REFLEXÕES DE UM NACIONALISTA

II

 

A ESSÊNCIA DA GUINENDADE

OU AS NOSSAS VÁRIAS LUTAS DE LIBERTAÇÃO

 

 

 

 

Fernando Jorge Pereira Teixeira *

teixeira_ferjor@hotmail.com

Queluz, 16 de Março de 2010

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

Um dos propósitos destas “Reflexões” é, procurar âncoras simbólicas dentro de cada um de nós e no “País real” que temos, de forma a “refundar” a Nação, deixando de lado, por ora a governação, estritamente em si. Ou mesmo a sua crítica, que às vezes considero estéril e inconsequente, neste momento de interrogações e decisões que poderão ter o alcance de várias gerações. Pois, não raramente, os erros de hoje são sábias decisões do amanhã. Pois o tempo dos homens é medido em anos e o das Nações em séculos.

 

As minhas análises têm sempre como objectivo propor soluções (e não apenas enumerar problemas), que considero pertinentes para as diversas questões com que nos debatemos como nação e povo. E o meu intento é baseado no amor que devoto ao meu povo e no conhecimento profundo que tenho do meu país e da idiossincrasia do meu povo.

 

Dito isto, quero sublinhar que o objectivo desta parte da minha epístola não é propriamente falar da nossa História – sei que a questão aqui, neste momento, não é de falar do passado, mas de analisar e compreender o porquê deste presente ignominioso -, simplesmente tenho constatado que a “política”, ou “o fazer política”, no nosso país, está indissociavelmente ligada à nossa História, seja a recente, ou a antiga. Afirmo isso, não me referindo a “agentes políticos particulares” mas àquela parte da política profana que parece ter um ciclo e uma direcção própria independentemente, em certa medida, dos tais “agentes políticos”. 

 

Por isso, neste momento - na continuação do que venho escrevendo - acho necessário falar de algo que considero sumamente importante para a compreensão do que vou dizer no futuro. Pretendo pois falar da Luta de Libertação Nacional situando-a no contexto do seu “verdadeiro lugar” no processo histórico e sociológico da nossa Nação. Do seu papel determinante na formação da Nação, não em função da sua “história profana” sobejamente conhecida, feita de datas significativas, de acções concretas, de factos gloriosos, de proclamações, de vitórias e derrotas. Mas sim da sua dimensão menos visível na formação do carácter e sentido de pertença a esta Nação.

 

Pretendo falar-vos, ainda, do seu papel determinante na formação da subcultura e idiossincrasia do Homem Guineense actual. E a influência que continua a ter nos acontecimentos actuais com que diariamente somos confrontados.

 

E mais importante, da relação intrínseca entre a “Luta de Libertação” e a “Guinendade”. Para que a Guinendade seja por fim, geradora de uma nova união e de um ideal que mobilize o nosso povo e através dele o Governo (quando falo do governo não é o Conselho de Ministros, mas todo o aparelho do Estado, desde o último funcionário dos correios de Mansaba até o Presidente da Nação) para uma eficiência decisiva no presente e perspectivadora de um futuro grandioso para a nossa nação.

 

I

A LUTA PELA DIGNIDADE DOS GUINEENSES

OU A BUSCA DE RECONHECIMENTO DO POVO GUINEENSE

 

 

Vocês – Europeus - penetraram na nossa terra pela força e com as vossas armas superiores obrigaram-nos a pagar-vos impostos pelas terras que nos pertencem. Como são os mais fortes, temos que nos resignar a isso e pagamos contra a nossa vontade… mas deixem-nos viver em paz, segundo os costumes dos nossos antepassados.”

 

Chefe Felupe de Suzana, 1931

 

 

Com a chegada deste Novo Ano completam-se quase quarenta anos sobre o término da Luta de Libertação e quase meio século sobre o seu início. O tempo decorrido permite um olhar distanciado dos acontecimentos dessa época gloriosa. Um tempo suficiente para desapaixonadamente falar deste acontecimento transcendental na história do nosso povo e quiçá de outros povos do mundo. Hoje, infelizmente, muitos protagonistas dessa epopeia já desapareceram. Digo infelizmente porque há ainda um grande trabalho por fazer com os participantes, para que um dia quando se escrever a História da Luta de Libertação do nosso povo, a “verdadeira e última História” ela seja completa e sirva de inspiração aos vindouros.

 

Já disse antes que eu não escrevo história e nem escrevo sobre a história, alguém o há-de fazer um dia. Mas também sei, que como já foi abundantemente demonstrado, que a história é para os povos algo parecido com o que é a memória para os seres humanos. Um homem que por algum motivo perde a memória perde a sua identidade ou o sentido dela. Uma nação que não sabe a sua história também perde a “consciência da sua identidade” e consequentemente não consegue enfrentar o futuro de peito aberto e com confiança.

 

Nesta base tenho que demonstrar a ligação dialéctica que existe entre as “Lutas de Libertação Nacionais” anteriores a esta última de Cabral de que o nosso Estado actual é o filho dilecto. A chamada “Guerra de Pacificação” que durou mais tempo que a “Luta de Libertação Nacional”, pois que vai de 1910 a 1925, foi palco de heroísmos sem par. Onde tombaram incontáveis heróis desconhecidos do nosso povo. Hoje sabemos que essa Guerra movida pelos colonialistas contra o nosso povo tinham como objectivo esmagar a resistência do nosso povo militarmente, eliminar os chefes tradicionais Guineenses mais agressivos, impor Portugal de vez como “dono absoluto” desta terra e assim explorar este povo e território economicamente. Portanto os objectivos dos colonialistas nesta “Guerra de Pacificação” não eram diferentes dos objectivos que teriam cinquenta anos depois na “Guerra pela Independência” de Amílcar Cabral. Isto dialecticamente prova duas coisas:

 

Primeiro, que embora teoricamente ganharam a “Guerra de Pacificação”, os colonialistas na verdade foram derrotados, pois foram forçados a repeti-la cinquenta anos depois.

 

Segundo, que a Luta de Libertação Nacional do P.A.I.G.C. é apenas a continuação lógica das anteriores Lutas de Libertação do nosso Povo e o seu epílogo provável.

 

A “Luta Armada” de Amílcar Cabral foi o corolário de muitas outras “Lutas Armadas” que tiveram lugar neste Chão. Não foi nem mais corajosa e nem mais gloriosa do que as “Lutas de Libertação” que desde a construção do Fortaleza de Amura ou o Desastre de Bolol, onde os militares portugueses sofreram uma dura derrota no confronto com as populações locais.

 

Esta vitoria militar dos felupes de Djufunco em 1879 no que ficou a ser conhecido na história, pelos colonialistas, como “desastre de Bolol”, teve o mérito e consequência a criação da “Província da Guiné Portuguesa”, com capital em Bolama. Esta humilhante derrota obrigou a Coroa portuguesa decidir a imediata separação das Administrações de Cabo Verde e Guiné.

 

Portanto o “Desastre de Bolol” em 1879 ou a “Proclamação do Estado” em 1973 têm o mesmo alcance e significado para a criação desta Nação. Estes dois acontecimentos, separados por quase cem anos de Lutas, são duas datas mestras na história deste Povo; e a sua interligação é a mesma que existe entre as “Guerras de Libertação” dos nossos antepassados e a “Luta de Libertação” de Amílcar Cabral. E não tenham a mínima dúvida sobre isto.

 

A busca do “reconhecimento” e da sua “dignidade perdida”, mais do que da “Independência Política”, é que faz milhares de homens ou todo um povo correr riscos enormes e mesmo fatais para ser livre. Um homem raramente arrisca a vida, ao ponto de morrer, se preciso for, por riquezas materiais; mas pela liberdade, reconhecimento e dignidade está e estará sempre disposto a morrer. Esta predisposição humana para morrer pelos seus ideais. Para morrer por “coisas abstractas” como a dignidade, o respeito ou a liberdade. É Isso que na verdade nos separa dos animais.

 

É isso que no fundo movia o N`Dongo, Rei Papel de “Intim”, quando, há centenas de anos, sitiou a Fortaleza de São José de Bissau com todos os Portugueses de Bissau ali dentro (Guerra de Bissau, 1908 que junta Papeis e Balantas do Cumeré. Em 28 de Fevereiro de 1891, os Papeis e aliados Balantas atacam a fortaleza de São José de Bissau) e não os massacrou ou deixou-os morrer à fome, porque ele não estava à procura de vingança e nem era impelido por um desejo de destruir os invasores. Ele apenas queria ser “reconhecido” por eles como igual, para que o seu povo também visse que ele não era inferior aos brancos e mesmo estes reconheciam o seu valor. E reconheciam a sua dignidade de Rei.


E esta busca do “reconhecimento” e da sua “dignidade perdida”, foi sempre o sentir profundo, a sua filosofia, a ideologia que sempre esteve subjacente às várias “lutas de Libertação” que o nosso povo realizou, como no fim do século XIX, quando as várias insurreições puseram este país a ferro e fogo, como as revoltas de Oio em1897 e 1902 ou o levantamento dos Felupes em Badora em 1905; e dois anos depois novamente em Cuor. E de novo na mesma localidade em 1908.

 

As guerras dos Papeis de Bissau e de Biombo (1882-84), os Balantas de Nhacra (1882-84), os Manjacos de Caió (1883) e os Beafadas de Djabadá (1882), foram lutas travadas pelo nosso povo com os mesmos princípios e a mesma procura de reconhecimento e dignidade que também nortearam esta última, a gloriosa “Luta Libertação Nacional”.

 

 

 

 

II

OS PRIMÓRDIOS DA GUINENDADE

OU A DIGNIDADE FEITO POVO

 

 

Esta classe à parte de Christons… odeia violentamente os Portugueses aos quais censuram nunca nada terem feito pelo seu país e foram (…) os instigadores da maior parte das insurreições indígenas… numerosos Christons encontraram a morte na fileira dos Papeis durante as operações… e o seu ressentimento é tão profundo que os julgo capazes de empunhar armas contra os Portugueses, sempre que se apresentar uma oportunidade que lhes possa trazer esperança de se subtraírem ao seu domínio”.

 

Vice-cônsul Hostains, 1918

 

 

Mas nesta Guerra permanente, com intervalos para chorar e enterrar os mortos - que foi no fundo a história do nosso povo - não tivemos só vitórias. Também tivemos as nossas derrotas é certo, mas mesmo essas derrotas nos provam apenas que todas as guerras que travamos foram pela justiça e dignidade.

 

Fomos derrotados em 10 de Maio de 1894 durante a justa revolta dos papéis e grumetes em Bissau, pois o governador Sousa Lage, com o apoio de duas canhoneiras chegadas de Lisboa, e de tropas vindas de Angola, Cabo Verde e Lisboa, conquistaram a terra sagrada de Intim e Bandin e Chão de papel. A dor foi imensa, pois o povo papel é um povo orgulhoso que ama a sua terra mais do que tudo. Mais do que a dor pelos mortos – quem morre em defesa da sua pátria não deve ser chorado, apenas louvado - a dor da terra conspurcada por estrangeiros sobrepôs-se a tudo. Este fatídico dez de Maio foi o dia mais negro na história dos Papeis.

 

Também perdemos quando o governador, Oliveira Muzanty, desavergonhadamente, sem honra, com reforços vindos de Portugal, juntou todos os homens e meios a sua disposição, organizando a maior expedição militar da Guiné, venceu por fim, numa luta desigual e sem honra, os indomáveis guerreiros Beafadas, na altura liderados por Unfali Soncó, nas localidades de Cuor e Ganturé.

 

Mas como podíamos lutar e vencer se eles tinham meios que o nosso povo não dispunha? Dezenas de anos depois, durante a gloriosa Luta de Libertação Nacional quando tivemos acesso a técnica igual, provamos que as derrotas foram na verdade pausas para a vitória final.

 

Houve uma altura - nesta permanente Luta de Libertação Nacional - que o capitão José C. B. Moniz partiu de Cacheu com tropas ensandecidas que atacaram e destruíram a povoação de Djufunco. Esta derrota dos felupes de Varela - que apenas recusavam a pagar o injusto imposto - serviu para demonstrar que eles lutaram pela sua liberdade e que eram um povo digno, mesmo na derrota.

 

Podia falar de vários episódios de heroísmo que atravessaram este pais de uma ponta a outra - na verdade este país é muito pequeno para tanto heroísmo -, mas direi apenas que quando desarmaram o Chefe de Djufunco em 10 Março de 1908 e de Egim a 16, os Portugueses criaram um precedente e um sentimento de revolta acalentada e sofrida que vinte e três anos mais tarde levariam a um episódio que a mim me demonstra que este nosso povo era a “própria dignidade feito povo.

 

Haverá maior testemunho do sentido profundo da sua dignidade, vilipendiada, amassada e destroçada do que aquele que tinha o Chefe Felupe de Suzana, quando em 1931 diz aos Portugueses que Vocês (os Europeus) penetraram na nossa terra pela força e com as vossas armas superiores obrigaram-nos a pagar-vos impostos pelas terras que nos pertencem. Como são os mais fortes, temos que nos resignar a isso e pagamos contra a nossa vontade… mas deixem-nos viver em paz, segundo os costumes dos nossos antepassados.”?

 

 Esta frase por si só podia resumir toda a centenária epopeia do nosso povo. Esta epopeia é algo de que nos devemos ufanar e ensinar às nossas crianças ainda na escola primária para que nelas o amor à pátria seja um imperativo, uma obrigação e orgulho.

 

Embora derrotado, impotente, refém dos colonialistas, à frente do seu povo, este “homem grande” queria o reconhecimento para si e para o seu povo. Queria ser tratado como igual, como ser humano de pleno direito. Embora não tivesse frequentado nenhuma Universidade deste mundo, compreendia mais que os seus opressores, o valor da dignidade e o respeito que um povo deve ter. Ansiava para que a sua nobreza (e a do seu povo) fosse reposta pelos vencedores. Raramente encontrei tamanha dignidade como nestas simples palavras: deixem-nos viver em paz, segundo os costumes dos nossos antepassados.”

 

 

É isto que me faz escrever. O orgulho que sinto de ser filho deste povo. Que nunca nos envergonhou. Coisa que hoje não honramos, nem com actos nem com palavras. Às vezes parecemos um bando de desordeiros e gente sem carácter que devia ter vergonha dos sacrifícios consentidos pelos nossos antepassados.

 

Alem de que hoje sabemos que o importante não foi a vitória ou a derrota que tivemos como povo, mas o orgulho de sabermos que fomos um povo corajoso, destemido, indomável e acima de tudo lúcido, que com o seu sacrifício permitiu que hoje, nós, seus descendentes, estivéssemos aqui e fossemos os herdeiros desse heroísmo. Mas o mais importante é sermos dignos herdeiros de todo esse sangue derramado.

 

Os Guineenses sempre almejaram a sua dignidade e ao sonharem com ela nunca a destrinçaram da sua Guinendade. E finalmente na “dignidade da Luta” (não se esqueçam que a luta foi feita por homens dignos) recuperaram a sua “Guinendade” perdida. Essa Guinendade que tem que ser a razão do nosso viver. Pois ela foi temperada como o aço, no fragor de uma guerra sem quartel, de mais de uma centena de anos, que ceifou imensas vidas, numa heroicidade sem limites, para que hoje possamos cumprir o nosso destino como seres humanos livres e como Nação.

 

Era essa busca de reconhecimento e da dignidade que fazia com que os Cristons ou os ditos civilizados, na altura, fossem os mais ferrenhos inimigos do poder colonial. Coisa que os colonos não compreendiam e estranhavam; Eles achavam até, de certa maneira, que esses é que deviam ser seus aliados naturais. O factor que determinava a animosidade dos “civilizados”, dos “grumetos”, dos “fidjos di tchon”, dos “crioulos”, ou resumidamente “Cristons” para com os colonialistas tinha que ver com a sua Guinendade. Esse factor, que os Portugueses nunca entenderam, já era uma realidade nesse longínquo tempo. Difusa, seja, não apreendida ainda certo, não definida cabalmente no espírito do nosso povo, mas real, “permanente”, “invisível”, “secular”. E será ele o embrião da Nação. Pois é ele que será determinante no ódio profundo que nutriam pelo colonialista. Um ódio que os fazia morrer ao lado dos Papeis e outros povos da Guiné nas lutas contra os portugueses. Esse ódio profundo, a raiva por o seu país não ser respeitado e não se fazer nada por ela, misturado com o seu sentido de dignidade e pertença a esta pátria que determinava que na hora de escolher entre os portugueses e seu povo não hesitavam a pôr-se do lado do seu povo e morrer se necessário fosse. Ou como diz o Vice-cônsul Hostains ao Governador-geral de A.O.F.A.N., num relatório de 30 de Novembro de 1918: “Esta classe à parte de Christons… odeia violentamente os Portugueses aos quais censuram nunca nada terem feito pelo seu país e foram (…) os instigadores da maior parte das insurreições indígenas… numerosos Christons encontraram a morte na fileira dos Papeis durante as operações… e o seu ressentimento é tão profundo que os julgo capazes de empunhar armas contra os Portugueses, sempre que se apresentar uma oportunidade que lhes possa trazer esperança de se subtraírem ao seu domínio”.

 

É esse sentimento, é essa mesma procura de dignidade, que séculos depois, impelia o analfabeto camponês guineense, das matas de Quinara - que de AK-47 na mão, barriga vazia, garganta seca, debaixo de 40º de sol abrasador, ou molhado até aos ossos na época das chuvas, sem saber se estava a viver o último dia da sua vida, - continuar teimosamente lutando por “um amanhã”, em que o seu valor como ser humano igual seria reconhecido pelo opressor.

 

E é esse mesmo sentir que nestes tempos conturbados, me incita a fazer algo para que a minha Nação e meu povo sejam reconhecidos como iguais no concerto das nações. Pois, se neste momento, ninguém nega-nos esse direito (pelo menos de modo formal), nós como povo, durante tantos anos continuamos teimosamente a não querer ser iguais às outras nações. Teimamos em não entender que, neste momento, não temos dignidade nem como indivíduos nem como Povo. Teimamos em não querer entender que uma Nação é construída com sacrifício e heroísmo. E que o tempo, de finalmente construir a Nação, chegou.

 

 

                                                         

 

III

LUTA ARMADA COMO ACTO DE CULTURA SUPREMO DO NOSSO POVO

 

 

“Há 10 anos nós éramos Fulas, Manjacos, Mandingas, Balantas, Papéis e outros... Somos agora uma nação de guineenses”

 

Amílcar Cabral

(em 1972, meses antes de morrer)

 

 

Hoje, a “Luta”, seu significado (e significante) profundo, o seu legado, a sua herança, efeitos e consequências (boas e mas), já não são “pertença” de ninguém; e as recordações, já mergulhadas nas brumas do tempo, cada vez mais distantes, são apenas uma parte importante do património histórico e cultural do nosso povo. Espólio de heroísmos e sacrifícios, de traições e cobardias, desistências e persistências sem limites. De tudo isso e não só. De muito mais, ela, a nossa gloriosa Luta, foi “igual” a seres humanos que a travaram. O espelho de tudo que de grandioso e de mais baixo que a natureza humana Guineense tem. Mas no fim, no cômputo geral, o “Ser Humano Guineense”, o nosso povo, seu verdadeiro factótum, sublimou-se nesta epopeia, tornando-se por um momento um povo de heróis, que vivos ou mortos, com o seu sacrifício e sangue derramado, adubaram o chão por onde há-de medrar a árvore da Nação. Esta Nação cuja sobrevivência é o maior imperativo das nossas vidas.

 

A “Independência Política” não era o “fim lógico” da Luta de Libertação, mas sim este objectivo superior que é a “Construção da Nação”. A Independência era apenas a ponte que nos levaria à outra margem. Assim nenhuns outros valores, por mais importantes que tenham sido eles isoladamente, nessa altura, como – “Libertar o território”, “expulsar os portugueses”, “proclamar a Independência”, -, para referir só alguns desse tempo histórico, podiam por si só, “legitimar” ou mesmo “justificar” esse titânico combate travado durante onze gloriosos anos.

 

Por isso, a “Luta de Libertação”, - que na verdade foi um acontecimento singular, irrepetível e transcendente, verdadeira obra-prima do nosso povo, por ter sido uma empresa de heroísmo impar, realizada comummente por milhares de pessoas isoladas -, por “si só”, não podia ser (não era) um fim em si. Não é (não era) um “resultado” em “si”. O “resultado”, a consequência vindoura, expectável e “desejável”, não poderia ser outro que não a “Consciência Nacional”: a Guinendade.

 

A Consciência Nacional/ Guinendade - esse sim é um “objectivo finito”, um “fim em si”. Pois é durante a Luta, no processo de alcançar um “objectivo fixado” – A Independência - que o nosso povo começa a ter a “consciência de sienquanto Povo. Um Povo único, diferente de outros, mas como todos outros, com as suas aspirações, ambições e sonhos de um futuro melhor.

 

Porque a luta Armada - heróica que foi -, sublime, sem igual nos anais do nosso povo, não é um “valor em si”. Não é um “fim em si”. Não se Luta “por lutar”. Só se Luta “para” ou “por” algo. E quando, todo um conjunto de indivíduos de diferentes proveniências, raças, tribos, classes, e formação, representando todo o espectro social da terra que os viu nascer, lutam unidos e em conjunto, por um objectivo que lhes é caro e comum, esquecendo todas as diferenças humanas, só pode ser por algo grandioso. Algo que não pode ser medido nem quantificado jamais. E só pode ser pela procura de “reconhecimento”, - do seu valor como ser humano -, Mas agora, não isoladamente, mas “inserido” no conjunto dum povo, no seu todo.

 

Eu, humildemente, tal o filósofo de Conisberga, Immanuel Kant, analisando a “coisa em si” - a Luta de Libertação Nacional - no seu todo ou particularizando os factos, os resultados obtidos e os falhos ou mesmo os actos particulares dos protagonistas mais importantes, posso entender muitas coisas, historicamente ou não; mas o “fenómeno”, diferente da “coisa em si”, vai para além da sua história e percepção real: Assim, a “Luta Armada” - o “acto de cultura supremo” do nosso povo -, só pode ter um “valor moral transcendental”, evidente “por si”, acima de qualquer discussão, se o “objectivo” e “resultado” final fosse a “Construção da Nação” e não apenas a Libertação Política.

 

Abel Djassi, já alcançava na altura, - mutatis mutandis - este entendimento (de uma maneira diferente é certo). Daí a sua afirmação: “ (…) a principal finalidade do Movimento de Libertação ultrapassa a conquista da Independência Política para se situar no plano superior da libertação total das forças produtivas e da construção do progresso económico, social e cultural do povo”.

 

O Fundador do “Movimento de Libertação”, o Leão de Boé, entendia portanto, que a Luta Armada era, em último caso, apenas e só, uma das formas que assume a Resistência Cultural, muito mais abrangente e determinante. É nesse entender que a Resistência Cultural adopta diversas formas, sejam elas políticas, económicas ou armadas, para contestar a dominação estrangeira. E querendo ou não temos que concordar com o Engenheiro, neste especifico contexto, quando afirma que, o “seu Movimento”, era “expressão política, organizada, da cultura do nosso povo em luta”.

 

É dessa maneira, que os militantes que “vieram” do povo, para “fazer parte” do Movimento, transformam-se na verdade no “próprio Movimento”, que dialecticamente, provindo do povo, este, “soberano” (embora agrilhoado), lhes dá o “consentimento”, o “mandato” para realizarem em seu nome a transmutação final: A redenção de tribos para povo único. Fazendo deles (Cabral e seus fieis), nesse instante mágico da nossa história, “os melhores filhos da nossa terra”.

 

E é assim que “nesse momento único” o “Movimento de Libertação”, que não era, nem mais nem menos, do que “uma emanação cultural do nosso povo”, despe as suas vestes de Partido Politico e assume o seu papel de Criador da Nação (só neste âmbito a “Luta” seria - e é - um “valor em si”).

 

E AMÍLCAR LOPES CABRAL (de seu nome), FILHO DO POVO E DA GUINÉ (o melhor de todos nós), ENGENHEIRO (das nossas almas), SECRETÁRIO-GERAL (da Nação), COMANDANTE SUPREMO (do povo), CHEFE DE GUERRA (o último, de uma longa lista de Chefes de guerra do nosso povo), GENERAL-DE-TODAS-ESTRELAS (nunca haverá estrelas suficientes), do alto da sua posição de idealizador, inspirador e líder máximo incontestável, incarna todas as aspirações do nosso povo, tornando-se no Demiurgo da nossa Nacionalidade.

 

E “o melhor filho do nosso povo”, o nosso camponês, da tabanca de Manpata, Região de Quínara (a mais bela da nossa terra), transformado, pela força da sua coragem e do seu acreditar, em guerrilheiro, - deitado no meio da podridão da lama, na terra que o viu nascer, na estrada de Djabada-Portu, debaixo de todas as intempéries, com as mãos, calejadas pela enxada, apoiadas na coronha da arma e dedos ensanguentados no gatilho da sua Kalashnikov, - fixando imóvel o horizonte infinito, esperando a redenção do seu povo - sem o pressentir, estava preparando a vinda do “genuíno Guineense”, o verdadeiro herdeiro da Nação.

 

E na sua busca incessante de reconhecimento e dignidade, como individuo e como povo, este filho do nosso povo Balanta, estava com o seu sacrifício e sangue a forjar a Consciência Nacional: a GUINENDADE.

 

 

Atenciosamente

 

Arq. FERNANDO J. P. TEIXEIRA

 

 * Licenciado em Arquitectura (Rússia 1991). Pós graduado em Urbanismo (ISCTE)

 


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