuncisão, no caso dos rapazes, e a vulgarmente chamada excisão, no caso das raparigas.

Contudo, as crenças sócio-culturais que fundamentam esta prática estão ultrapassadas no tempo e, pelo sofrimento que causam, podem receber as denominações inerentes às categorias psicológicas dos “pensamentos distorcidos” e das “crenças erróneas”. Se não, vejamos:

-  se a jovem não for excisada nunca irá arranjar um marido;

- se uma mulher não for mutilada pensa-se que ela não é pura e é encarada como prostituta;

- se a mulher não for excisada, não presta;

- a excisão preserva a virgindade até ao casamento;

- a excisão aumenta o prazer masculino durante o acto sexual;

- se a mulher não for circuncidada não irá conseguir dar à luz;

- a excisão melhora a fertilidade da mulher;

- se a mulher não for excisada, durante o parto o contacto com o clitóris é fatal ao bebé.

Há muitas outras crenças que reforçam a prática da excisão como conta Waris Dirie (2007), top-model e autora, embaixadora das Nações Unidas contra a mutilação genital feminina (MGF), ela mesma vítima de excisão durante a sua infância na Somália.

O desconcertante é verificar que, se por um lado, a Organização Mundial da Saúde (OMS), tem desenvolvido trabalho no sentido de desincentivar a prática da mutilação genital feminina, considerada como clara violação dos direitos humanos mais básicos, e como tortura e abuso sexual pela Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1990; por outro lado, os povos e as etnias que praticam a excisão acreditam verdadeiramente que estão a fazer o que é correcto e o que é melhor para as suas filhas.

Mudar mentalidades e comportamentos enraizados é tarefa de gigantes, mas há que começar por algum lado, como pela reeducação dos costumes.  Uma solução mais imediata passará por educar os intervenientes sobre as consequências graves desta prática na vida das pessoas a que ela são sujeitas, e reeducar costumes como o da substituição do ritual físico por algo simbólico. Os ganhos financeiros ou materiais de quem faz desta prática profissão devem ser repensados, quem sabe haver subsídios de desincentivamento…

A reeducação dá lugar a novas práticas e costumes, assim nascem novas tradições, mais saudáveis, mais equilibradas, e que não causam sofrimento às pessoas.

 


 

Referências

 

Dire, W., (2007). Filhas do Deserto. Lisboa: Edições Asa.

Panfleto Informativo sobre a MGF, da Direcção-Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular, Ministério da Educação (Portugal), in http://www.dgidc.min-edu.pt/PressReleases/Documents/FolhetoMGF.pdf.

Amnistia Internacional sobre a Mutilação Genital Feminina, in, http://www.amnistia-internacional.pt/index.php?Itemid=105&id=99&option=com_content&task=view.


 

* Sandra Cardão nasceu em Angola, é Licenciada em Psicologia Clínica, fez estágio na área da Psicogerontologia e tem trabalhado no âmbito escolar com crianças do Ensino Básico (integração de minorias, crianças carenciadas). Também é Facilitadora de Grupos de Jovens para a Promoção do Desenvolvimento Pessoal. É Autora e Formadora Certificada.

ESPAÇO PARA COMENTÁRIOS

PROJECTO GUINÉ-BISSAU: CONTRIBUTO - LOGOTIPO

VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!

Associação Guiné-Bissau CONTRIBUTO

associacaocontributo@gmail.com

www.didinho.org